Os jornais nessa virada de ano se esforçaram em positivar o que seria um movimento de resgate da economia. A manchete do jornal Folha de S. Paulo do primeiro dia de 2020 diz que teremos o terceiro ano de “Agora vai”! O título soa crítico, mas a matéria busca provar que sim, as coisas melhoraram e “agora vai”. Os analistas ouvidos se esmeram em dizer que os indicadores econômicos apontam a melhora.
Mas a matéria começa errando a conta. O “agora vai” terá seu quinto ano em 2020, e não o terceiro. O primeiro foi em 2016, quando bastava tirar a Dilma que a confiança dos empresários e investidores seria resgatada e iria seria retomada a capacidade de desenvolvimento econômico do país. Não aconteceu, porque não existem fadas da confiança.
Depois veio a Emenda Constitucional 95, que impôs o teto nos gastos públicos. Era o que faltava: iria resolver a crise fiscal. Vamos para o quarto ano de austericidio orçamentário, cortes em cima de cortes, e a dívida pública, bruta ou líquida, só cresceu. Que raios de política é essa que corta, corta e a dívida cresce, cresce? A EC 95 também não respondeu à “crise de confiança”.
Mas aí vieram com a reforma trabalhista, essa sim iria dinamizar o mercado de trabalho porque aliviaria para os empresários, limitaria a justiça trabalhista e tiraria o poder dos sindicatos com o fim do imposto sindical. Aí a economia entraria nos eixos. O resultado é que estamos com 12 milhões de desempregados e as ocupações que surgem ou são por conta própria ou trabalhos precarizados. Ainda que possamos concordar que há uma mudança em curso no tipo das ocupações, esse resultado é basicamente por falta de atividade econômica, de investimentos, de políticas sociais alinhadas com um modelo de desenvolvimento que busque crescimento e econômico com inclusão social. Mas não desistiram da narrativa.
A ofensiva seguinte, para ir em frente no modelo adotado, era a reforma da previdência. Essa ainda não produziu seus efeitos, mas serão nefastos pra imensa maioria do povo pobre do Brasil. Era preciso mais, então vieram com outras reformas, MPs pra concluir a reforma trabalhista, aumentar a austeridade e desestruturar serviços públicos. Sem falar da sanha privatista em curso. Sempre falta um ajuste para tirar direitos.
Vai para onde então? Vou repetir aqui o q escrevi em artigo para Folha no em dezembro: 89,6% das pessoas têm renda domiciliar per capita de até 1 salário mínimo no Brasil. Com essas políticas, para essa gente não vai nada. E se não vai para o povo, não vai para o país!
Os arautos do discurso liberal e dessa política econômica desde o golpe contra a Dilma estão todos unidos por ela, e muitos se dizem democratas. O que não entendem, ou fingem não entender, é que para essa pauta dar certo a democracia precisa regredir. Os sindicatos foram bombardeados pela reforma trabalhista e continuaram a ser por outras. As causas coletivas se dissolvem e o que se sobrepõe é o “vire-se” individual. Sem poder de mobilização, os trabalhadores, principalmente nas categorias mais frágeis, ficam à mercê de negociações em que não podem influir. Não têm voz forte para defendê-los, pressionar o Congresso, mudar as coisas. Trabalhador que ganha salário mínimo não tem como ir a Brasília, fazer pressão nos corredores do Congresso.
O estímulo à violência contra os movimentos sociais coloca o povo na defensiva, projetando medo e insegurança. A política de segurança publica, de matar e proteger os representantes do estado que manda matar, coloca a população mais pobre no gueto, amedrontada.
