Por meio de um golpe parlamentar, o presidente paraguaio Fernando Lugo (Frente Guasú) foi destituído do poder em 2012. Utilizando o procedimento do impeachment, mas sem base legal, a oposição ligada às elites paraguaias retirou do poder não só o presidente, mas todas as alas de esquerda e progressistas que ocupavam o executivo ao seu lado.
O cientista político paraguaio Fernando Martinez, que pesquisou profundamente o ocorrido em seu país natal, traça um paralelo entre o que ocorreu com Lugo e o que ocorre agora com a presidenta Dilma Rousseff (PT). Para ele, a América Latina tem vivido pausas na democracia, em que retiram um setor eleito pelo voto popular por uma via não democrática, mas sem mudar o sistema por completo.
Martinez analisa que a destituição parlamentar por pura perda de maioria é um mecanismo frequente e legítimo nos sistemas parlamentários, em que o primeiro ministro é eleito pelo próprio parlamento.
Já no sistema presidencial, como no Brasil ou Paraguai, o presidente é eleito pelo voto popular. Portanto, seu poder se legitima aí. Sua destituição só poderia ocorrer por meio da comprovação contundente do crime responsabilidade, e não da pura perda de uma maioria parlamentar. Do contrário, é golpe parlamentar, na avaliação de Martinez.
Leia a entrevista:
AGPT – O que ocorreu no Paraguai em 2012 e porque isso é um golpe?
Martinez – Os sistemas presidenciais latino-americanos mostram uma metodologia parecida ao dos sistemas parlamentares. Se tenho os votos para o processo, há impeachment. Caso contrário, não.
No Paraguai, o que ocorreu foi um processo de julgamento político iniciado com um estado de comoção nacional após um confronto entre um grupo de camponeses que protestava por terras e a polícia. Morreram 11 camponeses e 6 policiais. A partir desse momento se produziu uma comoção a nível nacional. Um setor acusou os camponeses de estarem armados. Isso foi aproveitado pelo Congresso para destituir Fernando Lugo, a partir de um processo de acusaçao dentro da Câmara dos Deputados.
Foi um processo muito curto, onde não se observaram acusações claras contra Lugo. Não se conseguiu mostrar a ligação do episódio ao presidente. Não foi necessário provar nada para destituí-lo.
Lugo não sabia do que era acusado e não pode se defender. Tampouco se produziram provas contra ele. Foi uma decisão política do parlamento de removê-lo.
Lugo não sabia do que era acusado e não pode se defender. Tampoco se produziram provas contra ele. Foi uma decisão política do parlamento de removê-lo.
O vice-presidente, opositor, inclusive foi à Espanha e afirmou que o que ocorreu no Paraguai foi uma retirada por voto de desconfiança, como nos sistemas parlamentares.
E qual o problema desse processo?
O problema é que isso funciona dentro do sistema parlamentario. Um sistema onde o chefe do governo, o primeiro-ministro é eleito pelo parlamento e não pelo povo. As pessos votam no parlamento, que é quem escolhe o primeiro ministro.
No sistema presidencial, a legitimidade do poder vem das eleições populares. Nesse sentido, no sistema parlamentario, o primeiro-ministro é um deputado mais votado entre pares.
Já o presidente não está ligado ao parlamento, mas ao voto do povo. A legitimidade vem do voto popular.Por isso, nos sistemas presidenciais, os parlamentos não podem simplesmente destituir o presidente só por ter os votos necessários para fazê-lo. É preciso que o ato ilícito seja provado.
Já o presidente não está ligado ao parlamento, mas ao voto do povo. A legitimidade vem do voto popular.Por isso, nos sistemas presidenciais, os parlamentos não podem simplesmente destituir o presidente só por ter os votos necessários para fazê-lo.
Qual a diferença entre as destituições nos dois sistemas?
Nos anos 1990, foram produzidos julgamentos políticos, nos quais não se torna claro se os presidentes são culpados dos atos pelos quais são acusados.
