A decisão condenatória da Turma do TRF-4 não surpreendeu ninguém, já que o próprio Presidente daquele Tribunal já fizera a inusitada declaração de que a sentença de primeiro grau “era impecável”, muito antes da turma de seu Tribunal tê-lo julgado. O ineditismo do ato, em si, é uma anomalia de demérito da justiça. E se a regra e a simbologia do Poder Judiciário marcam a discrição, na atuação de seus integrantes, em prol do dever de imparcialidade, o espetáculo público da e na justiça arrasta seu prestígio à crise e ao descrédito. A autoridade judiciária só faz propaganda da lei, nos autos do processo.
Os órgãos da aplicação da lei assim não se sensibilizam com o que é fundamental e irradiador no pacto fundamental do Brasil, que é a dignidade da pessoa, na Constituição-cidadã.
Para secundar aquela declaração antecipada, o Presidente do TRF-4 viajou à Brasília às vésperas do julgamento, deixando a impressão de que buscava apoio para uma espécie exótica de antecipado incidente de uniformização de jurisprudência, para que ele não ficasse mal, em razão daquela sua declaração despropositada.
Na verdade, o que se impõe à reflexão é a unidade da jurisdição brasileira e a heresia interpretativa que levou à momentosa condenação, já que existem normas de ordem pública, que não servem ao sapateio da conveniência política, como disfunção. Se um particular viola uma norma imperativa, chamada norma cogente, ele pratica o que a doutrina denomina de fraude da lei. E, se o interprete oficial da lei viola a regra imperativa, cogente, ele não pratica fraude da lei? Aliás, há um princípio de direito que preleciona ‘ninguém pode fazer de forma indireta o que diretamente a lei proíbe’. Se o sistema jurídico de um país é unitário, a violação de uma norma imperativa não gera uma intolerável disfunção na intimidade do próprio sistema, desacreditando-o?
Mas, falando-se que a ordem jurídica é unívoca, é una, invoca-se a lição de Carlos Alberto Menezes Direito e Sergio Cavalieri Filho, comentando o artigo 935 do Código Civil. É deles a simplicidade que explica a concepção unitária de nossa jurisdição. “A União e os Estados organizam seu aparelho judiciário, nomeiam seus servidores, suas autoridades judiciárias, mas todos exercem uma única função, a função jurisdicional, nos limites de suas respectivas competências, como órgão de uma só fonte, que é a Nação” (p. 768 Código Civil Interpretado, Carlos Henrique Abrão e Cristiano IMHOF, 3ª ed. 2002, Conceito).
Divulgou-se fartamente pela imprensa que a aquisição da propriedade do imóvel, um apartamento tríplex, ocorreu através da construção de uma denúncia propagada em prosa e verso, pelos meios midiáticos, como se não fosse da lei a simetria das partes, acusação e defesa, no direito penal brasileiro.
Para o Código Civil do Brasil, o dono de um imóvel, pelo teor de seu artigo 1.245, é aquele que tenha a sua escritura pública registrada em seu nome, no Cartório Imobiliário. Nesse caso o direito do proprietário se intitula direito real. Se existente um contrato ou compromisso de compra e venda, o direito do adquirente é titulado como pessoal.
Veja-se, pois, que o direito brasileiro estabelece a obrigatória condição para reconhecer a existência do direito de uma propriedade: o registro, no Cartório de Registro.
Essa regra jurídica é de natureza pública e sua violação configura um absurdo tão grande que o elegante linguajar jurídico lhe tascou a etiqueta de teratológico.
Vê-se, pois, como se define essa vitória magistral da condenação, para desacreditar a Justiça:
1) atribui-se a propriedade ao ex-Presidente do tríplex, que está penhorado, por ordem do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, em garantia do crédito executado contra a pessoa jurídica, em cujo nome está registrado o mesmo imóvel;
2) adota-se, como razão de decidir, um direito de propriedade que não emerge de escritura pública registrada.
3) o saber de Procuradores convenceu Juízes, que além do direito real que decorre da escritura registrada e do direito pessoal que decorre de compromisso particular, existe um terceiro direito, que é o da cabeça das atuais autoridades, impossível de ser registrado de acordo com o dever imposto pela regra de direito civil; essa heresia se expande quando se sabe que sentença penal não transfere propriedade, ela não pode ser registrada no Cartório Imobiliário. Surpreendentemente, essa interpretação aplica, às avessas, o principio, porque ‘ela realiza de forma indireta, o que diretamente a lei proíbe’. E, mesmo com a clareza da regra do direito civil, sobre a obrigatoriedade do registro para alguém ser considerado dono, as sanções penais são aplicadas considerando ser o réu proprietário, com base num depoimento, que teve sua pena fartamente reduzida, e sem ouvir a testemunha da defesa, que poderia refutar, ou não, versão do acusador.
Finalmente, se acaso a interpretação do conjunto das provas (totalmente descabida) foi para além do razoável, aconteceu o delírio, como convém à justiça dos regimes autoritários. Na verdade, o que o Supremo Tribunal Federal reconhece como norma constitucional escrita é o princípio da razoabilidade, e sua invocação jamais poderia acontecer, dispensando-se a regra escrita da exigência do registro, para reconhecer-se o verdadeiro dono do apartamento. Afinal, é uma norma de ordem pública e a sua violação é denominada fraude da lei. Por isso a sentença criadora dessa disfunção generalizada pode ser taxada de teratológica e é nula, e o Poder Judiciário apequena-se, ele que já foi bandeira de luta para reconquista dos predicados da Magistratura e a sua independência.
E o regime das leis, diz-se Constituição, historicamente nasceu para limitar a atuação do Estado.
Feres Sabino é advogado, ex-Procurador Geral do Estado de São Paulo e foi candidato do PT a prefeito de Ribeirão Preto em 2008