Dois eventos de grande alcance delimitaram o debate sobre segurança pública na modernidade: a emergência do Estado nacional e as revoluções burguesas. O primeiro implicou a monopolização do uso legítimo da violência nas mãos do Estado. A violência “privada” ficou restrita à autodefesa, sendo vedada a formação de aparato armado fora da jurisdição do Estado, como as milícias, por exemplo.
O segundo implicou a transformação da segurança em direito humano, ao lado da liberdade, da igualdade e da propriedade. A contradição entre direitos humanos e segurança pública é uma invencionice recente, que identifica apenas o criminoso como o único sujeito de direito, ou apenas as vítimas e os policiais, como se fossem excludentes.
Assim, trabalhadores da segurança pública deveriam ser vistos como outras categorias profissionais que prestam serviços públicos essenciais, seja segurança, saúde ou educação. Policiais, enfermeiras e professoras são, em geral, profissionais dedicados, nem sempre valorizados quanto à formação e remuneração, encarregados das nobres tarefas que garantem nosso bem-estar. Por razões históricas, contudo, o tema da segurança sempre inspirou cuidados.
Não é casual o fato de o constituinte de 1988 não ter enfrentado a questão. Num país escravocrata e patrimonialista, a relação entre segurança e direito é mais complexa. Praticamente todos os levantes ocorridos no Brasil por liberdade, igualdade ou acesso à propriedade foram sufocados por forças policiais. O direito humano à segurança sempre foi usado contra a luta social por todos os demais direitos reconhecidos pela modernidade, na forma de repressão ao ativismo político e sua consequente criminalização.
O desafio que cabe às forças progressistas é justamente o de compatibilizar dimensões da questão que parecem antagônicas: a defesa dos interesses legítimos do trabalhador da segurança pública, considerada sua especificidade de força armada, e o respeito ao direito de todos os demais cidadãos a lutar pelos seus interesses, individuais ou coletivos. Mas não podemos descuidar de dois problemas que a ascensão da extrema direita fez ressurgir.
O fortalecimento das milícias —com as quais o clã Bolsonaro mantém íntima relação—, regra geral derivada da corrupção policial. E o conflito federativo com “sinal trocado”: se na República Velha, governadores utilizaram suas brigadas e polícias para confrontar o governo central, hoje, com e por Bolsonaro, criou-se, de cima para baixo, uma perigosa tensão entre os governos estaduais e as polícias militares. Um novo foco de crise institucional.
Fernando Haddad é professor universitário, ex-ministro da Educação (governos Lula e Dilma) e ex-prefeito de São Paulo.