Mais longevo presidente brasileiro, com 18 anos e meio de mandatos em dois períodos distintos, entre os anos de 1937 e 1954, Getúlio Dornelles Vargas suicidou-se em 24 de agosto de 1954. Hoje, a morte trágica do presidente completa 60 anos.
“Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na história”
O primeiro mandato de Vargas teve 15 anos ininterruptos (de 1930 a 1945) e o segundo, com três anos e meio, de 31 de janeiro de 1951 até a sua morte. Ele ficou conhecido como o ‘pai dos pobres”.
O tiro que ele disparou contra o próprio coração durante a madrugada, dentro do seu quarto no Palácio do Catete, então residência oficial da presidência ainda no Rio de Janeiro, foi planejado em detalhes. Horas antes de materializar sua própria morte, ele redigiu a carta-testamento que dirigiu ao povo brasileiro para justificar o gesto extremo.
“Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História”, registrou em carta antes de suicidar-se.
O estopim da crise que levou o gaúcho Vargas a se matar foi aceso 19 dias antes, quando o jornalista Carlos Lacerda, declarado inimigo do presidente desde a campanha presidencial em 1950, na madrugada de 5 de agosto, sofreu um atentado à bala na rua dos Toneleros, seu endereço em Copacabana.
As dificuldades políticas que Getúlio teve desde a sua posse, após vencer eleições democráticas pelo voto direto para um segundo mandato (1951-1954), é que ajudaram a compor e formar o quadro de condições que o levariam ao atentado.
Vargas já não suportava as pressões que lhe faziam setores empresariais e políticos, especialmente a União Democrática Nacional (UDN), partido de Lacerda, autor de ferrenhos e mordazes ataques ao presidente pelas páginas do seu jornal (fundado em 1949), Tribuna da Imprensa.
Ira – Vargas conquistou a ira do empresariado por ter concedido reajuste de 100% ao salário mínimo naquele ano de 54 e por ter, após a vitoriosa campanha “o petróleo é nosso”, fundado a Petrobrás em outubro do ano anterior. Os empresários rejeitavam a exclusão da iniciativa privada do projeto de nacionalização da produção do petróleo com a fundação da empresa estatal.
“Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam, e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes”, escreveu Getúlio.
Lacerda foi atingido no atentado diante de sua casa, mas a única vítima foi o major da Aeronáutica Rubens Vaz, seu acompanhante e protetor. O militar fazia parte de um grupo de jovens militares que passaram a protegê-lo de um possível atentado – que efetivamente se confirmou.
Ferido no pé e medicado, Lacerda partiu para o ataque e passou a acusar o Palácio do Catete de abrigar o mandante do crime. As investigações do Inquérito Policial Militar (IPM) aberto por ordem do governo, por pressão da mídia e da opinião pública, acabou levando à prisão dos autores do ataque e envolveram o chefe da guarda pessoal de Getúlio Vargas, Gregório Fortunato, e o irmão dele, Benjamin Vargas.
A conclusão do IPM indicou a existência de sólidos indícios da participação da guarda no atentado. O presidente passou a ser pressionado também por políticos e militares. O vice-presidente Café Filho aderiu aos opositores para fazer com que Vargas renunciasse ao cargo. O episódio produziu no presidente a reação que ainda ecoa na história do Brasil.
“Nada mais vos posso dar, a não ser meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida”, registrou o então presidente da República.
Mas a comoção e indignação com o suicídio levou a opinião pública a uma avaliação reversa dos acontecimentos e obrigou Carlos Lacerda a fugir do país. Ele temia a fúria da população, ao tornar-se o principal responsável pela morte de Vargas. Até hoje Getúlio é reverenciado por partidos políticos e suas realizações inspiram seguidores e seus seguidores, como Leonel Brizola, morto há 10 anos, em 21 de abril de 2004.
Leia a íntegra carta testamento:
“Mais uma vez, as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se e novamente se desencadeiam sobre mim. Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam, e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes.
Sigo o destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive de renunciar. Voltei ao governo nos braços do povo. A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a justiça da revisão do salário mínimo se desencadearam os ódios. Quis criar liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás e, mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstaculada até o desespero. Não querem que o trabalhador seja livre.
Não querem que o povo seja independente. Assumi o Governo dentro da espiral inflacionária que destruía os valores do trabalho. Os lucros das empresas estrangeiras alcançavam até 500% ao ano. Nas declarações de valores do que importávamos existiam fraudes constatadas de mais de 100 milhões de dólares por ano. Veio a crise do café, valorizou-se o nosso principal produto. Tentamos defender seu preço e a resposta foi uma violenta pressão sobre a nossa economia, a ponto de sermos obrigados a ceder.
Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo, para defender o povo, que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso dar, a não ser meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida.
Escolho este meio de estar sempre convosco. Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no pensamento a força para a reação. Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com o perdão.
E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate. Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História. Getúlio Vargas”
Por Márcio Morais, da Agência PT de Notícias