O ministro Barroso, há alguns dias, afirmou que “um país que vai mudando sua jurisprudência em função do réu não é um Estado de direito democrático, é um Estado de compadrio”. Coincidência ou não, o TSE mudou a jurisprudência no caso de Lula. E a mudança foi radical, na linha do voto do ministro Barroso.
Antes de tratar disso, no entanto, é preciso denunciar (sim, denunciar) o tratamento excepcionalíssimo oferecido ao processo de Lula no TSE. Formalizado o pedido registro, a impugnação da Procuradoria foi oferecida horas depois. A PGE só impugnou o registro de Lula. Bolsonaro e Alckmin também foram impugnados, mas não pela PGE. Aliás, a PGE deu parecer favorável aos dois candidatos.
No prazo, Lula apresentou uma defesa de quase duzentas laudas, defendendo (entre outras teses) que a inelegibilidade havia sido suspensa por decisão do Comitê da ONU. Juntou cinco pareceres jurídicos. A PGE, pouco depois das três horas da madrugada de quinta para sexta-feira (horas depois do protocolo da peça), apresentou um parecer sobre a defesa. Não foi com essa pressa que a PGE se manifestou nos casos de Bolsonaro e Alckmin. Muito pelo contrário. Pode isso? Parecer às três da madrugada? Quando foi que a PGE fez isso antes?
Nos casos de Bolsonaro e Alckmin, abriu-se prazo para manifestação depois da apresentação da defesa. No caso de Lula, noutra excepcionalidade, esta etapa do procedimento foi suprimida. A justificativa era julgar todos os pedidos de registro até o início do horário eleitoral. O de Bolsonaro não foi julgado. A pressa andou selecionando os casos.
Apesar da complexidade da matéria de fundo – basta conferir a divergência entre os próprios ministros do Supremo –, o TSE deu início ao julgamento apenas quatorze horas depois da apresentação da defesa. Havia pressa e mais pressa, apesar do reconhecido fair play da defesa. O ritmo do caso de Lula foi outro. A propósito, a complexidade da discussão de fundo era tal que o julgamento durou quase dez horas e terminou apenas no sábado.
No mérito, o julgamento também foi orientado pela excepcionalidade, com duas incríveis e surpreendentes viradas de jurisprudência. Não se fala aqui do tema de fundo (força vinculante da decisão do Comitê da ONU), mas da alteração substancial do regime jurídico de registro de candidaturas vigente no Brasil há décadas.
O art. 16-A da Lei Eleitoral estipula que “O candidato cujo registro esteja sub judice poderá efetuar todos os atos relativos à campanha eleitoral, inclusive utilizar o horário eleitoral gratuito no rádio e na televisão e ter seu nome mantido na urna eletrônica enquanto estiver sob essa condição”. O registro de Lula está inegavelmente sub judice. Houve a interposição de recurso extraordinário, com pedido de liminar pendente no Supremo. Não obstante, desde o caso Lula (ou a partir do caso Lula), sub judice é apenas até a decisão do próprio TSE. Em virada autorreferencial, o TSE esqueceu que no Supremo o caso seguirá sob julgamento (sub judice).
Quem sabe para impedir que o STF admita o caráter vinculante da interim measure do Comitê da ONU (na linha do voto do Min. Fachin), o TSE, noutra radical virada de jurisprudência, resolveu esvaziar art. 11, §10º da Lei Eleitoral. Até o caso Lula (desde quando tudo mudou…) “as circunstâncias fáticas e jurídicas supervenientes ao registro de candidatura que afastem a inelegibilidade, (…) podem ser conhecidas em qualquer grau de jurisdição, inclusive nas instâncias extraordinárias, até a data da diplomação”. Para o TSE, até o caso Lula, “negar o fato superveniente que afasta a inelegibilidade constitui grave violação à soberania popular”. Ao determinar a substituição imediata, o TSE passou a inadmitir suspensão superveniente de inelegibilidade (art. 26-C da LC 64/90) antes permitida até a diplomação.
Noutras palavras: o TSE, no caso Lula, em julgamento de movimentos excepcionas e tratamento assimétrico, reformou na íntegra o sistema de registro de candidaturas no Brasil. Em termos legais e segundo jurisprudência consolidada, antes do caso Lula era possível seguir em campanha enquanto o registro estivesse sub judice (art. 16-A). Se ao momento do pedido de registro houvesse uma inelegibilidade, havia possibilidade de suspensão superveniente (art. 26-C) até a diplomação (art. 11, §10º). Isso simplesmente acabou no julgamento do caso Lula, realizado na medida para Lula.
Milhares de candidatos (inicialmente inelegíveis) elegeram-se no Brasil no sistema vigente ao início da campanha presidencial de 2018. Reverteram depois a inelegibilidade. Até a diplomação. Este sistema foi revogado pelas radicais viradas na jurisprudência do TSE.
Pode ter sido coincidência, mas foi no caso Lula que tudo mudou.
O art. 16 da Constituição Federal consagra a segurança jurídica, fixando que a alteração do processo eleitoral não se aplica à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência. A ideia da Constituição é evitar intervenções casuisticamente dirigidas, como explica a professora Eneida Desirée Salgado. E tanto o TSE quanto o STF têm segura orientação segundo a qual as alterações bruscas de jurisprudência devem operar prospectivamente, respeitando o art. 16 da Constituição Federal. No caso de Lula as alterações tiveram vigência imediata.
Lula não pode ser vítima de uma intervenção casuisticamente dirigida, ainda que involuntária. Pouco importa. À segurança jurídica não interessa a real vontade dos julgadores. Importa assegurar estabilidade. E o TSE quebrou a estabilidade, enterrando o sistema vigente para arrancar Lula da disputa.
Espera-se que o Supremo Tribunal Federal restaure a segurança jurídica. Virar precedentes consolidados para arrancar Lula, com mais de quarenta por cento dos votos, é uma tragédia para a democracia. É disso que se trata.
Gleisi Hoffmann, senadora e presidenta nacional do Partido dos Trabalhadores