Partido dos Trabalhadores

Entrevista: Advogada explica o princípio da insignificância e as deturpações da justiça brasileira

No mesmo dia, Gilmar Mendes absolve mulher que furtou picanha e Rosa Weber condena jovem que furtou xampu. Entenda a aplicação e interpretação dessas leis que oscilam entre o senso de justiça (ou não) da sociedade brasileira 

Nesta semana, na coluna da Monica Bergamo, na Folha de S. Paulo, ela trouxe o caso em que o ministro Gilmar Mendes absolveu, sumariamente, uma mulher que roubou um pedaço de picanha e outras mercadorias de valor irrelevante no Rio de Janeiro, alegando o princípio da irrelevância. No mesmo dia, a ministra Rosa Weber negou habeas corpus a um jovem que roubou dois shampoos, no valor de 10 reais cada, em um estabelecimento de São Paulo. 

Ambos já tinham antecedentes de ações semelhantes, mas tiveram destinos completamente diferentes. Esta é só mais uma demonstração das limitações do sistema judiciário brasileiro e da elasticidade da interpretação das leis pela subjetividade dos juízes. 

Em alguma medida, as pessoas já ouviram falar em “crime famélico” em que as pessoas furtam itens de primeira necessidade para a própria sobrevivência ou de outrem. No entanto, o princípio da insignificância, que está relacionado ao crime famélico, ainda tem pouco debate no seio da sociedade.

Para entender melhor essa diferença e aprofundar no debate sobre as deturpações e limitações do sistema judiciário brasileiro, entrevistamos a advogada Anna Raquel Gomes.  

 

 

1) Em primeiro lugar,o que é “princípio da insignificância” e “crime famélico”? Por que elas existem?

 

O princípio da insignificância funciona como uma causa de exclusão da tipicidade, desempenhando uma interpretação restritiva do tipo penal. 

 A aplicação desse princípio deve ser precedida análise de cada caso, a fim de se evitar que sua adoção indiscriminada constitua verdadeiro incentivo à prática de pequenos delitos patrimoniais e ele incide quando presentes, cumulativamente, algumas condições objetivas: 

(a) mínima ofensividade da conduta do agente

(b) nenhuma periculosidade social da ação

(c) grau reduzido de reprovabilidade do comportamento

(d) inexpressividade da lesão jurídica provocada.

 

O crime famélico ou furto famélico ocorre quando alguém age em estado de necessidade, ou seja, furta para saciar uma necessidade urgente e relevante, sua ou de terceiro(s). Geralmente ocorre quando se furta para comer, mas pode ocorrer em outras situações, como furtar peça de vestuário, cobertor, produto de higiene e/ou remédio. Essencialmente, o bem furtado precisa ser essencial para a sobrevivência.

Assim, em casos em que se verifica a prática do furto famélico, pode-se aplicar o princípio da insignificância, considerando que o Direito Penal deve se ocupar de assuntos com capacidade de efetivamente lesar o bem jurídico.

Ambos encontram fulcro no postulado fundamental constitucional do Princípio da Dignidade Humana, no entanto, o furto famélico acredito, encontra garida na CF/88, se pensarmos em outros direitos e garantias constitucionais como o direito à vida, do qual decorre o direito a alimentos; direito à saúde, o direito à liberdade, etc.

Pode-se obviamente relacionar ambos ao Código Penal, mas também ao Estatuto da Criança e do Adolescente, ao Estatuto do Idoso; Lei das Contravenções Penais

 

2) Elas são aplicadas da forma como deveria? Por que?

 

Falando como advogada, acredito que não. Vejamos. Por que juízes decidem por restringir a liberdade de uma pessoa que furta fralda descartável e uma lata de leite ninho para sua prole? Porque a pessoa era reincidente em crime parecido? Mas e a condição da pessoa que praticou o crime e a sua motivação, que devem ser sopesados para que o crime famélico seja reconhecido e o princípio da insignificância seja aplicado? 

Se essa pessoa está desempregada há anos, tem quatro filhos, mora embaixo da ponte e faz “bicos” para poder comer e dar de comer pelo menos dia sim, dia não à sua família? Justifica encarcerar esse brasileiro? 

Para muitos juristas é justificável, se considerarmos que ele reincidiu na prática do crime. Não há justiça social assim. 

Para muitos, se considerarmos a opinião dos cidadãos comuns  é justificável por que bandido bom, quando não é bom morto, é bom preso. Para muitos, é o “quem mandou” roubar?!

 

 3) Qual o peso da subjetividade do/a juiz/a na condenação ou absolvição de uma pessoa nesses casos? Como isso impacta o senso de justiça social?

 

Em casos como o de infrações penais de menor potencial ofensivo e até mesmo no caso do chamado furto famélico, existem as condições mínimas objetivas, que falei anteriormente, que os juízes analisam para que decidam por aplicar o princípio da insignificância ou não. 

