A América Latina passará pela crise mais profunda dos últimos 100 anos, com contração regional estimada do Produto Interno Bruto (PIB) de 9,1%. O diagnóstico é da ‘Pesquisa Econômica da América Latina e do Caribe 2020: Principais Condições para Políticas Fiscais e Monetárias na Era Pós-Pandêmica pela Covid-19’, da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal). O documento foi apresentado na última terça (6) pela secretária-executiva da agência das Nações Unidas, Alicia Bárcena, em Santiago.
“A pandemia da Covid-19 está tendo impactos históricos negativos na área econômica, produtiva e social, com sequelas e efeitos a médio prazo sobre o crescimento, aumento da desigualdade, da pobreza e do desemprego. Por isso, o processo de recuperação da atividade econômica (PIB) aos níveis pré-crise será mais lento do que o observado na crise do subprime (de 2008)”, destacou a secretária-executiva da Cepal.
Nesse cenário, ao final de 2020 o PIB per capita tende a ser semelhante ao de 2010, um retrocesso de 10 anos, com forte aumento da desigualdade e da pobreza. A conclusão da Cepal vai na mesma direção da análise do presidente do Banco Mundial, David Malpass, quando disse que a crise do coronavírus pode “levar a uma década perdida”.
Apenas em 2020, haverá o fechamento de 2,7 milhões de empresas formais e 44 milhões de pessoas ficarão desempregadas – mais de 18 milhões de trabalhadores em relação a 2019, que já foi o fundo do poço desde a crise financeira global de 2008
No estudo “Como evitar que a crise da Covid-19 se transforme em uma crise alimentar: Ações urgentes contra a fome na América Latina e no Caribe”, o Banco Mundial denunciou o crescimento significativo dos níveis de fome na região e anunciou que pela primeira vez haverá um impacto conjunto na educação, saúde e renda, com quedas drásticas no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).
Já o levantamento da Cepal destaca, que, apenas em 2020, haverá o fechamento de 2,7 milhões de empresas formais e 44 milhões de pessoas ficarão desempregadas – mais de 18 milhões de trabalhadores em relação a 2019, que já foi o fundo do poço desde a crise financeira global de 2008. Essa conjuntura levará ao aumento da pobreza até os níveis de 2005, o que representa um retrocesso de 15 anos, atingindo 231 milhões de pessoas.
Já a pobreza extrema chegaria aos níveis de 1990, retrocesso de 30 anos, afetando 96 milhões de pessoas. Para o Banco Mundial, a quantia é ainda maior, podendo atingir 110 milhões a 150 milhões de pessoas (com menos de US$ 1,90 por dia) em 2021, o que corresponde a 1,4% da população global.
Antes da pandemia, a América Latina já apresentava baixas taxas de crescimento (em média 0,4% entre 2014 e 2019) e vulnerabilidades sociais e macroeconômicas crescentes. Por isso, a Comissão das Nações Unidas afirma que a recuperação será lenta e que os custos econômicos e sociais da crise da Covid-19 podem continuar aumentando ao longo de 2021.
“Nesse cenário, serão necessárias políticas macroeconômicas ativas para retomar o crescimento e promover uma agenda de transformação estrutural”, defende Bárcenas. “É necessário fortalecer as receitas públicas, manter as políticas monetárias expansionistas convencionais e não convencionais, e fortalecer a macrorregulação prudencial junto com a regulação do fluxo de capital para preservar a estabilidade macrofinanceira no curto e médio prazo. Aqui, a cooperação internacional é fundamental para ampliar o espaço das políticas macroeconômicas.”
Política fiscal gerou déficit e aumento da dívida
Mas as políticas fiscais que vêm sendo levadas a cabo na América Latina e Caribe podem ter efeito contrário, na análise da Cepal. Isso porque os esforços fiscais, além da redução das receitas públicas, contribuíram para um maior déficit fiscal e aumento da dívida pública, aponta a agência da Organização das Nações Unidas (ONU).
