O Estado moderno é o Estado emancipado da propriedade e da religião. O Estado moderno não abole a propriedade ou a religião, mas se emancipa tanto de uma como da outra. O Estado que não se emancipa da religião é teocrático. O Estado que não se emancipa da propriedade é patrimonialista.
Isso não significa dizer que o Estado moderno não responde, preponderantemente, aos interesses da classe proprietária. Significa que ele toma distância, tanto quanto possível, de interesses particulares. O particularismo é pré-moderno e patrimonial. No seu estágio incompleto e imaturo, a dimensão pública do Estado ainda não se constituiu.
Regra geral, ao longo da nossa história, o Estado sempre esteve capturado por interesses particulares. Se houve um momento em que se tentou emancipá-lo, isso se deu no segundo governo Getúlio Vargas (1951-1954). Reconduzido à Presidência da República pelo voto, Getúlio parecia imbuído da intenção de não apenas dar continuidade às medidas modernizadoras do seu primeiro governo, mas de dar um salto de qualidade.
Compôs uma assessoria econômico-política de extrema qualidade, por fora do aparato burocrático dos ministérios (entregue aos partidos políticos aliados e membros da oposição), que criou e deu impulso a um sem número de instituições que viriam a ser responsáveis pelo crescimento acelerado da nossa economia nas décadas seguintes.
Petrobras, Eletrobras, Banco do Nordeste, Capes, CNPq e, claro, BNDE(S), dentre outras instituições, nasceram do trabalho de técnicos nacionalistas que viravam noite redesenhando o Estado nacional (os boêmios cívicos, como Getúlio os chamou).
Embora o padrão de desenvolvimento almejado fosse capitalista, sem, portanto, ânimo de ocupar o espaço da iniciativa privada, havia uma clara intenção de emancipar o aparato estatal do particularismo próprio da nossa tradição patrimonialista. O patrimonialismo é inimigo do desenvolvimentismo. Só a análise rasa os confunde.
Penso que Lula pretendia retomar esse padrão de desenvolvimento, adequando-o à nova conjuntura. Lula nunca negou que queria apoiar o capital nacional, estatal e privado, sem discriminação, e não mediu esforços para internacionalizar nossas empresas, usando seu prestígio pessoal para lhes abrir novos mercados.
Nesse período, o BNDES foi acusado pela oposição de adotar a política dos chamados campeões nacionais, uma política patrimonialista de crédito subsidiado para os amigos do rei. Gestores tiveram sua reputação atacada. Milhões foram gastos em auditorias para abrir a tal caixa-preta do BNDES. Quem reparará o prejuízo institucional?
Artigo publicado originalmente na Folha de S. Paulo
Fernando Haddad é professor universitário, ex-ministro da Educação (governos Lula e Dilma) e ex-prefeito de São Paulo.