No caso atual do Brasil, o que ocorreu foi uma mudança na maioria política no Congresso e que possibilitou a destituição via julgamento político. O governo perdeu uma aliança, e isso possibilitou a abertura do processo. É algo muito similar ao que ocorre no sistema parlamentar.
O impeachment está estabelecido na Constituição como um procedimento dos sistema presidencial. O Congresso pode destituir o presidente. Mas para isso, o ato deve estar efetivamente provado, para demonstrar claramente que estamos falando de um julgamento político em um sistema presidencial, que é diferente do voto desconfiança do sistema parlamentar.
O Congresso pode destituir o presidente. Mas para isso, o ato deve estar efetivamente provado.
O Senado precisaria gerar a convicção de que a presidenta cometeu um ato repudiável e tem que prová-lo. O vice-presidente Michel Temer provavelmente não vai passar por esse julgamento político, apesar de ter cometido erros até mais graves. O sistema presidencial está funcionando sobre falhas, como se fosse um sistema parlamentar.
É possível ver essa situação com clareza quando se compara a acusação que pesa sobre Dima e Temer. Porque o Congresso não está agindo da mesma maneira com Dilma e Temer, e o que causa isso é o apoio no parlamento ou não. A diferença é uma maioria parlamentar. No caso de Dilma, há uma maioria e no caso de Temer não, algo típico dos sistemas parlamentares.
O que poderia ser feito para corrigir isso?
Uma das formas de corrigir esta falha seria com maior respeito à legitimidade da origem desses poderes. Se por exemplo, em caso de que o Congresso, detecte algum ato de corrupção para abrir um impeachment, seria uma possibilidade que o Congresso, uma vez aberto o processo, convocasse o povo para decidir se o impeachment procede ou não. Porque aí um poder não vai estar dissolvendo o outro sem a devida legitimidade.
Um referendo revogatório, por exemplo (como ocorre na Venezuela, em que o Congresso pode convocar um referendo popular que mantém o presidente ou não), assegura que o voto não seja roubado das pessoas.
É possível recorrer às instâncias internacionais contra esse ato antidemocrático?
Existe a possibilidade das denúncias à instâncias internacionais depois de recorrer às instâncias nacionais. Mas em tempo real, os organismos internacionais pouco podem fazer. Há um comunicado da OEA que disse que a situação preocupante em Brasil, porque uma mudança da conjuntura está fazendo com que seja removido um presidente. Mas esse pronunciamento não terá nenhum efeito prático. Uma decisão levaria muito mais tempo.
O que ocorre depois dessa destituição ilegítima?
Os sistemas latino-americanos resolvem seus caminhos por uma pausa não democrática. Porque se o Congresso atua e destitui em virtude da maioria no Congresso, está violando o funcionamento do sistema presidencial e roubando a vontade popular.
No Paraguai, o processo de impeachment procurou tirar Lugo do poder, mas não só ele. Os movimentos sociais e os setores progressistas também. Se efetuou uma pausa democrática, pois isso foi feito por uma via não democrática. Não mudou o sistema, ou não se suspenderam as eleições livres posteriores. Mas tiraram os atores que incomodavam as elites.
Se efetuou uma pausa democrática, pois isso foi feito por uma via não democrática. Não mudou o sistema, ou não se suspenderam as eleições livres posteriores. Mas tiraram os atores que incomodavam as elites.
Se tirou Lugo e todos os setores progressistas que tinham espaço dentro do governo, que já não puderam participar no poder executiva. Não é uma ruptura de regime como ocorria nas ditaduras da década de 1960 e 1970. Os partidos tiram do poder um setor por uma via não democrática, mas o regime democrático continua. É uma pausa da democracia momentânea. Não é que vai começar um sistema ditatorial.
Os golpes parlamentares em geral podem gerar transformações no modelo econômico e podem variar os atores mas formalmente mantém um processo democrático com eleições posteriores, uma grande diferença do que aconteceu nos anos 70.
Da Redação, da Agência PT de Notícias