O governo sabe que tem um problema grande a resolver. Preocupado com isso e em obter apoio popular, quer inventar respostas para a questão social, o aumento da pobreza, a desigualdade de renda, a volta da fome. Conforme trouxe O Estado de S. Paulo, também no primeiro dia do ano, Bolsonaro prepara uma agenda social que repaginaria os programas do PT. Com maquiagem, não vão resolver problema nenhum. Primeiro, eles não têm vocação para isso; na concepção deste governo não está a inclusão como política de centralidade. É fake! Segundo, o limite dos gastos públicos que nos impuseram. Como vão melhorar estes programas sem investimentos? Dizem que vão melhorar o Bolsa Família, programa que sempre odiaram. Mudar o nome não vai fazer diferença. No orçamento 2020 não tem dinheiro para corrigir os benefícios do programa e nem sequer pagar o 13º prometido. E o Minha Casa Minha Vida? E os outros programas? Lá vem mais uma fraude dessa turma. Querem maquiar os programas, mudar nome, se apropriar deles. Isso nós vamos denunciar com todas as forças: os neoliberais querendo discurso social pra enganar o povo.
Não bastasse o governo, agora a Câmara dos Deputados também quer ser protagonista numa “agenda social”. Logo ela que é o sustentáculo da agenda de Paulo Guedes e das reformas que retiram direitos dos mais pobres. Rodrigo Maia colocou para coordenar a dita a agenda social uma deputada que representa quem a elegeu: o bilionário Jorge Paulo Leman. Não pode ter futuro um programa inspirado em quem encarna pessoalmente a brutal concentração de renda que está na raiz da desigualdade e da injustiça social no país. Será mais uma fonte de discurso bonitinho na mídia, uma narrativa politicamente limpinha, que não vai fazer diferença na vida da imensa maioria das pessoas.
A direita está em busca de um discurso para se distanciar da imagem de Bolsonaro e disfarçar um pouco a agressividade da pauta neoliberal, mas esta é seu objetivo central. Se dizem defensores da democracia. Refreiam algumas das mais bárbaras ofensivas governamentais, mas passam longe da democracia efetiva, do direito do povo a trabalhar, comer, viver dignamente. Isso fica evidente nas reformas que aprovam.
Aproveitei o recesso de final de ano para ler textos que o saudoso professor Marco Aurélio Garcia escreveu desde a década de 80.
Num dos artigos publicados em 1985, ele questiona os rumos da abertura então em curso país e do papel das forças políticas, principalmente dos liberais, na transição democrática, problematizando a questão da democracia na história do Brasil : “As dificuldades conjunturais que enfrenta a transição democrática em nosso país refletem, atualizando, tendências mais profundas de nosso sistema político, onde a democracia e as leis sempre ocuparam um lugar marginal.”
Continua ele relatando que nossos liberais contribuíram para o descrédito das leis e da democracia com tentativas de golpes que se seguiram no Brasil para interromper o processo democrático em curso. A tentativa de impedir a posse de Getúlio e depois o golpe que terminou com seu suicídio; a instrumentalização de Café Filho para impedir a posse de Juscelino; a conspiração para impedir a posse de Jango e mais tarde sua derrubada em 1964. E depois a participação dos liberais no governo autoritário, dando-lhe sustentação.
Além disso, escreveu o professor, nossos momentos democráticos nunca consideraram efetivamente os direitos básicos da grande maioria do povo. Isso, segundo Marco Aurélio, levou ao baixo crédito que noções como democracia e lei têm no meio popular, aparecendo como embustes, instrumentos que as classes dominantes buscam mascarar sua dominação. A análise de Marco Aurélio em 1985 está atualíssima.
Que articulistas, mídia, empresários, o andar de cima da sociedade tentem positivar uma alegada retomada econômica é até compreensível. Mas os setores populares, progressistas, de esquerda, tem o dever de se contrapor aos dados que não fazem parte da vivência do povo. É possível que possamos crescer nosso PIB em 2,5% em 2020, como dizem economistas do establishment, mas, para a imensa maioria sentir esse indicador em suas vidas, precisaríamos crescer a este índice por 12 anos consecutivos. Somente assim seria possível absorver os desempregados e desalentados que hoje temos no Brasil, e isso sem contar os que ainda vão bater às portas do mercado de trabalho. Essa é a realidade. O resto é discurso para contentar a minoria incluída do país.
Gleisi Hoffmann é presidenta Nacional do PT e deputada federal
*Publicado originalmente no Blog do Esmael