O ‘Estudo Econômico 2020’ indica que os países têm feito vários esforços fiscais para mitigar os efeitos da pandemia. Em média, eles chegam a 4,1% do PIB, acompanhados de garantias estatais de crédito de até 10% do PIB – que não deverão levar ao efeito desejado, afirma a entidade. Os esforços fiscais dos países no contexto da crise devem elevar o gasto público médio para 25,4% do PIB em 2020, ante 21,7% no ano passado.
Segundo o relatório, a América Latina enfrenta seu maior desafio fiscal desde a crise da dívida pública no início dos anos 1980, quando a queda do PIB foi de -6,1%. O desafio, segundo a Cepal, é manter uma política fiscal ativa em um contexto de maior endividamento, ou seja, expansionista em relação aos gastos, mas com “um marco de sustentabilidade fiscal com foco na receita”.
No documento, a Cepal defende que a América Latina e o Caribe precisam com urgência aumentar a arrecadação tributária, atualmente em 23,1% do PIB em média na região, bem abaixo dos 34,3% da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Entre as saídas apontadas para chegar a esse objetivo, estão o combate à evasão e à elisão tributária, que chega a 6,1% do PIB regional, consolidação do imposto de renda da pessoa física e jurídica, ampliação do alcance dos impostos sobre o patrimônio e sobre a propriedade, estabelecer impostos sobre a economia digital e medidas regulatórias, como ambientais e as relacionadas com a saúde pública.
“A política fiscal ativa deve vincular o curto (emergencial) com o médio e longo prazos, para mudar o modelo de desenvolvimento em direção à transformação produtiva com sustentabilidade e igualdade”, afirmou Alicia Bárcena. “Os países devem direcionar o gasto público para a reativação e transformação econômica, fortalecendo o investimento público para setores que fomentem emprego, paridade de gênero, inclusão social, transformação produtiva e uma transição igualitária em direção à sustentabilidade ambiental”, acrescentou a secretária-executiva da Cepal.
Para ampliar as políticas sustentáveis, a Cepal aponta como fundamental uma melhor distribuição da liquidez global por meio da cooperação internacional. Isso seria feito com a capitalização das instituições de crédito multilaterais para ampliar a capacidade de financiamento e liquidez tanto na conjuntura atual como em um olhar mais longo, com vistas no pós-pandemia. Atualmente, os países de renda média concentram 96% do total da dívida dos países em desenvolvimento (excluindo a China e a Índia).
No final de agosto, a Cepal já havia anunciado um estudo conjunto com a Unesco que estimava queda de 9% nos com gastos com educação na América Latina e no Caribe em 2020. “Se não fosse pela pandemia, os gastos educacionais teriam aumentado 3,6% de 2019 a 2020” na região”, segundo o informe, que compila dados de 33 países até julho.
O estudo ‘A educação em tempos da pandemia de Covid-19″’ destaca a urgência de se “garantir a proteção da educação como um direito humano fundamental” e alerta para o aprofundamento das brechas de acesso, equidade e qualidade da educação, afetando especialmente os mais vulneráveis.
Desaceleração sincronizada
Outro setor que sofrerá será o comércio internacional da América Latina e Caribe, que terá queda de 23% em 2020. Número maior do que o registrado durante a crise financeira de 2009, quando a economia da região diminuiu 21%. Nas importações, a queda será de 25%, superior ao recuo de 24% da crise financeira de 2008-2009.
Segundo o documento ‘Os efeitos da covid-19 no comércio internacional e na logística’, o valor das exportações e importações de bens da região diminuiu 17% entre janeiro e maio de 2020, em comparação com o mesmo período de 2019.
Nos primeiros cinco meses de 2020, as exportações da América Latina e Caribe para os Estados Unidos caíram 22,2%, em termos de valor, enquanto as vendas para a União Europeia diminuíram 14,3%. Já as exportações para países da própria região caíram 23,9%. As exportações para a Ásia caíram menos.
