O encontro histórico entre algumas das mais importantes lideranças dos últimos anos na América Latina foi o ponto central do primeiro dia de Lula pelo Brasil. Foi na Praça Internacional, na fronteira entre o Brasil e Uruguai, que o ex-presidente Lula sentou-se para uma conversa com o uruguaio Pepe Mujica, a presidenta legitimamente eleita Dilma Rousseff e o equatoriano Rafael Correa.
A integração dos países da América do Sul, o avanço de uma onda conservadora internacional e os novos tipos de golpe de estado, tendo o Brasil como principal exemplo, foram os temas nesse debate de estadistas que foram extremamente ativos no trabalho pela integração regional.
O ex-presidente Lula cumprimentou os brasileiros e uruguaios que assistiam ao debate, agradeceu a presença de Olívio Dutra, Miguel Rosseto e da presidenta do PT, Gleisi Hoffmann e elogiou o uruguaio Mujica.
“Quando eu resolvi fazer a caravana no estado do Rio Grande do Sul, eu lembrei do meu amigo Pepe Mujica, que é uma das figuras que mais aprendi a admirar e respeitar desde que me conheço por político”, afirmou Lula.
“Então, eu pensei que vindo a Santana do Livramento seria importante convidar o companheiro Pepe, a gente sentar próximo e a gente ter uma conversa sobre a América do sul, o Uruguai, o Brasil, os problemas, as soluções, os períodos que vivemos nos governos. Eu achei que haveria por parte da juventude brasileira e uruguaia o interesse de debater um pouco o nosso futuro”.
Antes de iniciar o debate, Lula brincou dizendo que iria “hablar despacito”, ou fala devagar, para que o uruguaio compreendesse tudo. “A gente teve de 2000 a 2014 um período de governos bem sucedidos no que diz respeito a políticas sociais na América do sul. Acho que não há outro momento da historia fora a Segunda Guerra Mundial em que houve tanta política social na América do Sul”, relembrou o ex-presidente.
“O Pepe Mujica é um exemplo de homem que não desiste nunca. Os uruguaios sabem e os brasileiros tem que saber. Esse homem é um lutador social muito antigo, esse homem ficou preso 14 anos, desses anos, 7 anos foram em uma solitária”, afirmou Lula, relembrando que conheceu o ex-mandatário do Uruguaio na posse de seu antecessor, Tabaré Vazquez.
“Eu tomei um susto porque tinha um homem ‘hablando’, que não parecia um senador, era um homem simples e eu pensava quem era esse cara que estava falando, até que me falaram não é esse cara, é o Pepe Mujica. depois tive o prazer de conviver com o Pepe como Presidente da República do Uruguai e eu do Brasil”.
Lula disse a Mujica que a qualquer momento ele poderia passar a palavra à presidenta legítima Dilma Rousseff e perguntou o que o uruguaio acha que mudou em seu país natal e na América do Sul desde que deixou a presidência.
O ex-presidente Uruguaio afirmou que “na América do sul aconteceram mudanças muito fortes, enquanto a preocupação social dos governos diminuiu, parece que a economia se impõe à sensibilidade social. Temos uma América Latina que está saltando o crescimento econômica e não se pergunta como está seu povo. Esse é o problema”.
“Temos que crescer economicamente, mas quem se preocupa em repartir. E sobretudo, vive feliz a gente? Estarão felizes as pessoas? É a pergunta que temos de fazer”, questionou Mujica.
“A outra preocupação é a confrontação dentro dos países. Vemos as sociedades encrespadas, perdendo respeito, deixando de se querer bem, apesar das diferenças”.
“Não creio que a confrontação e viver permanentemente em choque seja conveniente em qualquer sociedade. Isso significa aprender a negociar todo o necessário”, avaliou o uruguaio, ressaltando que a população quer viver com tranquilidade. “Isso é o que importa em toda a América. Não se pode discutir com ódio. Com ódio se retrocede”.
Lula relembrou que todos que militam na política nos últimos anos viram o continente avançar de forma extraordinária, citando a revolução sandinista, que “mostrou em um país pequeno como a Nicarágua, que os americanos não aceitariam qualquer discordância com o que os Estados Unidos acham o correto”.
“Começamos a incomodar os americanos que não estava habituados a auto determinação dos povos da América do Sul, que tomássemos decisões sem consultá-los, que nós recuperássemos o Mercosul, que mandássemos a Alca embora”.
