O Brasil figura na relação dos países mais violentos em todo o mundo – este ano, de janeiro a julho foram registrados 25.712 assassinatos. Mas a Câmara de Comércio Exterior (Camex), ligada ao Ministério da Economia, publicou no ‘Diário Oficial da União’ de quarta (9) portaria zerando a alíquota do imposto de importação de revólveres e pistolas, que atualmente é de 20%. A medida entra em vigor em 1º de janeiro de 2021.
Nas redes sociais, o presidente Jair Bolsonaro comemorou a medida. Abaixo de uma imagem sua em um stand de tiro, ele comentou: “A Camex editou resolução zerando a Alíquota do Imposto de Importação de Armas (revólveres e pistolas)”. Também postou a informação de que o governo havia zerado impostos de importação de “509 produtos”, entre insumos usados para o combate à Covid-19, equipamentos de energia solar e produção médica, e alimentos, como “arroz, soja e milho”.
Para o Instituto Sou da Paz, essa comparação descabida equipara as armas de fogo a produtos utilizados para salvar vidas. “Não existe qualquer relação em isentar a importação de armas de fogo e o controle da pandemia. A flexibilização ao acesso a armas de fogo é apenas uma prioridade e um compromisso pessoal do presidente que em nada contribui para o enfrentamento da crise sanitária”, afirmou a ONG, por nota.
Levantamento do instituto aponta que desde janeiro de 2019 foram publicados dez decretos e 13 portarias do governo ligados à questão armamentista. Conduta coerente com o pensamento de Bolsonaro, que nunca escondeu a intenção de ver “todo mundo armado” e cita o “armamento” como uma bandeira, ao lado de “Deus” e da “família”.
“Ele não é só o presidente dos adoradores de armas. Quando fala abertamente sobre armar a população, ele dá o tom. Não é só aquela discussão de legítima defesa, que é uma falácia. É muito preocupante, não só o impacto para segurança pública, mas para a democracia”, reforçou a diretora de Programas do Instituto Igarapé, Melina Risso.
Mesmo antes da isenção, a importação de armas no país este ano, com números ainda em evolução, já é quase o dobro do registrado em 2019 e mais do que o triplo de 2018. Segundo dados do Sistema Integrado de Comércio Exterior (Siscomex), do Ministério da Economia, 102,3 mil armas estrangeiras foram compradas até meados de novembro por pessoas físicas e jurídicas e por órgãos públicos.
No geral, o valor gasto com armas e munições estrangeiras, incluindo espingardas, carabinas e suas peças, totalizou US$ 45,3 milhões (R$ 228 milhões) até meados de novembro deste ano, 35% a mais do que o desembolsado no ano passado inteiro. Os dados do Siscomex abrangem armas de fogo e suas munições, excluindo itens como cassetetes, pistolas de ar e armas brancas. Também desconsideram o valor gasto em armas de guerra, de uso restrito das Forças Armadas.
Em 2019, foram importados 54,6 mil armamentos, o que já representava um salto em relação à série histórica desde 2009 e ao ano de 2018, último do governo do usurpador Michel Temer, quando a tendência de alta teve início. Em 2018 foram importadas 33,2 mil armas por pessoas físicas e jurídicas de todo o país – 28,3 mil delas eram revólveres e pistolas. Somado, o número de importações em uma década, de 2009 a 2018, foi de 83,6 mil unidades, número 18% inferior ao total importado apenas neste ano.
A flexibilização levou a um aumento de 601%, em dez anos, na quantidade de armas em poder de cidadãos comuns. Nos primeiros oito meses de 2020, os brasileiros registaram 105 mil novos armamentos, nacionais e importados, no Sistema Nacional de Armas da Polícia Federal – número 59% superior ao do mesmo período de 2019.
Perdas tributárias
Além do estímulo à violência, uma estimativa a partir do custo total dos revólveres e pistolas estrangeiros que entraram no país este ano informado em dólares pelo Siscomex aponta que a Receita Federal deve recolher o equivalente a US$ 5,6 milhões (R$ 28,1 milhões) somente em imposto de importação em 2020. Com a resolução publicada pela Camex, essa receita cairá a zero no próximo ano.
“É uma medida que não apresentou um estudo, inclusive de impacto econômico. É algo que não passa pelo financeiro, mas sim por dar uma resposta a pressões de grupos pró-armas”, critica a advogada Isabel Figueiredo, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Para o gerente de “advocacy” do Instituto Sou da Paz, Felippe Angeli, a redução de tributos sobre armamentos em um cenário de pressão fiscal — gerado pelos impactos econômicos, sociais e sanitários da pandemia da Covid-19 — reforça a noção de que se trata de um “tema pessoal” para o presidente.
“Mais armas em circulação, mais gastos com saúde, segurança e com o sistema penitenciário. É necessário que o Estado taxe esses produtos parar arcar, inclusive, com esses gastos”, conclui Angeli.
Em nota, o Instituto Igarapé apontou que a maior entrada de armamentos no país, aliada a medidas recentes do governo federal que dificultam o rastreamento de armas e munições, “facilita a vida de grupos criminais”.
“Armas e munições legais podem cair na ilegalidade e os baixos controles dificultam as investigações e a prevenção desses desvios”, diz um trecho da nota, que também classifica a decisão de zerar a alíquota sobre revólveres e pistolas como “um exemplo da captura da agenda do governo federal por grupos de interesse, em prejuízo da totalidade dos cidadãos (que perdem recursos dos impostos)”.
O Ministério Público Federal abriu dois procedimentos de investigação, em abril, para apurar se houve interferência de Bolsonaro no Exército e no Ministério da Justiça com o objetivo de afrouxar regras de acesso a armas e munições. Para os procuradores, a flexibilização forçada por ele facilita o acesso do crime organizado a armas e munições desviadas.
Da Redação