Votação no plenário da Corte caminha para resultado unânime. Sessão, que será retomada nesta quinta (18), acumula oito votos favoráveis às investigações. Em maio, Bolsonaro se negou a assinar compromisso mundial contra a desinformação em meio à pandemia
Com oito votos, o Supremo Tribunal Federal (STF) já formou maioria nesta quarta (17) pelo prosseguimento do inquérito das fake news, que apura a disseminação de notícias falsas e ameaças a integrantes da Corte. Votaram favoravelmente os ministros Edson Fachin (relator), Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes. Marco Aurélio Mello, Celso de Mello e Dias Toffoli se pronunciarão na sessão desta quinta (18).
O julgamento, que tem como origem uma ação da Rede Sustentabilidade, teve início na semana passada, quando Fachin proferiu seu voto. São suspeitos de integrar o esquema de fake news deputados, empresários e influenciadores digitais ligados ao presidente Jair Bolsonaro. O inquérito foi aberto em março de 2019 como uma resposta do Supremo aos crescentes ataques sofridos nas redes sociais.
Desde o início, a apuração foi contestada por juristas e políticos por ter sido instaurada pelo presidente do tribunal, ministro Dias Toffoli, de ofício, ou sem provocação da Procuradoria-Geral da República (PGR). A ação do partido Rede Sustentabilidade, protocolada nove dias depois da abertura, pedia a extinção do inquérito.
Após operações contra bolsonaristas, porém, a sigla recuou e disse que, embora tenha apresentado “inquietantes indícios antidemocráticos” no começo, a investigação “se converteu em um dos principais instrumentos de defesa da democracia”.
A análise da ação foi retomada nesta quarta. Ao votar, Moraes afirmou que os ataques contra a Corte não são liberdade de expressão, mas “bandidagem”. “A liberdade de expressão não é liberdade de agressão. Não é liberdade de destruição da democracia, das instituições e da honra alheia. Reitero ter convicção de que não há democracia sem um Poder Judiciário forte. E nãohá Judiciário forte sem juízes altivos e seguros”, disse.
Alvo de críticas e ameaças por parte de apoiadores de Bolsonaro, Moraes afirmou que “coagir, ameaçar e atentar contra o Supremo Tribunal Federal é atentar contra a Constituição Federal, é atentar contra a democracia, é atentar contra o estado democrático de direito”. O ministro leu ainda mensagens publicadas em redes sociais com mensagens de ódio ou de violência contra os magistrados.
“Que estuprem e matem as filhas dos ordinários ministros do STF'”, disse, lendo uma das mensagens. “Em nenhum lugar do mundo isso é liberdade de expressão. Isso é bandidagem, criminalidade”, afirmou, lembrando que a barbaridade foi publicada por uma advogada do Rio Grande do Sul.
Tanto Morais quanto Luís Roberto Barroso, segundo a votar nesta quarta, disseram que não há como se ter um Judiciário forte e independente sem que seus integrantes tenham liberdade para julgar os casos, e as ameaças interferem nessa liberdade.
Na retomada da sessão, no início da tarde, Fachin chegou a fazer um ajuste em seu voto para que ficasse mais próximo dos de Barroso e Moraes. Na semana passada, o relator havia proposto que o objeto do inquérito fosse limitado a ações que ofereçam “risco efetivo” à independência do Poder Judiciário. Como exemplo de atos dessa natureza, citou ameaças a ministros e a incitação ao fechamento do Supremo.
Sem mencionar o ministro da Educação, Abraham Weintraub, Fachin ressaltou que pedir a prisão de integrantes do STF também se enquadra nas hipóteses do inquérito. O chefe da pasta da Educação afirmou, na reunião ministerial de 22 de abril, que botaria “esses vagabundos todos na cadeia, começando pelo STF”.
