A Comissão Nacional Técnica de Biossegurança (CTNBio), instância que faz parte do Ministério da Ciência e Tecnologia, aprovou, no último dia 15 de janeiro, uma resolução normativa, número 16/2018, por meio da qual passa a considerar uma série de novas biotecnologias que usam engenharia genética, mas que têm formatos diferentes dos transgênicos que já conhecemos (como milho e soja resistentes a agrotóxicos). Estas novas estratégias para manipular geneticamente plantas e animais podem inserir novo material genético nas sementes e em seus descendentes.
Com esta normativa, a CTNBio pode decidir que os organismos produzidos com essas biotecnologias não são considerados transgênicos ou organismos geneticamente modificados (OGM) e, portanto, não precisam cumprir com a regulamentação de biossegurança. A normativa também estabelece um canal legal para permitir a liberação no ambiente dos chamados “impulsionadores genéticos”, uma tecnologia altamente arriscada, que pode gerar a extinção de espécies inteiras, inclusive silvestres.
A nova normativa é muito grave, porque:
É a porta de entrada legal para que sementes, insetos e outros organismos e produtos modificados geneticamente por meio de novas biotecnologias não sejam considerados como organismos geneticamente modificados. Assim, a CTNBio poderia decidir que eles podem ser utilizados nos campos ou enviados para os mercados sem regulamentação e sem certificação;
Isso faz do Brasil o primeiro país do mundo a estabelecer canais legais para a liberação dos “impulsionadores genéticos” ou sistemas de redirecionamento genético (genes drives em inglês), que além de serem extremamente perigosos, podem ser usados em cultivos e modificar geneticamente plantas e animais silvestres. Este tipo de técnica utiliza organismos manipulados geneticamente para enganar as leis naturais da herança genética e conseguir que um caráter transgênico seja herdado forçadamente. Estes organismos poderiam ser utilizados para extinguir uma espécie inteira, animal ou vegetal.
A normativa favorece a quem?
As empresas de agronegócios e as empresas transnacionais de transgênicos serão favorecidas pela decisão da CTNBio, pois poderão invadir os campos e os mercados com os seus novos produtos manipulados geneticamente, sem ter que passar pelos mecanismos de avaliação, regulamentação e certificação, ganhando tempo e aumentando os lucros. Essas empresas poderão, inclusive, enganar os consumidores dizendo que os seus produtos são “naturais”, como fizeram nos Estados Unidos com as substâncias derivadas de micróbios criadas por meio da engenharia com algumas dessas tecnologias.
Além disso, através da técnica de CRISPR e dos impulsionadores genéticos, empresas como a Monsanto e a DuPont, que já possuem licença para essa tecnologia, esperam fazer com que as plantas invasoras (silvestres) sejam mais susceptíveis aos seus agrotóxicos. Já existem muitas invasoras que são resistentes ao glifosato, por exemplo. Com essa tecnologia, elas esperam seguir vendendo este veneno.
Essas empresas também esperam poder manipular novas espécies de sementes e plantas, para ampliar seus mercados transgênicos. Tudo isso às custas da biossegurança e da saúde do meio ambiente, das pessoas e dos animais.
Potenciais impactos das novas biotecnologias
Os transgênicos são organismos nos quais são inseridos genes que não estão presentes nos organismos vivos naturais, seja da mesma espécie ou de uma espécie diferente. As chamadas novas biotecnologias, como, por exemplo a CRISPR (sigla do nome em inglês, (Clustered Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats), ou técnicas que usam RNA para ativar ou desativar genes, como a mutagênese sítio-dirigida e outras, podem manipular o genoma por meio da inserção ou da não inserção de novos genes, mas sempre produzindo alterações nas funções naturais do organismo.
A CTNBio chama essas biotecnologias de “Técnicas Inovadoras de Melhoramento de Precisão” (TIMP), que englobam as chamadas Novas Tecnologias de Melhoramento. Essas técnicas não são aplicadas somente a plantas, também podem modificar microorganismos, insetos e animais.
As empresas também chamas essas técnicas de “edição de genoma” para dar a impressão de que se trata apenas de uma pequena mudança em um texto, tentando separar estes novos organismos geneticamente modificados da ampla resistência que camponeses e consumidores de todo o mundo desenvolveram contra os transgênicos.
Com estas técnicas de manipulação de genomas pode-se, por exemplo, criar plantas que sejam tolerantes a agrotóxicos (igual aos transgênicos anteriores, mas a partir de outra técnica) ou que ervas invasoras que se tornaram resistentes voltem a ser afetadas por agrotóxicos (para continuar vendendo mais agrotóxicos), mudar os períodos de maduração ou floração (para facilitar a colheita industrial), fazer com que micróbios e plantas produzam substâncias que normalmente não produziriam e que são valiosas para as empresas.
