É a primeira vez que um país latino-americano elege diretamente, por meio do voto popular, um presidente da República com posições frontalmente opostas aos direitos humanos.
Sabemos que a humanidade não avança de forma linear, que a História é repleta de contradições, conflitos e retrocessos. Após tempos dramáticos de exceção, da experiência de horror vivida nas duas grandes guerras mundiais e de uma ameaça real à própria existência da humanidade, o século XX iniciou um processo de constituição de uma “natureza humana” comum, de um princípio de universalidade humana.
Tal princípio não foi conquistado por mero acaso da natureza, mas fruto de embates sociais e políticos que resultaram na formação de uma cultura que passou a reconhecer a diversidade humana e a alargar o conceito de cidadania.
Na contramão de valores hegemonicamente nacionalistas, etnocêntricos, racistas, patriarcais, misóginos e homofóbicos, o ocidente estabeleceu uma moral voltada para a universalização dos direitos.
Essa moral universal foi afirmada historicamente na Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU), de 1948, cujo resultado está expresso num dos mais importantes instrumentos jurídicos da humanidade: a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH).
Numa avaliação em perspectiva histórica, a eleição de Bolsonaro é, sim, um revés, uma ruptura com um processo ascendente de reconhecimento e institucionalização desses mesmos direitos no Brasil e no mundo.
No Brasil, temos um retrocesso imensurável. A ascensão de Bolsonaro – consequência de uma ruptura democrática que se iniciou no impeachment sem crime de responsabilidade de Dilma Rousseff, em 2016 – significa a dilapidação completa do pacto social vigente desde a redemocratização, cuja pedra fundamental é exatamente a Constituição Federal de 1988.
Nossa Carta Magna marca um avanço histórico na luta pela garantia dos direitos humanos em nosso País. Seu texto, guarda correspondência direta com a DUDH, que acaba de completar 70 anos. Ambas são sinérgicas no tratamento de temas como a dignidade humana, não-discriminação, liberdade, tortura, igualdade, escravidão, acesso à Justiça, devido processo legal, entre outros assuntos de suma relevância para os direitos individuais e coletivos.
A eleição de Jair Bolsonaro, suas declarações criminosas e os retrocessos que sua gestão representa para as garantias de direitos fundamentais, são preocupações latentes de ativistas e de movimentos de direitos humanos. O mundo está em alerta com os rumos do governo Bolsonaro. Exemplo, é o relatório recentemente lançado, mundialmente, pelo Alto Comissariado da ONU.
O documento cita nominalmente o presidente eleito Jair Bolsonaro, apontado como um político que “endossa a prática de tortura e outros abusos, e fez declarações abertamente racistas, homofóbicas e misóginas”.
Bolsonaro não somente endossa tais violências. Ele as incentiva! Quando o mais alto mandatário da Nação naturaliza expressões de ódio contra mulheres, negros, quilombolas, trabalhadores rurais e a comunidade LGBT, ele está dizendo que a violência contra essas populações está liberada, que há um espécie de “licença para matar”.
Discursos de ódio não são inocentes, mas a expressão nua e crua do fascismo. Toda morte literal é precedida de um processo de desumanização simbólica. É preciso hierarquizar os seres humanos, arrancar a humanidade do outro, a sua condição de sujeito de direitos para que se justifique todo tipo de violência e terror. Foi assim com os negros escravizados, com os judeus perseguidos pelo nazismo. É assim, hoje, com o genocídio dos jovens, negros e pobres.
A posição de 5º país mais violento do mundo contra as mulheres e de primeiro no ranking de violência LGBTfóbica tende a piorar muito com propostas-chave do governo Bolsonaro como o “Projeto Escola Com Mordaça” e a flexibilização da posse de armas.
É notório que a chegada de governos de extrema-direita ao poder são ameaças reais ao advento de uma noção de direitos humanos na história contemporânea. O potencial emancipatório dos direitos humanos e a sua irreversibilidade estão ameaçados como nunca.
Se não reagirmos rapidamente, de forma contundente e unificada, veremos em um futuro próximo a reversão de todas as nossas conquistas. A Constituição de 88 e a Declaração Universal dos Direitos Humanos não passarão de letra morta.
Precisamos enfrentar os tempos sombrios que se anunciam e seguir defendendo que o ideal dos direitos humanos e sua universalização não são apenas um projeto inconcluso da modernidade, mas uma utopia a ser defendida e realizada no presente.
Erika Kokay é deputada federal e presidenta do Partido dos Trabalhadores do DF
*Artigo publicado originalmente no Brasil 247