As universidades paulistas estão (estavam) em greve desde o dia 27 de maio. O motivo inicial foi a proposta dos reitores das três instituições de dar em maio 0% de aumento salarial aos seus funcionários, sob a alegação de que os orçamentos estão totalmente comprometidos. A reitoria da Universidade de São Paulo (USP), por exemplo, afirma que os salários representam hoje cerca de 105% das suas atuais receitas, e portanto, na prática, os funcionários deveriam pagar pela crise financeira. A reitoria da Universidade de Campinas (Unicamp) acabou concedendo um abono de 25%, e os professores recuaram da greve há algumas semanas. E o Conselho Universitário da Universidade Estadual Paulista (Unesp) acaba de reconhecer a necessidade de o governo estadual aumentar os repasses para as universidades por conta da grande expansão de vagas e cursos.
Ao que parece, por trás da guerra de números desenha-se um processo mais profundo para desmantelar tal como existe hoje o sistema universitário paulista, público e gratuito, de qualidade e excelência, responsável por cerca de 50% da produção científica do país. Existe realmente uma crise?
Uma expressão dessa ação de desmantelamento revela-se na crescente sonegação e desvios de recursos que legalmente deveriam ser alocados para as universidades. Parte de uma crise fabricada. Entre 2008 e 2013 houve desconto indevido e ilegal de parcelas da base de cálculo do ICMS por parte do governo estadual de cerca de R$ 2 bilhões, dos quais R$ 540 milhões apenas no último ano. Mesmo se fossem corrigidos os desvios e fraudes para tirar verbas do ensino público superior, isso não seria suficiente para superar a atual situação. Lembre-se de que todo o Estado brasileiro, do governo federal ao último município, está estrangulado pela dívida pública que ultrapassa R$ 2 trilhões e juros brutais de cerca de R$ 200 bilhões anuais (em parte pagos caninamente através do criminoso superávit primário). A sistemática política de sucateamento da máquina pública (saúde, segurança, educação, infraestrutura) não poderia deixar de ter efeitos nas universidades estaduais. Elas ainda são joias da coroa.
Que solução propõem os reitores? Inicialmente se recusaram a exigir um aumento do repasse de verbas do governo estadual (posição hoje mantida apenas pelo reitor da USP). O plano em curso visa impor uma espécie de “ajuste fiscal”, um “choque de gestão” nas universidades: cortar custos, arrochar salários, diminuir bolsas, vender patrimônio, impor um plano de demissão voluntária (PDV) aos servidores técnico-administrativos, rever os planos de carreira, revisar o Regime de Dedicação Integral à Docência e à Pesquisa (RDIDP) dos professores pesquisadores. Esse é o plano.
A tradução concreta dessas medidas levaria ao desmantelamento de setores inteiros de pesquisas, ensino e extensão da maior universidade do país.
Colegas do Instituto de Física da USP já alertaram que o PDV dos funcionários, caso aprovado, pode simplesmente paralisar e inviabilizar seus laboratórios. Colegas da Faculdade de Saúde Pública, do Instituto de Psicologia, da Escola de Enfermagem e mesmo da majoritariamente conservadora Faculdade de Medicina se mobilizam contra a desvinculação do Hospital Universitário da USP, que se pretende entregar ao governo do estado. Todos sabemos que o destino dos hospitais estaduais tem sido a privatização submarina por meio das Organizações Sociais (OSs) – transformar o patrimônio público em espaço para fundações e empresas lucrarem às custas da precarização da saúde pública.
O corte dos repasses legais e a recusa dos dirigentes em exigir suplementação de verbas ao governador Geraldo Alckmin (o que é uma maneira de protegê-lo) adoçam o paladar dos nossos abutres neoliberais. A Folha de S.Paulo rapidamente saiu em editoriais pedindo cobrança de mensalidades como alternativa para o custeio das universidades. Na verdade, o orçamento da USP é pequeno se comparado com congêneres internacionais sempre citados pelos paladinos do mercado: o de Harvard é de US$ 30 bilhões (R$ 75 bilhões) para 21 mil alunos; o da USP, R$ 4,3 bilhões (US$ 1,7 bilhão) para 93 mil alunos. O custo total anual de um estudante de graduação em Harvard no ano letivo de 2008-2009 foi calculado em € 800 mil (R$ 2,8 milhões), dos quais € 400 mil (R$ 1,4 milhão) somente de matrícula, € 200 mil (R$ 700 mil) de estadia e alimentação e € 200 mil de outras taxas.
Os abutres ignoram essa realidade porque seus objetivos são outros. Entre fontes “alternativas” para financiar as universidades está o incentivo à criação de novas fundações dentro da USP – entidades que usam a estrutura pública e o selo USP, mas cobram mensalidades dos alunos, funcionando como instituições paralelas sem nenhum controle público. Trata-se de uma privatização silenciosa, um câncer que vai sugando a energia criativa do ensino público superior de qualidade.
