Primeiro, retiraram do Poder uma presidenta eleita democraticamente com 54 milhões de votos. Depois, formaram um ministério só de homens. Todos brancos. Todos conservadores. Em seguida, extinguiram o Ministério das Mulheres, da Igualdade Social, Juventude e Direitos Humanos. Na sequência, puseram-se a atacar conquistas sociais obtidas durante uma longa caminhada. Estava consolidado o golpe que ameaça os direitos humanos, a luta pela igualdade racial e pela equivalência entre os gêneros.
Não foi apenas a substituição antidemocrática de um governo por outro. Foi o início do fim das conquistas sociais, avaliam líderes feministas. Para a professora Beatriz Vargas, lançada “anticandidata” ao Supremo Tribunal Federal (STF) por meio de um manifesto com mais de cinco mil assinaturas, entre todos os desmontes promovidos pelo governo sem voto, o abandono das políticas de atenção às mulheres chama especial atenção. “Feministas levantam a crítica de que isso corresponde à compreensão deste governo de que a política para mulheres está emoldurada pela ‘perspectiva policial’, pela repressão à violência, quando sabemos que essa política vai muito além desse limite”, defende.
A imagem “vendida” pela comunicação oficial de que a primeira-dama é uma mulher bela, recatada e do lar apenas reforça e evidencia o que o governo Temer considera ser o ideal feminino. No quadro de retrocesso dos direitos que as reformas do governo ilegítimo apontam, o abandono das políticas de atenção às mulheres salta aos olhos.
“O governo está desmontado toda a estrutura que garantia uma rede de proteção social criada nos últimos anos”, denuncia a senadora Regina Sousa (PT-PI). Ela lembra que nos governos Lula e Dilma, havia uma estrutura concreta onde buscar apoio e que tudo isso desapareceu. Embora o governo anuncie que está remontando essa rede, com a criação do Ministério de Direitos Humanos e a Secretaria das Mulheres, as titulares dos cargos não podem ser consideradas líderes feministas.
A secretária, Fátima Pelaes, por exemplo, já se declarou frontalmente contra o aborto. A ministra, Luislinda Valois, embora tenha se notabilizado pelo combate ao racismo, possivelmente não terá espaço para causas que afrontam o governo, nitidamente conservador.
“Nenhuma crise pode ser usada como justificativa para a perda de direitos”
A marcha a ré nos direitos já assegurados não passou despercebida pela Anistia Internacional que apontou graves problemas com as políticas de direitos humanos. O relatório anual “ O Estado dos Direitos Humanos no Mundo 2016/2017 mostra que 2016 foi o ano do “desmantelamento de estruturas institucionais e programas que garantiam a proteção a direitos previamente conquistados, além da omissão do Estado em relação a temas críticos, como a segurança pública”, afirmou a diretora executiva da Anistia Internacional no Brasil, Jurema Werneck.
Para Werneck, colocar o abandono dos direitos humanos na conta da crise não faz sentido. “Nenhuma crise pode ser usada como justificativa para a perda de direitos”, avaliou, em entrevistas, logo após a divulgação do documento.
O fato é que os programas dedicados a salvaguardar direitos de mulheres e meninas no Brasil murcharam. Segundo a professora Flávia Biroli, a exclusão das mulheres por qualquer governo não acontece por acaso. No artigo Mulheres, política e violência, ela analisa: “Quem tem voz e influência no âmbito institucional participa de decisões que incidem sobre as demais pessoas. Políticas públicas que terão efeitos sobre as vidas das mulheres são definidas em ministérios comandados, historicamente, por homens.”
Dessa forma, “mulheres são excluídas das esferas nas quais decisões importantes para suas vidas são tomadas (a forma política da violência) e apagadas na sua humanidade, pela violação que lhes reduz a corpos inertes (a violência sexual).
A aprovação da Emenda Constitucional 55, que congela os gastos públicos por vinte anos também incide diretamente sobre as mulheres. Afinal, afeta o provimento de creches e a qualidade do ensino público, o que complica ainda mais dupla jornada feminina, já que não há como negar que são as mulheres as responsáveis pelos cuidados como os filhos e a casa. Inúmeros estudos comprovam que menos creches e equipamentos públicos implicam menor empregabilidade para as mulheres que são mães.
Para Nilma Lino, ministra das Mulheres, Igualdade Racial, Juventude e Direitos Humanos do governo Dilma, “todas as ações do governo golpista de Michel Temer ferem os direitos humanos, a luta pela igualdade racial e pela igualdade de gênero”. Em entrevista à Agência PT de Notícias, ela disse que Temer está matando, por inanição, as políticas afirmativas.
