Existe algo de substancial que diferencia direita e esquerda em qualquer lugar do mundo. Em democracias ou em ditaduras, nas velhas repúblicas do século XIX ou nos Estados contemporâneos, sempre será possível identificar diferenças elementares entre uma e outra.
É claro que certas circunstâncias ou conjunturas podem dar maior ou menor nitidez a estas diferenças. Esquerda e direita podem ser aliadas, podem ser confundidas ou mesmo descaracterizadas. Mas até para explicar a descaracterização, haverá o fundamento que explica as características históricas e essenciais de uma e de outra.
Esse debate remonta ao tempo dos jacobinos, e certamente as noções de direita e esquerda de lá até hoje não são estanques, imunes ao tempo ou indiferentes aos contextos históricos. Nem sempre foi como é agora. Mas como a intenção aqui não é divagar sobre o conceito, vamos partir do pressuposto, ou do fato, de que ainda que seja necessária uma visão microscópica, a diferença nas tradições políticas de esquerda e de direita no mundo está lá, no código genético de ambas. E o cromossomo “x” da esquerda nesse caso se chama igualdade social.
Direita que se preze não perde noites tentando encontrar soluções para a igualdade social. Pode até estar no seu roteiro de conveniências, mas nunca foi prioridade. Não pode ser. O senhor mercado não deixa. Este senhor em idade e em poder está preocupado com a força das moedas, com os algoritmos financeiros, com a avidez dos bancos. E operar a igualdade social significaria, em termo gerais, um dividendo sem fim para corporações e fundos monetários que não poderiam existir sem o abismo desigual entre suas riquezas e o valor precário do trabalho de bilhões de assalariados no mundo.
Existe certa esquerda chamada “liberal” que antes de dormir toda noite costuma fazer orações ao Mercado, mas se posiciona em favor de uma série de direitos sociais que ela mesma confunde com direitos estritamente políticos, sobretudo relacionado a segmentos historicamente excluídos. Na prática, essa “esquerda liberal” é composta por defensores de uma igualdade social meia boca. Igualdade de direitos, ok. Mas os cifrões são sagrados. Alguns tem, outros vivem sem, e a grande maioria morre tentando. E assim a vida segue.
Prefiro acreditar numa esquerda que navega na contramão desta via. Na esquerda que imagina um mundo no qual o equilíbrio de direitos não é possível sem o mínimo equilíbrio de riquezas. Numa esquerda que não enxerga democracia onde não é possível mirar igualdade plena de direitos. Políticos e sociais.
Então, para esta esquerda, é preciso organizar as relações sociais, políticas e econômicas de maneira que viabilize um mundo assim. Democrático e igualitário, posto que livre e igual a todos e todas.
Há uma solução histórica pouco testada e cheia de problemas chamada socialismo democrático. Seja esta a melhor solução, ou não seja, o problema é que a outra experiência, aquela do capital, já transbordou todos os tubos de ensaio do laboratório durante cinco séculos e jamais apresentou resultados minimamente aceitáveis do ponto de vista da sobrevivência da raça humana no planeta. Por isso, para nós daquela esquerda, a igualdade social é tão solene.
No Brasil, a história mais recente da luta em torno da igualdade social tem o PT como principal protagonista. Construir uma sociedade igualitária, vagamente chamada de socialista, sempre esteve presente no verso e prosa petista. Nas últimas três décadas o PT foi capaz de absorver, dar legitimidade e representar uma série de demandas sociais, todas elas relacionadas com a garantia de direitos a setores que estiveram ou ainda estão em condição desfavorável nas mais diversas relações de desigualdades em nossa sociedade.
Hoje menos do que ontem. E ontem muito menos do que nas duas primeiras décadas. Mas por maior que seja a distância e as demandas, o PT continua sendo principal a válvula de vazão das ideias e reivindicações em torno da igualdade social no sistema político brasileiro.
Não estou entre aqueles que acredita que o dom eleitoral do PT, existente desde o princípio, é incompatível com seu talento na defesa da igualdade social. Ao contrário. A defesa da democracia também sempre foi uma posição notório do partido. São elementos complementares que, contradições à parte, explicam o processo que resultou na eleição de Lula e no ciclo de desenvolvimento e inclusão social iniciado desde então.
O PT cometeu erros, mas acertamos em maior medida. A experiência de nossos governos e a relação dela com o contexto geopolítico no mundo dos últimos anos não pode jamais nos deixar a dúvida sobre o valor histórico do que fizemos no Brasil até aqui com Lula e Dilma. Não vou emular dados, mas eles estão aí para qualquer um que tenha um mínimo de honestidade, rigor analítico e conhecimento da história do Brasil e da América Latina.
