Votar com um livro na mão para rejeitar o obscurantismo: o último gesto simbólico dos opositores a Jair Bolsonaro não terá sido suficiente para fazer virar a votação. Depois de quase levar a eleição no primeiro turno, ele venceu no domingo, 28 de outubro, com 55,1% dos votos contra 44,9% de seu adversário do Partido dos Trabalhadores (PT), Fernando Haddad.
Sua eleição acontece no final de uma campanha marcada pela disseminação de notícias falsas nas redes sociais e pela exacerbação da violência física e verbal. À noite, soldados comemoraram a vitória nas ruas de Niterói, cidade em frente ao Rio de Janeiro, na entrada da Baía de Guanabara, ressuscitando imagens que se acreditava pertencerem ao passado.
Uma conjunção sem precedentes.
Como explicar a ascensão meteórica de Jair Bolsonaro que, há poucos meses, era um estranho no jogo político brasileiro?
No lado mais curto, a onda inferior que trouxe a extrema direita ao poder aparece como resultado de uma conjunção sem precedentes entre ultraliberalismo, fundamentalismo religioso e demoagogia. Ele assinala a rejeição do PT, em que os principais grupos midiáticos brasileiros desempenharam seu papel, mas também o fracasso da direita tradicional, cujo candidato, Geraldo Alckmin, fez menos de 5% no primeiro turno da eleição, em um cenário de crise econômica, desestabilização institucional e escândalos de corrupção.
A longo prazo, esta pesquisa revela as divisões históricas da sociedade brasileira, começando com a memória aberta do regime militar (1964-1985).
Bolsonaro é um nostálgico da Ditadura, ele repete seus slogans e celebra seus piores torturadores. Que não tenha sido possível construir uma frente republicana contra ele, diz muito sobre a fragilidade da democracia brasileira.
A Constituição de 1988 e os trinta anos da “Nova República” não conseguiu varrer todo o desejo de vingança daqueles que vêem ditadura como uma idade de ouro, a oposição como um mal para conter e pluralidade – política, étnica, cultural – como o flagelo da identidade nacional. Os atos de violência que têm pontuado a campanha e eleição lançam uma luz sobre a diferença entre a imagem internacional de um brasileiro mestiço e aberto, e as realidades de uma sociedade marcada pela difusão do racismo e da magnitude de uma divisão social aberta.
O mito de uma “ditadura suave”
Durante a campanha, vimos um Bolsonaro raivoso diante de multidões radiantes, jurando adversários de serem enviados à prisão e desfazer terras indígenas protegidas pela Constituição. Em suas primeiras declarações de vitória, pontuada pela oração do famoso pastor evangélico Magno Malta, ele agora está empenhado em pacificar o país, valorizando a liberdade e recuperando o respeito das nações ocidentais.
O que esperar dessa figura instável que afirma ser capaz de governar uma Bíblia em sua mão e a Constituição na outra? Desde o século XIX, as classes dominantes brasileiras são mestres na arte de governar para inglês ver, tomando cuidado para mascarar qualquer política autoritária atrás de uma fachada de compromisso com as convenções internacionais. Até mesmo a Ditadura Militar conseguiu dar a ilusão de um ritual democrático ao tolerar um partido de oposição controlado e um processo eleitoral, apesar de um regime de censura e perseguição aos opositores, que praticava a tortura.
Em comparação com os massacres e sequestros em massa cometidos por seus colegas chilenos ou argentinos, as forças armadas brasileiras conseguiram seduzir uma grande parte da mídia ocidental, atores políticos e empresários. Estes últimos aderiram ao mito de uma “ditadura branda”, fascinada por taxas excepcionais de crescimento e por grandes projetos ilusórios de modernização que retratam a imagem de um país em plena expansão.
Castelo de areia, construído sobre uma estratégia interminável endividamento, redistribuição maciça da riqueza do trabalho para o capital e uso irresponsável de recursos naturais, entrou em colapso no final de 1970, mergulhando o Brasil em uma espiral inflacionária que durou mais de quinze anos.
Simpatia com os círculos econômicos norte-americanos
Esta história, depois de amanhã, pode repetir-se: certamente, o Partido Liberal Social (PSL) de Bolsonaro construiu sua campanha em uma prática industrial de mentiras – atos de fraude eleitoral maciça revelados no final de campanha pelo jornal Folha de São Paulo – e uma estratégia de intimidação permanente do oponente.
Bolsonaro também se beneficiou de um enfraquecimento único das instituições democráticas, estimulado pela prisão do candidato Luiz Inácio “Lula” da Silva, favorito nas pesquisas, preso sobre uma base jurídica altamente questionável.
Mas a vitória clara do candidato de extrema direita nas urnas deu-lhe uma grande oportunidade de aplicar suas promessas de repressão política em meio a um clima de legitimação internacional e, provavelmente, sob o patrocínio de Donald Trump, que correu para ser o primeiro a felicitar seu novo colega brasileiro.
Confrontado com este risco, a vigilância dos observadores internacionais será crucial, enquanto o seu programa de privatizações e remoção da progressividade do imposto já atrai para Bolsonaro simpatia comunidade empresarial norte-americano, representado pelo apoio público Wall Street Journal . Em um clima internacional desfavorável à defesa dos direitos humanos, caberá à sociedade civil européia mobilizar-se para lutar contra o isolamento dos democratas no Brasil.
A experiência dos anos 70
Durante a Guerra Fria, primeiro foi necessário testemunhar o derramamento de sangue do golpe chileno de 1973, de modo que a comunidade internacional ficou alarmada com a expansão das ditaduras militares latino-americanas. Diante do discurso de extermínio de Bolsonaro e das centenas de agressões físicas cometidas em seu nome durante a campanha, não podemos nos dar ao luxo de esperar uma década para reagir.
A experiência dos comitês internacionais de solidariedade dos anos 1970, na captação de recursos, na organização de campanhas, na mobilização do espaço midiático e na criação de plataformas para os democratas latino-americanos, deve nos inspirar mais do que nunca. Contribuiu, em sua escala, para o surgimento e sucesso de novas formas de resistência no contexto perigoso da ditadura militar brasileira: redes de assistência social da “teologia da libertação” aos sindicalismos autônomos da Grande São Paulo, o social-ambientalismo amazônico de Chico Mendes à primeira coordenação indígena.
Muitos padres rurais, caciques ameríndios e líderes camponeses cujas cabeças foram pagas sobreviveram graças a essa solidariedade internacional. É nosso dever viver de acordo com essas iniciativas passadas.
Antoine Acker é professor assistente na Universidade de Zurique (Suíça). Silvia Capanema é professora-pesquisadora da Universidade Paris-XIII.
Por Le Monde