“Acho que quando um país como o Brasil e seus parceiras da América do Sul começaram a virar protagonistas internacionais, foi uma unidade que não víamos a muito tempo, porque na América do Sul os americanos trabalharam por muito tempo com a ideia de que Brasil era o inimigo. As forças armadas de todos os países tratavam o Brasil como inimigo e era necessário ter desconfiança”.
Lula relembrou que em seu governo o Brasil estabeleceu uma política de diálogo, democrática, buscando alianças por meio das quais se pudesse compartilhar benefícios. “Acho que foi um momento muito bom para o Uruguai e para o Brasil”.
O ex-presidente afirmou que a situação agora está mudada no continente, com exceção do Uruguai e da Bolívia. “Não quero fazer da caravana o momento de contar os problemas pessoais do Brasil, mas a verdade é que o Brasil hoje tem um golpista que está atendendo tudo aquilo que o mercado brasileiro quer que atenda”.
“A gente não via mais criança pedido esmola nas ruas de São Paulo, a gente não via mais tantos desempregados, a gente não via o salário do trabalhador diminuindo, e tudo isso está acabando. Inclusive, acabou uma conquista da década de 1940, que foi a Consolidação das Leis do Trabalho”.
“Agora estamos na iminência de ter o trabalho intermitente, além da privatização, a entrega das empresas de óleo e gás, a entrega dos bancos públicos, principalmente o BNDES. Estamos enfrentando isso no Brasil, não é tarefa fácil. Antigamente quando queriam tirar um presidente eles matavam, depois era golpe militar e agora é através de ação judicial que eles tentam criminalizar as pessoas”.
Lula afirmou que o golpe que retirou a presidenta Dilma da presidência “é a coisa mais moderna que fizeram em termos de golpe. Inventaram mentira contra a Dilma, a Câmara referendou a mentira e depois aprovaram no Senado. Essa mentira toda foi inventada tentando passar a cara de democracia. Nós achamos que a única coisa que faz parte da democracia em todo o mundo é respeitar o voto do eleitor e só o povo que elegeu tem o direito de tirar uma pessoa”.
“Esse anotaremos eleições, nos preparamos para esse enfrentamento e se essas eleições forem normais, vc terá o prazer de ver o PT voltar a governar o Brasil e voltar a construir a unidade”, afirmou Lula a Mujica.
“O ódio que está sendo pregado no mundo inteiro, há ódio e xenofobia no mundo, o que me assusta é o ódio de classe que vem de cima para baixo. Eles conseguem transmitir e isso começou na campanha da Dilma. Nunca vimos tanto ódio quando na campanha da Dilma, do adversário da Dilma”, ressaltou o ex-presidente.
Lula ainda afirmou que “não basta a economia crescer, precisa saber quem vai distribuir a economia para que todos possam participar desse crescimento. No Brasil, desde 1950 a 1980 a economia foi uma das que mais cresceu no mundo, mas depois de 30 anos não havia distribuição da riqueza”, completou, passando a palavra para a presidenta eleita.
Destacando que Mojica é uma das personalidades mais importantes da América Latina, Dilma disse que “o Brasil hoje infelizmente lidera o modelo do golpe parlamentar midiático e de segmentos do setor financeiro, além de algumas corporações, notadamente do judiciário”.
“O golpe infelizmente é um processo. O golpe no Brasil foi um processo. O ato que inaugura o golpe foi meu impeachment. Utiliza-se a aparência de legalidade, 0,03% do orçamento, legitimam o golpe e está tudo certo. Passamos um tempo muito grande falando que era golpe e eles falando que não eram golpe porque os ritos estavam sendo respeitados”, relembrou a presidenta.
“Conseguimos deixar claro que se tratava de um golpe, ele teve continuidade e mostrou a sua face. Eles aprovaram uma agenda golpista, que havia sido derrotada por quatro eleições consecutivas. A eleição do presidente Lula, que impediu a continuidade do programa neoliberal que vinha sendo aplicado na América Latina”.
“Aí eles resolveram dar um golpe e aplicar a agenda que não havia sido aprovada nas eleições de 2014. Limita o teto de gastos, desregulamenta mercado de trabalho e acaba com a soberania. Agora estão na terceira etapa do golpe, porque o golpe deu errado. Ele suscitou o ódio político”.
“Nós que somos democratas, acreditamos na democracia, temos que nos preocupar, além do crescimento econômico e da distribuição de riqueza, com a felicidade das pessoas, com a realização das pessoas. Essa tem que ser agenda dos partidos progressistas, dos partidos de esquerda”, defendeu Dilma.