Por outro lado, nisso consiste também outra explicação: as dificuldades que a esquerda vive no Brasil, novamente protagonizadas pelo PT, tem relação com certo esgotamento programático diante de um Brasil pelo qual fizemos muito, mas não temos certeza ainda sobre o que podemos fazer daqui para frente. A anestesia política de um balanço positivo sobre nossos governos, somados à necessidade voraz de afirmar esse legado num contexto de ascenso da luta de massas de direita no Brasil, não nos permite ter uma noção precisa dos sintomas que tem nos deixado enfermos nos últimos anos.
Estamos longe de uma doença terminal. A ideia de que o PT vai acabar é uma bobagem. É improvável. Mas a dúvida é: ainda teremos a saúde política que já tivemos?
Essa dúvida já existe há um tempo. É um fenômeno anterior a 2002. Mas de lá para cá os problemas se acentuaram.
O PT e a esquerda partidária se comportam como se os próprios partidos bastassem a si próprios. O sistema político institucional se basta. Basta estar no governo, basta compor o Estado. Basta vencer eleições diretas, votações no Congresso, defender o governo e seguir em frente.
Isso é falso. É perigoso.
As demandas sociais são intermitentes. Novas questões surgem o tempo todo. Novos problemas para novos períodos históricos. Novas soluções para novos problemas.
É preciso ter sensibilidade política para identificar os novos problemas, dar vida a novas questões e encontrar as novas soluções. E o Estado e o governo não têm uma sensibilidade tão apurada. O partido pode ter, e pode não ter. Depende de onde esteja, por quem seja composto, ou de quem seja aliado.
A sensibilidade está nas periferias políticas do sistema, nos lugares, nas pessoas e nos segmentos desiguais e marginalizados em termos de direitos. São estes segmentos que, providos de questionamentos e indignação, e a partir da capacidade de organização coletiva, podem infiltrar os novos problemas no debate público e dar densidade às suas pautas. Aí a sensibilidade do Estado e dos governos funcionam melhor. Com soluções à direita ou à esquerda, o sistema político institucional é pressionado a responder.
Não são apenas novas demandas, como sabemos. Existem os velhos problemas sociais que persistem sem solução.
O Brasil latifundiário de monoculturas que servem a meia dúzia de negociadores de nossa terra. O oligopólio da informação, sustentado vivamente com dinheiro e concessões públicas. As relações de poder entre a branquitude cínica e a negritude consciente ou não de sua condição, elemento estruturante para explicar qualquer aspecto da formação social, política e econômica do Brasil. E claro, a exploração descarada do tempo e da vida daqueles e daquelas que, na cidade ou no campo, cultivam calos nas mãos e nas mentes todos os dias, mais conhecidos pelos íntimos como classe trabalhadora, força motriz de qualquer economia em qualquer lugar em qualquer tempo histórico.
Todas estas e mais outras são questões seculares.
Mas até para estas velhas mazelas de nossa tradição social é preciso encontrar novas soluções. Novas perspectivas.
E a possibilidade de encontrar novas soluções, como se sabe, dependerá sempre da capacidade de organização política dos segmentos que estão diretamente vinculados a estas realidades. E estes segmentos, definitivamente, não são os mesmos de trinta anos atrás. Não são as mesmas pessoas. Não estão nos mesmo lugares. Não vivem no mesmo mundo.
Por outro lado, estes segmentos estão organizados. Mas o PT e da esquerda partidária, por dispersão, por miopia, ou por não considerarem relevante, estão distantes desses setores. Portanto, não podem representá-los.
Os partidos de esquerda no Brasil precisam fazer seu backup histórico. É a história que nos revela. Mas precisam atualizar o software em que operam suas ideias.
Não adianta pendurar nossa história na fraca estratégia de defesa de nossos governos. Defender nosso governo é nosso programa mínimo. E com democracia ou sem democracia, com golpe ou sem golpe, certamente um dia voltaremos a não estar lá. E voltaremos a lutar para estar lá. Porque governar é fundamental para construir a igualdade que queremos. Mas governar apenas, não é suficiente.
Não se trata de fazer o PT ou a esquerda a “voltar às origens”. Isso além de impossível seria perda de tempo. É exatamente o contrário. O PT e a esquerda precisam entrar em sintonia com seu tempo histórico. Governar simplesmente não resolverá o problema da igualdade e do aprofundamento da democracia no Brasil se nossos partidos não estiverem em sintonia plena com o novo cenário de demandas e organização social no país.