Eles afirmam que estas técnicas são mais precisas que os transgênicos anteriores, no entanto, ainda que as técnicas possam ser mais precisas em relação ao lugar que modificam no genoma, continua existindo uma incerteza sobre como estas mudanças afetam o restante do genoma, o que pode levar a novos efeitos imprevistos e indesejáveis. Vários casos nos quais estas técnicas têm efeitos fora do alvo (off-target) são conhecidos e isso faz com que as plantas e/ou produtos que são derivados dos organismos manipulados possam ter efeitos alérgenos e outros que afetam o crescimento das plantas e também a saúde humana e a animal.
Isso sem contar outros efeitos já conhecidos dos transgênicos, como viabilizar o aumento de agrotóxicos, o patenteamento de sementes pelas grandes empresas e afetar as sementes crioulas.
Impactos dos impulsionadores genéticos (gene drives)
Pela primeira vez, estão criando transgênicos para liberar em meios silvestres, para modificar não só as espécies cultivadas, mas para que elas se reproduzam agressivamente na natureza. É uma forma de engenha genética que usa a tecnologia CRISPR-Cas9 para conseguir que ascaracterísticas transgênicas inseridas em um organismo passe, de modo forçado, a toda a próxima geração e não somente em 50% de cada progenitor, como seria normal. Se a manipulação é para que sejam produzidos somente machos (os testes são feitos com plantas, mosquitos e ratos), toda a população – ou inclusive toda a espécie), poderia ser extinta rapidamente. Alguns poucos organismos modificados lançados em um campo ou em um ecossistema podem modificar gradualmente todos aqueles com os quais cruzar, até atingir toda a população.
Por isso, eles são considerados pela Organização das Nações Unidas (ONU) como uma arma biológica. Os principais financiadores das pesquisas em impulsionadores genéticos são o Exército dos Estados Unidos, e, em segundo lugar, a Fundação Bill e Melinda Gates.
Aqueles que promovem essa tecnologia dizem que ela serve para eliminar pragas como, por exemplo, o mosquito que transmite a malária ou plantas invasoras. Mas quem define o que é daninho ou praga? Para a agricultura industrial e os agronegócios tudo que esteja vivo em um campo e não seja o cultivo que eles querem vender é considerado daninho.
Quais as consequências teria a eliminação de uma população inteira de um ecossistema que co-evolucionou com ela ou que a favoreceu como reação a outros desequilíbrios? O que acontece com os outros organismos que se alimentam dessa espécie? Quem pode decidir eliminar uma espécie inteira? Ainda que a técnica possa funcionar ou não – é experimental – ela poderia causar grandes desequilíbrios. Por isso, 160 organizações de todo o mundo, incluindo a Via Campesina Internacional exigiram que o Convênio de Diversidade Biológica aplicasse uma moratória a esta tecnologia.
Nem sequer os Estados Unidos autorizaram liberar um organismo desse tipo, pois, uma vez que ele esteja no ambiente, não se sabe como detê-lo. Com a resolução da CTNBio, o Brasil se tornaria o primeiro país a permitir a liberação dessa perigosa tecnologia. E através uma normativa simplificada.
O Brasil é também o único país do mundo no qual, graças à CTNBio, permitiu-se experimentos repetidos com mosquitos transgênicos. Ainda que esses experimentos não tenham nenhuma validação de que sirvam para combater doenças, o país é visto como um lugar que poderiam ser liberados mosquitos com impulsionadores genéticos, pela facilidade em conseguir a aprovação das autoridades.
Mas o principal interesse comercial nos impulsionadores genéticos vem do agronegócio, porque seu uso poderia eliminar as espécies de plantas que sejam resistentes aos agrotóxicos ou fazer com que essas plantas voltam a ser susceptíveis aos agrotóxicos e, assim, seguir aumentando seu uso. Várias das transnacionais de transgênicos já tem licença de tecnologia CRISPR-Cas9.
As organizações camponesas, os movimentos sociais, as organizações da sociedade civil e de consumidores rechaçam energicamente a normativa 16/2018 da CNTBio, que pretende legalizar e liberar sem regulamentação, sem análise ou certificação, novos transgênicos que impactarão as e os campesinos, a soberania alimentar, a saúde e o meio ambiente. Elas denunciam que a CTNBio pretende legalizar também a liberação de “impulsionadores genéticos”: transgênicos que poderiam ser utilizados para extinguir espécies e como armas biológicas que não estão permitidos em nenhum outro país pela sua alta periculosidade.
Por Silvia Ribeiro, pesquisadora do Grupo de ação sobre Erosão, Tecnologia e Concentração, no Brasil de Fato