Ainda sobre Weintraub, o plenário decidiu rejeitar o pedido de habeas corpus ajuizado pelo ministro da Justiça, André Mendonça, em favor do colega de governo. Votaram pela manutenção de Weintraub no inquérito das fake news nove ministros, incluindo o relator Edson Fachin. Apenas Marco Aurélio Mello foi contrário. Alexandre de Moraes não votou por ter se declarado impedido, pois é o relator do inquérito.
Brasil na contramão do mundo
No fim de maio, o governo de Bolsonaro escolheu ficar de fora da iniciativa de países dos cinco continentes contra a propagação de fake news em meio à pandemia do coronavírus. Ao todo, 132 nações assinaram o documento, inclusive aliados de Bolsonaro, como Israel, índia, Hungria e Japão, além dos Estados Unidos de Donald Trump e o Reino Unido de Boris Johnson.
A proposta foi encabeçada por Austrália, Chile, França, Geórgia, Índia Indonésia, Letônia, Líbano, Ilhas Maurício, México, Noruega, Senegal e África do Sul. Na América do Sul, fazem parte do projeto o Uruguai, Paraguai, Chile, Colômbia, Suriname, Bolívia, Peru e Argentina, além da Venezuela e Equador. Apenas o Brasil ficou de fora na região.
A iniciativa, lançada em 22 de maio pela Organização das Nações Unidas (ONU), leva o nome de #Verified (#Verificado). A ONU criou um site no qual as pessoas podem se inscrever para receber informações verificadas: www.shareverified.com/pt.
A ONU está chamando pessoas do mundo todo a se inscreverem e se tornarem “voluntários da informação”. Descritos como “socorristas digitais'”, eles receberão um “feed” diário de conteúdo otimizado para partilhar nas redes sociais com mensagens simples, que contrariam informações erradas ou preenchem lacunas de informação.
Ao assinar o documento, os governos se comprometeram em garantir que pessoas sejam informadas com precisão a partir de fontes confiáveis. “Desde o surto do vírus Covid-19 e a declaração da pandemia, o secretário-geral da ONU e outros líderes da ONU e suas instituições têm chamado cada vez mais a atenção para o desafio da ‘infodemia’ ou da desinformação pandêmica”, diz o texto.
“Não podemos ceder os nossos espaços virtuais àqueles que traficam mentiras, medos e ódios”, afirmou o secretário-geral da ONU, António Guterres, para quem há um tsunami de ódio e desinformação. “Desinformação é divulgada online, em aplicativos de mensagens e de pessoa para pessoa. Seus criadores usam produção e métodos de distribuição maliciosos. Para combater isto, cientistas e instituições como as Nações Unidas precisam alcançar pessoas com informação acurada, nas quais possam confiar.”
O texto dos países signatários afirma que “a crise da Covid-19 demonstrou a necessidade crucial de acesso a informações livres, confiáveis, confiáveis, factuais, multilíngues, direcionadas, precisas, claras e científicas, bem como de garantir o diálogo e a participação de todas as partes interessadas e comunidades afetadas durante a preparação, prontidão e resposta”.
O documento também confirma o “papel fundamental da imprensa livre, independente, responsável e pluralista para aumentar a transparência, a responsabilidade e a confiança, o que é essencial para alcançar o apoio adequado e a conformidade do público em geral com os esforços coletivos para conter a propagação do vírus”.
Liderada pelo Departamento de Comunicação Global (DCG) da ONU, a campanha oferece informação sobre três temas: ciência – para salvar vidas; solidariedade – para promover cooperação local e global; e soluções – para defender o apoio a populações impactadas. Também promove pacotes de recuperação que abordam a crise climática e tratam das causas principais da pobreza, da desigualdade e da fome.
“Em muitos países, a crescente desinformação em canais digitais está impedindo a resposta de saúde pública e provocando instabilidade. Há esforços inquietantes de explorar a crise para avançar nativismo ou atingir grupos minoritários, o que pode piorar na medida em que a pressão aumenta nas sociedades e instabilidades econômicas e sociais entram em cena”, afirmou a sub-secretária-geral da ONU para Comunicação Global, Melissa Fleming.