Os resultados preocupam pela desaceleração econômica generalizada e sincronizada em países e setores na região, com seis anos consecutivos de baixo crescimento. Em sua ‘Visão Preliminar das Economias da América Latina e do Caribe 2019’, a Cepal já apontava que o período 2014-2020 seria o de menor crescimento para as economias da América Latina e do Caribe desde 1951, quando começaram os registros.
No período, o crescimento médio da região foi de 0,5%, diz Daniel Titelman, diretor da divisão de desenvolvimento econômico da Cepal. O baixo crescimento contrasta com o das décadas anteriores. Segundo Titelman, entre 1951 e 1957, a região cresceu 5,4%. De 1981 a 1989, 2,5%. Durante o superciclo das commodities, o crescimento médio foi de 4%.
“No período de 2014 a 2020 haverá forte contração do investimento, de 2,4% do PIB”, afirma Titelman. Ele argumenta que há uma desaceleração sincronizada dos países da região. “As perspectivas macroeconômicas dos últimos anos mostram uma tendência da atividade econômica, com queda no PIB per capita, queda no investimento, queda no consumo per capita, menor exportação e sustentada deterioração da qualidade do emprego”, aponta a Cepal no estudo.
Aumento da pobreza
Em outro relatório, o ‘Panorama Social da América Latina 2019’, a Cepal cobrou a renovação de pactos sociais integrais e universais. O documento confirmou a tendência ao aumento da pobreza apresentado desde 2015 na América Latina. Em 2018, cerca de 30,1% da população da região estava abaixo da linha da pobreza, enquanto 10,7% vivia em situação de extrema pobreza. Pelas projeções da Cepal, essas taxas aumentariam para 30,8% e 11,5% em 2019.
Segundo a publicação, isso significa que aproximadamente 185 milhões de pessoas estavam abaixo da linha da pobreza em 2018, das quais 66 milhões estavam na extrema pobreza. Já em 2019, o número de pessoas na pobreza aumentaria para 191 milhões, dos quais 72 milhões estariam na extrema pobreza. “Destaca-se, nessa evolução, o fato de que praticamente todas as pessoas que são somadas às estatísticas de pobreza desse ano se integram diretamente à extrema pobreza“, aponta a organização no documento.
O aumento de 2,3 pontos percentuais da pobreza entre 2014 e 2018 na média regional é explicado basicamente pelo aumento registrado no Brasil e na Venezuela. Nos demais países, a tendência dominante nesse período foi de queda, devido principalmente a um aumento da renda do trabalho nos domicílios de menores recursos, mas também, às transferências públicas dos sistemas de proteção social e privada, como as remessas em alguns países. A pobreza afeta principalmente crianças e adolescentes, mulheres, povos indígenas e afrodescendentes, os que residem em zonas rurais e os desempregados.
O estudo aponta também que a desigualdade na distribuição de renda – expressa no índice de Gini com base nas pesquisas em domicílio – continuou a tendência de queda (em média, caiu de 0,538 em 2002 para 0,465 em 2018 em 15 países), mas em um ritmo menor do que nos últimos anos: enquanto entre 2002 e 2014 diminuiu 1,0% ao ano, entre 2014 e 2018 a queda foi de 0,6% ao ano.
A própria Cepal destaca ressalvas a esses números. De acordo com a organização, se o índice de Gini for corrigido usando outras fontes de informação, capazes de captar melhor a renda do 1% mais rico, observa-se que a desigualdade é mais elevada e a tendência de declínio é atenuada em comparação com a estimada somente a partir das pesquisas em domicílio.
No Brasil, a participação do 1% mais rico no total da renda do país em 2014 alcançava 9,1%, de acordo com as pesquisas em domicílios. Esse percentual subia para 27,5%, levando-se em consideração as informações fiscais.
Da Redação