Por anos, o Brasil conviveu com a falsa informação de que a OMS preconizava como parâmetro ideal de atenção à saúde a relação de um médico para mil habitantes. Não se sabe a origem desse número, disseminado por quem dele se beneficiava, que produziu enormes danos à saúde no país.
É voz corrente mundo afora que o SUS brasileiro é uma conquista civilizatória. Após o regime militar, que nos legou indicadores sofríveis, os progressistas inscreveram na nossa Carta de 1988 o princípio da universalidade do direito à saúde. De lá para cá, sem que tenha havido incremento substancial do investimento em saúde como proporção do PIB, os indicadores da área passaram por evolução surpreendente, sobretudo quanto à expectativa de vida e mortalidade infantil e materna. Um segundo marco importante foi a consolidação da Estratégia Saúde da Família.
Não há dúvida de que o foco na atenção básica é um dos responsáveis pelos resultados positivos. A ampliação do acesso à atenção básica pode ser medida pela expansão do atendimento das equipes de saúde da família que, em 1998, chegava a 4,4% da população e dez anos depois atingiu 70%. A terceira revolução, inquestionavelmente, foi o programa Mais Médicos, o mais extraordinário legado social da gestão Dilma.
Dilma enfrentou a mais injusta campanha corporativa contra a iniciativa cujas sequelas políticas se fazem sentir até hoje. Neste momento em que o Brasil abre mão de vantagens comerciais de país em desenvolvimento para pleitear uma vaga na OCDE, convém lembrar que nosso país conta com 2,1 médicos por mil habitantes, enquanto a média dos países da OCDE é de 3,4. Se considerarmos a distribuição geográfica, a situação é ainda pior. Norte e Nordeste têm menos da metade dos médicos do Sudeste, proporcionalmente.
O Mais Médicos permitiu levar assistência médica a mais de 60 milhões de brasileiros desassistidos, em parte, graças à vinda de médicos do exterior, especialmente cubanos, que preencheram as vagas dispensadas pelos médicos brasileiros, que tinham prioridade. Bolsonaro, sob o pretexto ridículo de que os médicos cubanos queriam implantar a guerrilha no Brasil, acabou com o programa, deixando os pobres até hoje ao deus-dará.
Considerando-se ainda que os cortes orçamentários podem fazer o investimento em saúde por habitante cair, não espantaria observar uma inédita reversão da tendência histórica. Pelo perfil menos caricato do ministro, tem-se dado pouca atenção ao fato de que também na saúde o governo parece mal sintonizado com os desafios do setor.
Fernando Haddad é professor universitário, ex-ministro da Educação (governos Lula e Dilma) e ex-prefeito de São Paulo. 4
Coluna originalmente publicada na Folha de S. Paulo