Bolsonaro e a doença do século
Na semana do lançamento da iniciativa da ONU, a Comissão Europeia considerou que “a desinformação é a doença do século”, frisando que os esforços das plataformas digitais “nunca serão suficientes” para combater a propagação de notícias falsas na internet, e ameaçando criar regras mais apertadas. “No que toca à desinformação, nunca vamos fazer o suficiente, esta é a doença do século”, afirmou o comissário europeu do Mercado Interno, Thierry Breton.
Ao não assinar o compromisso global, Bolsonaro reafirma o que já se sabe há tempos: seu governo foi eleito e é cotidianamente construído sobre a desinformação e a mentira. Fake news são seu âmago e seu modus operandi. Não é por outro motivo que o último balanço do site de checagem ‘Aos Fatos’, de 15 de junho, aponta que o presidente acumulou 1.242 declarações falsas ou distorcidas em 531 dias de governo. São mais de duas por dia.
Desde a eclosão da crise do coronavírus, o quadro piorou. Em março foram cometidos 163 atentados à verdade, contra 156 em abril e 181 no mês seguinte. Antes da Covid, o recorde era de 78 declarações falsas ou distorcidas, em outubro de 2019.
Outra iniciativa de checagem de notícias, o Projeto Comprova, constatou que ao longo de 70 dias de monitoração e checagem de conteúdo on-line sobre o novo coronavírus, a desinformação seguiu tendências que acompanharam o debate público em torno da pandemia. Muitas das verificações publicadas abordaram temas semelhantes —sempre refletindo o que nas redes sociais era mais viral sobre a Covid-19.
O apagão de dados no Ministério da Saúde, por exemplo, evidenciou a crença, de membros do governo e do próprio Bolsonaro, de que os números da pandemia estavam exagerados. Esse pensamento, que não tem base na realidade, também permeou vários dos conteúdos enganosos desmentidos pelo Comprova nos últimos 70 dias.
Os boatos falsos sobre supernotificação se tornaram mais frequentes quando os números de contágio se tornaram mais alarmantes. À medida que a curva epidemiológica brasileira se tornou cada mais íngreme, o Comprova identificou mais exemplos de conteúdos virais que buscavam minimizar a gravidade da pandemia.
“O presidente Jair Bolsonaro tem repetidamente minimizado a gravidade da covid-19, à qual já se referiu como ‘histeria’, ‘gripezinha’ e ‘resfriadinho’. Em 20 de abril, ao comentar o aumento no número de mortes, ele disse que não era ‘coveiro’. Em 28 de abril, voltou a desprezar a alta no registro de óbitos ao declarar: ‘E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?’, enumeram os profissionais no site ‘Poder 360’.
Outro tema, o isolamento social, com o que Bolsonaro discorda, também foi alvo de boataria, sempre acompanhando a agenda do governo. O vídeo que circulou em 17 de abril, divulgando a “Semana Nacional de Reabertura do Comércio” e a “Semana Bolsonaro”, por exemplo, estava repleto de informações enganosas sobre a retomada das atividades comerciais no país.
O Projeto Comprova também checou 15 boatos que citavam organizações internacionais ou situações epidemiológicas em outros países. Itália, Israel e China foram os países mais mencionados nos conteúdos inverídicos checados, ao lado da OMS (Organização Mundial da Saúde).
A corrida global para a descoberta de uma vacina ou um tratamento eficaz também motivou uma ofensiva de desinformação, mencionando especialmente a cloroquina, aposta de Bolsonaro como principal política de saúde diante da pandemia.
Às barbaridades do chefe juntam-se as ações da rede de fake news mantidas por empresários e políticos aliados despejando continuamente informações falsas nas redes sociais. Na verdade, se medirmos pelo histórico de comportamento negacionista, confundindo ciência com obscurantismo, fake news com liberdade de expressão e autoritarismo com liberdade, pode-se dizer que Bolsonaro só poderia assinar um compromisso inverso ao patrocinado pelas Nações Unidas.