“Eles não tem candidato e criaram um monstro. O monstro saiu da caixa, é a extrema direita. Ela não tinha voz no Brasil e agora tem, tem representação, esses movimentos ultradireitista como o MBL, o Bolsonaro, o ódio e o preconceito contra tudo e contra todos. Temos que ser a favor do entendimento entre as pessoas, do respeito às opiniões”.
Dilma avaliou que o golpe se auto derrotou, mas que também foi derrotado pela narrativa da esquerda e pelos movimentos sociais. “E nós temos de fato um candidato, que é o único que se opõe a essa aliança e ao crescimento da extrema direita. Todos sabem quem é esse candidato, que temos força de ser a oposição real, é a oposição do povo brasileiro ao retrocesso, oposição do povo à venda da soberania e das terras”.
Segundo Dilma, “a missão do presidente Lula é fazer o Brasil se reencontrar consigo mesmo”. “Para isso teremos eleições livres e soberanas. Respeitem o fato de que temos no Brasil a possibilidade de uma solução não violenta dos problemas é encarnada na nossa proposta de entendimento e de união. Queremos lavar e enxaguar a alma do nosso país, acabar com a dor profunda que o ódio provoca e assegurar a esperança”.
“Eu me encanto, li maravilhosa entrevista do Don Pepe sobre a importância de nos preocuparmos com a questão da civilização no sentido de que hoje as pessoas tem hoje uma vida difícil, com uma enorme infelicidade e vivem em cidades incompatíveis com a vida humana. Temos que construir um movimento em busca da felicidade”, completou a presidenta, explicando que usa o termo “Don” porque é respeitoso e carinhoso.
Mujica tomou a palavra novamente defendendo que “nós que somos de esquerda também cometemos erros, nos equivocamos. Não queremos aprender que as derrotas da esquerda são filhas de suas divisões. Desde a Revolução Francesa, desde a Espanha franquista, desde a Alemanha nazista, isso foi possível porque a esquerda se dedicou a lutar entre si, muito mais que lutar com a direita”.
“Temos que aprender em toda América Latina, que sem unidade não há poder e ninguém tem a verdade total. O outro é que se brigamos pela igualdade, temos que viver como vive a maioria de nosso povo, e não como vive a minoria privilegiada”, defendeu o uruguaio.
“Devemos conservar um modelo de vida como dirigentes da maioria de nosso povo, e não como vive a minoria privilegia. Porque temos que mostrar com nossa vida o compromisso pelos quais lutamos. Frequentemente nos convidam à festas, mas é a festa deles, e não a nossa. Temos que viver ao lado do nosso povo, temos que viver como os trabalhadores, temos que viver sua sorte, porque do contrário nos confundimos”.
Mujica defendeu que “necessitamos um Brasil forte, um Brasil que viva e jogue com todos nós, porque não somos nada no mundo de hoje se não nos juntamos”. “Eles nos querem pulverizados, nos querem divididos, nos querem agonizados porque é a maneira de ser mais débil. Necessitamos entender nossas diferenças e sobre as diferenças ter políticas comuns e nos juntar. É a única maneira de ser forte e ser alguém no mundo que vem”.
“Por isso digo ao PT e às forças de esquerda, as mudanças não podem ficar em uma figura só, porque a figura amanhã se vai. Sorte que têm a lula, mas não teremos Lula eternamente, tem que criar gerações de militantes sociais e aprender a perdoar quando cometem erros”, completou Mujica.
Retomando a palavra, Lula relembrou da criação da Unasul (União de Nações Sul-americanas), quando o ex-presidente venezuelano Hugo Chávez se colocou contra a primeira proposta de nome, que seria “Casa”, mas a disputa terminou em comum acordo para todos os membros
“Em 2005 em Mar del Plata tivemos um momento excepcional na América do Sul, com todos os presidente e o Bush, não aceitamos a imposição da Alca na América do Sul e consolidamos o Mercosul aqui”, relembrou Lula. “O Mercosul não avançou tanto quanto queríamos, avançou no ponto de vista econômico mas não tanto socialmente, ainda assim acho que houve avanço extraordinário nas relações”, acrescentou.
Segundo o ex-presidente, “a gente não queria estar perto de quem estava perto e queria estar perto de quem estava longe. Tomamos uma decisão importante de unificar a América do Sul, a América Latina, nos reunimos com países árabes. Conseguimos avançar muito, de forma extraordinária, conseguimos inclusive criar a Celac (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos), primeira instituição multilateral com a participação de cuba, sem os Estados Unidos nem o Canadá”.
