O debate sobre a reforma da Previdência esfriou, mas deve voltar com a posse do novo governo. Especula-se sobre as propostas que serão apresentadas. O futuro ministro da Economia, Paulo Guedes, por exemplo, gosta do sistema implementado no Chile em 1981, durante a ditadura Pinochet. Ajudou a implementá-lo, inclusive. Mas para o economista Andras Uthoff, especialista no tema, do ponto de vista social o sistema, totalmente privado, mostrou-se um fracasso, com a maioria dos trabalhadores recebendo menos do que o salário mínimo e quase metade abaixo da linha de pobreza. Trata-se de um modelo que depende da capacidade de poupança do trabalhador.
Professor da Faculdade de Economia e Negócios da Universidade de Chile, Uthoff esteve recentemente no Brasil para falar do assunto, inclusive em seminário organizado pelo escritório do advogado trabalhista Ericsson Crivelli. Chegou a chamar o sistema em vigor de “monstro”, na medida em que o mercado passa a ter poder praticamente absoluto sobre os direitos sociais.
Ele acredita que qualquer sistema precisa considerar que boa parte da população não está em condição de contribuir, e a previdência deve proteger essa parcela da sociedade. “O que estamos notando no mundo inteiro é que o mercado de trabalho não se formaliza”, diz Uthoff, citando fatores como robotização, automação e empreendedorismo, que afastam enormes contingentes do trabalho formal e, consequentemente, da capacidade de poupar. Por isso, imagina que é preciso haver um piso para os mais necessitados, um sistema solidário para quem tem condições um pouco melhores e, como complemento, permitir a capitalização individual, em que se baseia o modelo chileno.
Lá, o trabalhador, ao se aposentar, receberá uma pensão mensal vitalícia com base no dinheiro investido pela administradora do fundo de pensão (AFP) escolhido. “A situação para os trabalhadores do Chile é de certo modo dramática”, diz Uthoff, lembrando que a acumulação de ativos financeiros corresponde a aproximadamente 75% do Produto Interno Bruto (PIB), dando grande poder econômico ao setor. Mas quem chega à aposentadoria está recebendo pensões, em sua maioria – 79%, informa o professor – abaixo do mínimo, que lá corresponde a US$ 420. E há 44% abaixo da linha da pobreza, ganhando em torno de US$ 220.
A conta varia, mas segundo o economia um trabalhador que contribui para o sistema, hoje, recebia em torno de US$ 1.000, considerando a mediana (a metade que ganha mais e a metade que ganha menos). E a pensão, também mediana, é de aproximadamente US$ 200. Ou seja, em torno de 20% do rendimento da ativa. Enquanto isso, metade dos ativos de propriedade dos trabalhadores está investida no exterior, na maior parte em títulos. No Chile, fica “em instrumentos financeiros que não têm respaldo significativo na economia real”.
Comandado pelo mercado
Um sistema injusto, que embute riscos para o trabalhador. “O que há por trás na ideologia que se implementou em 1981 é um modelo neoliberal, que privilegia a liberdade individual”, observa Uthoff. Mas o trabalhador não tem opção, ao contrário do sistema antigo. “Quando chega à aposentadoria, ele não pode comprar um apartamento e viver de renda, só pode usar (o dinheiro poupado) para uma renda vitalícia. É mentira que há uma liberdade.” Trata-se, conclui, de um mercado comandado pelo setor financeiro. Instalado durante uma ditadura, esse modelo, que incluiu um alto custo em termos sociais, poderia ser implementado em um regime democrático? Impossível, assevera o professor, que também já foi conselheiro regional da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
No Chile, o empregador ficou de fora – não contribui para o sistema. Isso é parte do modelo neoliberal, diz o professor. “É um conto lindo: baixemos os custos de contratação de mão de obra, só 10% para a previdência (pelo sistema, o trabalhador recolhe 10% do salário, além de uma comissão para a administradora), e o empresário não contribui. Deixemos que esses 10% vão para o setor financeiro. Isso permite que o empresário possa investir, e como tem mão de obra barata vai contratar muito mais. Essa é a história que convenceu os militares. Mas nada disso, muito pouco aconteceu no Chile.”
Há um movimento em curso no país, No más AFP, que defende o fim dos fundos de pensão. Como lembra Uthoff, prega uma “transformação radical, fechar tudo e começar de novo”, o que ele considera difícil de se viabilizar. Uma mudança ocorreu 10 anos atrás, no governo de Michelle Bachelet, quando foi criado o chamado Pilar Solidário, que instituiu uma pensão básica para quem está fora do sistema de capitalização e um complemento para quem conseguiu manter uma poupança. Mas, para ter direito, a pessoa precisa comprovar que não tem renda suficiente para sobreviver.
“Quando você que a grande maioria está muito abaixo do salário mínimo, significa (que o sistema) é um fracasso”, conclui o economista. “(Diziam que) as pessoas iam melhorar sua pensão por causa da formalização do mercado de trabalho, mas isso não ocorreu.”
Atento ao debate que ocorre no Brasil, ele observa que não existe uma receita e cada país tem de fazer seus ajustes, preocupando-se, em primeiro, com a capacidade de poupança da população, garantindo uma abordagem coletiva da situação e preservando garantias gerais. “Há um risco demográfico, mas há também na capitalização”, lembra Uthoff. “É preciso ir adaptando seu sistema às necessidades do país, definir parâmetros e ajustar às condições financeiras do país. O que estamos notando no mundo inteiro é que o mercado de trabalho como tal não se formaliza. Boa parte da população não está em condição de contribuir.”
Assim, ele volta a defender um sistema de certo modo misto, mas que preserve direitos do que têm menos condições – ou nenhuma – de contribuir: um benefício o mais universal possível para a faixa mais pobre, um sistema solidário (incluindo trabalhadores, empregadores e governo). A modalidade de poupança seria complementar. “Creio que o sistema brasileiro tem muitas coisas boas. Pode melhorar. Mudar totalmente não é a solução.”