“Na minha perspectiva, o golpe é contra a democracia de um modo geral, é contra os pobres, os negros, as mulheres, a população LGBT. É um golpe contra as comunidades de matriz africana e os terreiros”, afirmou Nilma.
A presidenta Dilma Rousseff escreveu em seu site dilma.com que “todas as iniciativas do governo ilegítimo evidenciam o retrocesso. A aprovação de um teto de gastos, por vinte anos, para educação, saúde, cultura, segurança pública, por exemplo, implicará em enormes perdas para as mulheres e os que mais precisam. As reformas da Previdência e Trabalhista têm impacto negativo em toda a população, mas afetam sobremaneira a vida de milhões de mulheres chefes de família”.
Em 14 anos de governos progressistas, o que se viu foi a concretização em políticas de empoderamento da cidadania e gestão pública inclusiva. Mais de uma centena de conferências nacionais foram realizadas sobre o tema. Nunca houve tanta atenção às necessidades cidadãs de mulheres indígenas, negras, com deficiência e trabalhadoras rurais, tradicionalmente invisíveis aos olhos das políticas públicas.
Mulheres do campo
Trabalhadoras rurais passaram a ser beneficiadas com ações. As políticas de apoio à produção dirigidas às mulheres do campo promoveram o seu reconhecimento. Por meio da Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (Pnater) – Setorial Mulheres, entre 2004 e 2009, mais de 31 mil mulheres foram beneficiadas e 16 milhões de reais foram investidos. Para qualificar as demandas das mulheres, foi criada ainda Rede Ater para Mulheres.
Outro programa criado em 2004, o Programa Nacional de Documentação das Trabalhadoras Rurais (PNDTR), foi fundamental para promover a inclusão social dessas mulheres. Isso porque o acesso a documentos civis, trabalhistas e a direitos previdenciários, por meio de mutirões itinerantes para emissão gratuita de documentação, permitiu que exercessem sua cidadania e usufruíssem de benefícios de ações de reforma agrária ou da agricultura familiar.
“Como o tempo de contribuição vai passar para 25 anos e, considerando as condições de trabalho no campo, as mulheres voltam a perder”
Agora, as mulheres do campo se tornam um dos grupos sob mais ameaça de cassação de direitos humanos. A proposta de reforma da Previdência apresentada e defendida pelo governo golpista elimina a diferença de idade para aposentadoria entre trabalhadores urbanos e rural. “Como o tempo de contribuição vai passar para 25 anos e, considerando as condições de trabalho no campo, as mulheres voltam a perder”, avalia a feminista Beatriz Vargas. Ela destaca que o trabalho infantil deve aumentar, especialmente no campo. “Está claro que a proposta é a preparação do terreno para a mercantilização da aposentadoria e, como essas mulheres conseguirão pagar por seguridade privada”, pergunta.
Mulheres com deficiências puderam ter voz. O Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (PNPM) abordou as especificidades das mulheres com deficiência e a sua sexualidade também foi debatida. Em diversos pontos do País se reuniram em grupos virtuais de discussão para trocar experiências e compartilhar conhecimento e puderam contribuir para a construção de políticas públicas. Em novembro de 2013, a capital federal também recebeu o Seminário Nacional de Políticas Públicas e Mulheres com Deficiência, que defendeu a construção de políticas públicas capazes de assegurar inclusão e visibilidade para as mulheres com deficiência.
Resistência feminista
A resistência das mulheres ao desmantelamento das políticas públicas voltadas para a inclusão e acesso à cidadania passa pela mobilização. Para a senadora Regina Sousa, os caminhos institucionais são estreitos. “Mas a gente pode se agigantar se as bases sociais se mexerem”, observou. Segundo ela, como o governo já deu várias provas de que não se interessa por questões sociais, e a forma de romper essa barreira é se tornar “visível” para a sociedade.
Flávia Biroli escreve que, embora o Brasil tenha passado rapidamente do “mais mulheres no poder” ao “nenhuma a menos”, o feminismo nunca foi tão capilarizado na sociedade brasileira e nunca esteve tão presente nas ruas. “As mulheres, sobretudo as mais jovens, parecem ter cada vez mais clareza de que seu lugar é qualquer lugar e de que ocupar espaços na política é fundamental para fazer valer suas experiências e dar sentido político a suas necessidades e interesses”, ressalta.
E conclui: “Embora as lideranças do retrocesso nos queiram caseiras e domésticas, somos cada vez mais politiqueiras (…). As mulheres que têm ido às ruas em todo o país não aceitam o receituário dado por um deputado católico, no Plenário da Câmara dos Deputados, ao dizer que as mulheres de verdade querem proteção e amor. Pelo contrário, são mulheres que compreendem que de sua atuação política dependem seus direitos, inclusive o de viver em uma sociedade livre de violência”.
Por Giselle Chassot do PT no Senado