Numa tacada só, o presidente da República, Jair Bolsonaro, acabou com 35 colegiados e colocou 700 conselhos na mira do governo, ferindo de morte o fundamental direito à participação popular. O Decreto 9759/19 deu cabo à maioria dos conselhos sociais que integravam a Política Nacional de Participação Social (PNPS) e o Sistema Nacional de Participação Social (SNPS). Numa clara afronta à Constituição, centenas de conselhos de direitos e de políticas públicas deixarão de existir a partir de 28 de junho. Dentre eles, poderão ser extintos colegiados que discutem temas como direitos do idoso, política indigenista, transportes, trabalho e Previdência.
Com esse atitude autoritária, o atual governo ignora o papel que os colegiados exercem na democracia participativa sobre a qual se instaura o Estado Democrático de Direito. Esses espaços representam importante instrumento de aproximação entre a sociedade civil e o governo, uma vez que a participação política popular não se resume ao voto. A gestão das políticas públicas passa também pela inclusão da população nas esferas decisórias e, inclusive, com a possibilidade de fiscalizar as atividades exercidas por quem é eleito pelo voto popular.
Essa estreita relação é fundamental para a consolidação da democracia, que se concretiza com a livre circulação de informação e com a interferência direta da população nas políticas públicas. Diferentemente do Poder Legislativo, onde as várias correntes políticas podem se fazer representar mais facilmente, a estrutura tradicional do Poder Executivo oferece obstáculos ao pluralismo no processo decisório. A criação de mecanismos de participação social na Administração Pública busca neutralizar o deficit democrático.
Os processos de democratização são imperativo em relação à Administração Pública, que constitui a face mais visível do poder do Estado. Assim, os colegiados e conselhos, ampliam a participação democrática do povo nos rumos das políticas públicas ou na efetivação dos direitos garantidos legal e constitucionalmente e representam inquestionável e efetiva ferramenta. A aproximação entre a sociedade e o aparelho estatal criado para servi-la possibilita que se colham elementos para melhor orientar decisões governamentais, além de garantir a elas maior legitimidade.
A Constituição Federal de 1988 prevê o engajamento da sociedade civil no planejamento, gestão e fiscalização de políticas públicas e assegura a participação dos trabalhadores e empregadores nos colegiados dos órgãos públicos. O constituinte fez por bem em assegurar a ampla interferência popular na condução dos assuntos de governo, abrindo a gestão à sociedade, tornando-a apropriada à soberania popular. Dessa forma, cumpre-se a exigência do princípio do Estado Democrático de Direito, fundamental de organização do Estado
Para dar um exemplo, a extinção do Conselho de Recurso do Sistema Financeiro Nacional (CRSFN) – que tem função de órgão recursal – deixa atividades sem responsáveis pela execução. Outro caso é o do Comissão Interministerial de Governança (CGPAR) – que cuida das participações societárias e deve prestar contas ao Tribunal de Contas da União (TCU). No caso dos conselhos ligados ao meio ambiente – como é o caso da Comissão Nacional da Biodiversidade (CONABIO) e da Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT) – esta extinção representa uma mácula ao princípio do não retrocesso. Isso porque a questão ambiental passou a ser encarada com a seriedade em função do impacto na vida das pessoas. O mesmo raciocínio vale para o fim da Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo (CONATRAE), marco civilizatório de inquestionável importância no combate às práticas análogas à escravidão, cujo regresso deve ser afastado a todo custo.
O atual governo sequer considerou de forma individualizada a função dos colegiados e os sérios impactos que a extinção desses organismos pode gerar. De maneira irresponsável, quer dar fim a todos eles, sem o mínimo de critério técnico ou social. Poderia afirmar que a medida ocorreu por incompetência, mas em se tratando de uma gestão temerária e autoritária como a que temos assistido, sabe-se que o objetivo é realmente calar a voz da sociedade roubando dos brasileiros de exercer sua cidadania.
A nossa Constituição Cidadã é explícita sobre um dos fundamentos da República brasileira: Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente. A supressão de meios de inclusão do povo é um retrocesso sem precedentes diante do avanço da sociedade moderna que pretendemos. O Decreto de Bolsonaro prioriza uma gestão autoritária e distante do povo, de onde emana todo o poder.
O presidente da República não pode achar que irá tomar decisões com sua própria convicção. Como representante do povo, deve agir com responsabilidade que tal situação requer. O fim dos conselhos representa um abuso deste poder. É um despotismo inadmissível em um Estado Democrático de Direito e uma clara violação aos princípios republicano, democrático e da participação popular.
Diante de tal vilania, o Partido dos Trabalhadores resolveu agir em duas frentes, apresentando no Congresso Nacional projetos de decreto legislativo (PDL) para sustar o Decreto de Jair Bolsonaro e entrando no Supremo Tribunal Federal (STF) com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) com pedido de liminar para que o Decreto 9.759 seja declarado inconstitucional e suspenso o quanto antes. Espera-se que a Suprema Corte aja rapidamente para conter esse e outros descalabros que vem sendo cometidos por um governo que pretende solapar a participação e a vontade popular.
*Gleisi Hoffmann é presidenta nacional do Partido dos Trabalhadores e deputada federal (PR)