Uma das principais propostas de Jair Bolsonaro durante sua campanha presidencial foi a de mudanças no Estatuto do Desarmamento para facilitação da posse de armas para cidadãos comuns. Nesta terça-feira (15) ele assinou o decreto sobre armas, ignorando completamente o alto número de feminicídios no país.
De acordo com dados do Mapa da Violência e do Atlas da Violência, em 2016, 4.645 mulheres foram assassinadas no país, o que representa uma taxa de 4,5 homicídios para cada 100 mil brasileiras. Nesse mesmo ano, 2.339 mulheres foram mortas por arma de fogo, segundo um levantamento feito pelo Instituto Sou da Paz.
Segundo a cofundadora da Rede Feminista de Juristas (DeFEMde), a advogada Marina Ganzarolli, facilitar a aquisição de armas é contribuir para mais casos de violência doméstica e mortes de mulheres no Brasil. “Diversas pesquisas trabalham com indicadores de risco nos casos de violência doméstica, um desses indicadores é o acesso a armas de fogo, porque quando o homem tem o momento de explosão – que é o momento de agravamento do ciclo de violência, que depois vem seguido de pedidos de perdão, de falas de que vai melhorar – se ele tiver uma arma ao seu alcance, ele vai usar”.
A maioria das mulheres vítimas desse crime são assassinadas por seus parceiros, e a maior parte desses casos acontece dentro de casa. Armas de fogo são a segunda opção utilizada para execuções, segundo uma pesquisa realizada pelo Ministério Público de São Paulo. Por isso a liberação da posse de armas pode ter efeitos trágicos para todas as mulheres da sociedade.
“Existem várias pesquisas que atestam que havendo arma de fogo dentro da residência no momento mais grave de explosão, quem vai utilizar essa arma é o agressor, então vai aumentar o risco de morte nas casas de diversas mulheres que se encontram em situação de violência doméstica, pelo simples fato que o acesso a arma de fogo é um indicador de risco de letalidade”, afirma Marina.
Um dos argumentos utilizados por Bolsonaro para a flexibilização da posse de armas de fogo é que as mulheres as usariam para se defender, principalmente em casos de estupro. Para Marina, essa explicação não faz sentido. Segundo o Atlas da Violência 2018, 68% das vítimas de estupro são menores de idade, desse número, 50,9% são meninas menores de 13 anos e 27% possuem entre 14 e 17 anos.
“Eu acho improvável que uma menina de 13 anos vai usar uma arma de fogo para se defender. Essa justificativa vem de alguém que não tem o menor conhecimento sobre políticas de segurança pública adequadas para o enfrentamento desse tipo específico de crime”, afirma a advogada.
O Atlas da Violência mostra também que cerca de 10,3% das vítimas de estupro possuem alguma deficiência, sendo 31,1% desses casos deficiência mental e 29,6% transtorno mental.
“O estupro de beco, de terreno baldio não representa nem 6%, a maior parte dos estupros é cometido dentro de casa, e o agressor é conhecido da vítima, é um homem adulto abusando de uma criança que nem imagina que pode se defender, a reação natural na grande maioria dos casos é a total imobilidade da vítima que entra em estado de choque”, explica Marina.
Mesmo nos casos em que envolvem mulheres adultas, a maior parte das agressões acontecem quando elas estão em estado de vulnerabilidade, normalmente são drogadas, ou estão bêbadas. “Em um momento que ela não tem condições de reagir, porque foi drogada, ou porque está bêbada, desacordada, nesse cenário ela não tem como usar uma arma de fogo”, denuncia a advogada.
Marina explica que a violência contra mulher não começa com as agressões físicas, mas que ela é um ciclo, que inicia no controle psicológico e evolui para a parte física. “A violência doméstica começa com a humilhação, controle psicológico, ciúmes obsessivos que vem disfarçado de uma preocupação e depois parte para violência moral, com o homem dizendo que se ele não a quiser ninguém mais vai querer porque ela não presta para nada, a violência física vem por último, e começa com um empurrão, um tapa, quebrando um copo na parede”.
Existe um mito sobre esse tipo de violência de que as vítimas são apenas mulheres submissas, e com base nessa mentira se justifica o uso de armas como proteção, mas isso não é verdade, a violência contra mulher, principalmente a doméstica, é um ciclo muito bem planejado pelo agressor, que começa com pequenos atos e vai crescendo.
“Conheço um caso de um feminicídio de uma delegada que para essa profissão treinou muito o uso de armas de fogo, ela portava uma arma e foi assassinada pelo marido com uma arma branca. A violência psicológica e moral é capaz de imobilizar mesmo a mais experiente das mulheres que possui arma, essa ideia de que a mulher se defenderia com uma arma de fogo é uma ilusão sem fundamento”, alertou a advogada.
Entre 1980 e 2016 cerca de 910 mil pessoas foram mortas por armas de fogo no Brasil. O regulamento sobre a posse de armas é de 2003, antes disso era comum ver anúncios de venda de armas em jornais e revistas. O Estatuto foi criado para restringir a posse e o acesso no país.
“Essas mortes são evitáveis e como que nós a evitamos? A gente pega esses indicadores de letalidade e os neutraliza com inibidores de risco, e um dos mais importantes inibidores de risco é cessar o acesso a armas de fogo”, finalizou Marina.
Por Jéssica Rodrigues, para a Secretaria Nacional de Mulheres do PT