Isso porque, ao mesmo tempo que o Direito Penal onde deve-se intervir o mínimo possível, também não pode servir como suposto incentivo à pratica de pequenos delitos, como já falado anteriormente.

No entanto, eu acredito que a decisão do Estado Juiz nestes casos, são geralmente alheias, alienadas da real condição social e econômica do brasileiro(a) que comete este tipo de crime. 

Não raro vimos o encarceramento de jovens homens e mulheres, pobres, na sua maioria negros, em situação de vulnerabilidade e geralmente com filhos, em razão de crimes dessa natureza. Vemos inclusive, humilhações e até tortura física que são cometidas por meros seguranças de supermercados.

Esses crimes nunca vem isolados, ou seja, quem os pratica geralmente está alijado da sociedade, da economia, do próprio judiciário e do ordenamento jurídico como um todo, se considerarmos que seus direitos sequer são resguardados e a todo momento são desrespeitados também. O Judiciário por outro lado, não tem como resolver tudo. Também não é sua atribuição. No entanto, naquilo que lhe cabe, o que vemos muitas vezes é um entendimento restrito e que me parece ser conservador e alienado da realidade das maiorias minorizadas do Brasil . Por que casos como esses chegam a Tribunais Superiores, sendo que hoje existem outras formas para que não exista este tipo de demanda, tais como o Delegado não abrir o inquérito, por exemplo? Qual a justificativa para o membro do Ministério Público recorrer de decisões que absolveram réus em casos dessa natureza?

Devemos lembrar que o judiciário brasileiro é extremamente demandado! Inclusive nossos Tribunais Superiores, e que casos como esses podem tramitar por anos até serem arquivados, demandando atenção da máquina como um todo, sem qualquer necessidade.

 

4) Como uma sociedade determina o que é justo ou não e como isso aparece nas leis? 

 

Primeiro e principalmente porque não acredito que haja consenso na sociedade quanto ao que seja justo. Muitos provavelmente vão ler minhas respostas e pensar que sou defensora do crime, do bandido, etc. Outros vão ler e concordar em parte. Isso porque essas pessoas têm um entendimento particular ou um ideal do direito e da Justiça brasileira. Segundo porque acredito que enquanto alguns pensam na lei de uma forma restritiva e ao pé da letra, quando nem a própria lei é dessa forma, já que comporta exceções e atenuantes; outros pensam que ela é branda demais e que a justiça é cega.

Se considerarmos o crime famélico e a aplicação do princípio da insignificância e o caso da pessoa desempregada que roubou fraldas e uma lata de leite especificamente, podemos ter dois cidadãos comuns, com mesmo conhecimento de direito e de justiça, mas com posicionamento diametralmente opostos. Um cidadão comum pode pensar que se uma pessoa furtou, não interessa em que condições, ela é “bandida”, deve ser presa e pagar sua pena. Já o outro cidadão pode pensar que a atitude é justificada e não deve haver condenação, já que o Estado e nem a sociedade proporcional o mínimo para que se possa pelo menos sobreviver.

 

5) Em tempos de crise econômica e falta de proteção estatal, é necessário uma adaptação das leis e do sistema judiciário? Por que?

 

Acredito que sim. Se considerarmos uma definição bem simples do Direito, como sistema de normas de conduta e princípios criado e imposto por um conjunto de instituições para regular as relações sociais, entendo que as leis e o judiciário devem acompanhar as mudanças que ocorrem sim, sob pena de haver injustiça, aumento ou instituição de desigualdades. Mas também acredito que a mudança não deve se restringir ao sistema judiciário.

No Brasil nada é simples, seja por extensão territorial, seja por diversidade cultural, seja por desigualdades históricas que mantemos, a mudança deve ser mais ampla. De nada adianta termos alteração no sistema judiciário ou nas leis, se não tivermos alteração na educação, na economia, se não houver controle social da atividade política e até judicial, etc.

 

6) De que forma a sociedade civil pode garantir que “deturpações” como essas não ocorram?

Eu acredito em participação social. Temos algumas ferramentas de participação social garantidas na Constituição Federal, que são burocráticas sim, mas que existem e podem ser utilizadas. A lei da ficha limpa é fruto de uma dessas ferramentas e tem sido até bem utilizada pela Justiça Eleitoral e pelo Ministério Público Eleitoral para barrar candidaturas. Acredito também na educação. Penso que a nossa sociedade pode começar a mudar por meio da educação, da informação e pode ser muito mais ativa politicamente e mais consciente dos seus direitos, se conseguirmos que a educação seja valorizada e fortalecida.

De imediato, posso dizer que existem alguns grupos tentam agir para diminuir essas deturpações diretamente no judiciário, como por exemplo as Defensorias Públicas, as diversas Comissões de Direitos Humanos das Subseções da OAB, diversas ONG’s, escritórios modelos ou núcleos de práticas jurídicas de Universidades Públicas e Privadas, etc.