“Infelizmente as coisas começaram a degringolar. O dado concreto é que não temos mais o quadro unitário que a gente tinha, nem o Rafael Correa está mais lá. Nós agora precisamos pensar como unir os setores de esquerda progressistas na América Latina para reconstruir a ideia de que se esse continente estiver junto poderá ter muita influência nas decisões do mundo e se a gente continuar separado, serviçal dos Estados Unidos, não teremos nenhuma importância”.
“Eu digo sempre que a elite brasileira tem complexo de vira lata. Eu estou convencido que estamos vivendo um momento muito difícil, político, econômico e social. Temos nos EUA um presidente da república que não sei como conseguiu se eleger. É um homem que governa por Twitter, não tem apreço pela América do Sul ou América Latina. Temos que fazer um esforço incomensurável para que o Brics continue funcionando e que nos próximos anos eleitorais as pessoas mais comprometidas com o povo trabalhador voltem a governar nossos países”.
Eu que vivi momento auspicioso da economia mundial e depois vivi a crise na economia, tive sorte de resolver a crise mais rápido que os europeus. Criamos mais de 20 milhões de empregos formais que agora estão sendo desmontados.
Referindo-se a perseguição judicial da qual é vítima, Lula afirmou que seu problema é “insignificante diante dos problemas dos trabalhadores brasileiros que estão perdendo seus direitos, dos jovens que estão perdendo esperança. A única coisa que posso fazer é tentar mostrar para essa gente que o ódio que foi destilado contra nossos governos foi o pouco de ascensão social que fizemos os mais pobres conquistar”.
“Os pobres ganharam aumento de salário todo ano, puderam andar de avião, comprar carro, comprar roupa de qualidade. Me parece que um degrau na escala social que as pessoas mais humildes conquistaram, aquilo que você chama de elite, a elite não gosta da ascensão das pessoas mais pobres”.
“Eu estou tentando provar que Brasil não precisa estar na crise que está, o Brasil pode ser consertado, pode voltar a crescer, o Brasil precisa de um presidente que tenha credibilidade”, disse Lula.
“Quero te dizer Pepe, estou com 72 anos de idade, energia de 30 e tesão de 20. Estou com uma disposição de voltar a viajar o Brasil inteiro, se puder viajar a América do Sul inteira, para despertar a consciência política do nosso povo e mostrar que o Brasil, o Uruguai e o Paraguai não precisam viver de maneira apequenada”.
“Estou sendo processado e você sabe, eu podia dar um pulo no Uruguai mas não dou, porque mais dia ou menos dia quem vai sair do país são meus acusadores de hoje, porque eles inventaram uma mentira a meu respeito, a Polícia Federal, o Ministério Público e o Judiciário. Eu tenho a tranquilidade na consciência de um homem inocente”.
“Por isso eu tenho que provar a pessoas como você, que gostam de mim, e eu gosto de você, tenho que provar ao povo brasileiro que eles estão mentindo. Tem o dedo do governo americano nesse processo todo, tem o dedo da secretaria de justiça dos EUA. Eu aprendi a levantar a cabeça, não sou de baixar a cabeça. Temos que enfrentar de cabeça erguida e vamos vencer”.
“Se meu partido quiser eu vou ser candidato a Presidente da República e se eu for candidato é muito provável que a gente ganhe as eleições no Brasil porque o povo brasileiro sabe quem cuida dele. Não quero governar o Brasil, quero cuidar do povo trabalhador”.
O ex-presidente do Equador, Rafael Correa, se disse feliz em se se dirigir à “Patria Grande”, em referência a América Latina. Ele saudou o presidente Lula e afirmou que “a injustiça que se comete contra um homem se comete contra toda a humanidade”.
Após a fala do equatoriano, Lula brincou dizendo que “está encerrado o caldeirão do Mujica e do Lula”, agradecendo a todos. “Fiquei sabendo que no Uruguai tem vinho de qualidade, tem carne de qualidade e quem sabe a gente pode encerrar a noite comendo uma parrilla de qualidade”, descontraiu o ex-presidente.
Lula pelo Brasil
A viagem do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva aos estados do Sul do país, em março, é a quarta etapa de um projeto que deve alcançar todas as regiões do país nos meses seguintes. No segundo semestre de 2017, Lula percorreu todos os estados do nordeste, o norte de Minas Gerais, o Espírito Santo e o Rio de Janeiro.
O projeto Lula Pelo Brasil é uma iniciativa do PT com o objetivo de perscrutar a realidade brasileira, no contexto das grandes transformações pelas quais o país passou nos governos do PT e o deliberado desmonte dos programas e políticas públicas de desenvolvimento e inclusão social, que vem sendo operado pelo governo golpista.
Por Clarice Cardoso, da Redação da Agência PT de Notícias, enviada especial ao RS