Qual a opinião da esquerda de trinta anos sobre as soluções para o novo cenário comunicacional no mundo e o direito à informação? Mal conhece o debate. Mal conhece as propostas de regulamentação que estão sendo organizadas.
O PT e a esquerda partidária já perceberam a ascensão de novas rotas de organização política da juventude? Sabe o que significas estas novas cores nos cabelos black de meninas negras que estão metendo o pé da porta da invisibilidade? O que elas querem “tombar”? O racismo? O machismo? O sistema? Já deixamos alguma vez as mesas do escritório para fazer essa pergunta? O que o PT e a esquerda acham sobre as novas expressões da cultura nas periferias? Jovens derramando sexualidade em músicas pop e gritando novas identidades de gênero.
O PT não tem coragem de tratar sobre a política de drogas esdrúxula que vigora no país, responsável por contrariar direitos mais básicos de pessoas assassinadas sumariamente jogadas em cela para compor a massa de uma das maiores populações carcerárias do mundo, mais de 40% destes sem sequer julgamento regular. Desigualdade absoluta. Qual a solução que apontamos para isso?
Governar não resolverá o problema da igualdade no Brasil se a política pública mais eficaz de nossos governos continuarem sendo a política do genocídio. Funcionando a todo vapor. Matando todos os dias. Enquanto nossos governos sorriem em propagandas orgulhosas sobre gastos volumosos com aquisição de armas e viaturas. Uma política de segurança pública que funciona explicitamente para proteger o crime organizado e planejado dentro dos bairros nobres por duques empresários em suas poltronas luxuosas ao mesmo tempo que aterroriza famílias negras nas periferias das cidades.
Nossos governos, nossos partidos, nossos quadros públicos estão preocupados com nossa força eleitoral, deveras importante. Mas nosso problema é parece que não temos mais mais tanta competência para produzir força social.
Uma sem a outra padece. E nossa capacidade de mobilização não pode ser medida em quantas pessoas colocamos nos atos em defesa do governo.
Até porque mobilização social não se resume a atos políticos. Os atos políticos da esquerda precisam voltar a ser consequência de um estado de mobilização social permanente que tem coragem de organizar núcleos, absorver pautas, dialogar com questões emergentes, enfrentar os velhos e novos problemas da desigualdade, convergir todo e qualquer interesse que tenha relação com a igualdade no Brasil e no mundo.
O espetáculo editorial da imprensa contra nós todos os dias e o poder judiciário funcionando de maneira espetacular para nos investigar, denunciar e punir não consistem em nenhuma novidade histórica no Brasil. Sobre a imprensa, há cem anos é assim. E sobre o poder judiciário, por favor, é a mesma lógica há quinhentos anos. Desde Tomé de Souza a “justiça” funciona perfeitamente contra qualquer setor que represente a mínima ameaça de reordenamento político e social no Brasil.
Então, se não há novidade histórica, porque a imobilidade?
Num cenário como esse, por mais difícil que seja, nosso horizonte mais propositivo não pode ser Lula candidato a novamente em 2018. A questão é com qual programa disputaremos as próximas eleições presidenciais? Aliados a que setores da sociedade organizada?
E se Lula viver mais 100 anos, e se a esquerda passar mais 100 anos governando o Brasil, o que seremos capazes de fazer por país mais igualitário? Que interesses teremos coragem de enfrentar.
Nossa sobrevivência não depende do desfecho do impeachment no Congresso ou no TSE. E com impeachment ou sem impeachment, nós não seremos extintos. A luta contra a interrupção do mandato de Dilma e contra a atual ofensiva de criminalização do PT e da esquerda são óbvias. Mas essa luta precisa ser consequência de nossa força na sociedade. E não o contrário. O objetivo estratégico do PT e da esquerda não pode sucumbir a governar para vencer eleições para governar para vencer eleições para governar para vencer eleições.
Ou estamos na ponta do debate político, do convencimento e da convergência das velhas e novas demandas, ou podemos perder uma oportunidade histórica de aprofundar a democracia e a conquista de direitos no país. Sabemos que a luta por igualdade não tem prazo de validade. Mas o próximo trem da história rumo a uma sociedade igualitária e livre pode demorar a passar novamente. E estamos dormindo na estação.
Gabriel Oliveira é estudante de comunicação, foi membro da Direção Estadual do PT da Bahia, chefe de gabinete do Deputado Federal Valmir Assunção (PT-BA) e atualmente compõe a direção estadual da EPS, tendência interna do PT