É importante ressaltar que é exatamente nas áreas da USP mais envolvidas com financiamento privado paralelo que a greve de professores conta com menor apoio. Muitos de seus docentes não têm na universidade voltada para a pesquisa de ponta e socialmente orientada o centro de sua atividade profissional. A universidade pública torna-se mero trampolim. Buscam altos salários em escritórios de consultoria, consultórios, agências e fundações que vampirizam recursos e usam o prestígio da universidade pública para fins privados. Esses setores são os mais refratários, os núcleos conservadores que propõem o desmantelamento das universidades públicas, gratuitas e de qualidade.
Os números apresentados pela USP são impressionantes ao revelar a capacidade de produção mesmo em situações crescentemente difíceis – uma prova aliás concreta da imensa superioridade do serviço público e estatal frente aos mercados e iniciativa privada. Estudo divulgado pela Associação dos Docentes da USP (Adusp) desmonta o discurso sobre os “excessos de gastos” da universidade: “O número total de estudantes matriculados na USP cresceu 95,8% em 25 anos, de 44.811 em 1989 (quando por lei a universidade passou a ter autonomia financeira) para 87.751 em agosto de 2014. No mesmo período, o número de professores na universidade foi de 5.626 para 6.008, um aumento de 6,8%. Já a quantidade de funcionários, a única que chegou a cair 13,5% entre 1989 e 2009, voltou a subir nos últimos cinco anos e igualou o patamar de 25 anos atrás”. Houve ainda um crescimento de 88% nos cursos oferecidos, pulando de 132 em 1995 para 249 em 2012, graças, principalmente, à construção de novos campi. O contingente de professores não cresceu no mesmo ritmo: somente 4% no mesmo período (uma defasagem de 92%), aumentando a relação aluno/professor de 8:1 para 15,5:1. São bons dados para refutar a crise fabricada.
A ação dos reitores é um desdobramento da política geral do tucanato em São Paulo: aprofundar o desmantelamento dos serviços públicos (destruíram a Sabesp, o ensino público fundamental e médio, implantam OSs na saúde, na cultura, venderam o Banespa, privatizam o Metrô, estradas…). De certa forma, destruir algumas das principais universidades do país e da América Latina mostra um grau mais avançado de crise política da burguesia paulista e brasileira. Não podemos esquecer que a fundação da USP em 1934 buscava de alguma forma responder à derrota sofrida pela oligarquia cafeeira de são Paulo, que foi obrigada a dividir seu poder com outros setores oligárquicos e conservadores como Getúlio Vargas após a Revolução de 1930. Esse passado e o passo progressista que significou a criação de uma universidade de ponta no país só seria plenamente consolidado com o fortalecimento da soberania, democracia e independência nacional do Brasil.
Sabemos que esse caminho nunca foi assumido integralmente pela burguesia brasileira, sempre uma sócia menor dos capitais internacionais. Não é de hoje que ela dá passos para trás. O processo de desmantelamento e sucateamento sistemático do ensino público paulista e agora das grandes universidades é mais um desdobramento desse caminho. PSDB, PMDB, PSB e demais setores conservadores do estado estão de costas para a Nação e seu povo.
Quando indagado recentemente pela revista Veja sobre possíveis soluções para a suposta crise na USP, o atual reitor Antonio Zago respondeu que uma de suas prioridades seria “internacionalizar a USP” e ampliar o ensino de inglês para alunos e professores. Uma de suas preocupações seriam os “rankings” internacionais, que mostrariam uma decadência da USP e demais universidades brasileiras e suas dificuldades para se globalizarem.
Antes de comparar números sobre a suposta “ineficiência” da universidade brasileira, é preciso se perguntar: quem deve pautar os critérios de avaliação e análise das nossas universidades públicas? Revistas e instituições internacionais? Por quê? Com que critérios e objetivos devemos avaliar uma universidade do nosso país senão a partir dos nossos próprios interesses como nação, pelas nossas próprias prioridades e recursos? Essas comparações e supostos “rankings” mundiais terminam por impor um padrão único e autoritário de avaliação da produção científica, do ensino, das pesquisas, de objetivos, de produtividade voltada para o deus “mercado”.
É dessa universidade que o Brasil precisa? Voltada para fora, de costas para os problemas concretos da imensa maioria do povo brasileiro? Pois é esse projeto que está sendo imposto na USP e demais universidades, visando avaliá-las e instrumentalizá-las para servirem mais diretamente aos interesses do mercado internacional.
Há caminhos para sair do impasse e da crise. A luta imediata se concentra na vitória da greve de docentes, funcionários e estudantes que unem os setores mais mobilizados. A moção aprovada pelo recente Encontro Estadual do PT destaca a necessidade de abertura de negociações, aumento real e reposição da inflação nos salários e maior dotação orçamentária. Isso significa concretamente, como defendem os sindicatos, buscar um aporte emergencial de 0,7% aos atuais 9,57% da quota-parte do estado (QPE) do ICMS para as três universidades fazerem frente à expansão realizada, além de prever para 2016 pelo menos 10% do ICMS. É preciso ainda aprofundar a democratização da vida universitária como forma de combater os desmandos autoritários e a pouca transparência da gestão financeira dos dirigentes. Com os trabalhadores (docentes e funcionários) e estudantes organizados, com apoio da população, pode-se abrir caminho para defender as universidades que são hoje patrimônio de todo o povo de São Paulo e do país.
Everaldo Andrade é professor do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP