Heróis que desrespeitam a lei para fazer justiça denotam um traço socialmente apreciado em tempos críticos: a coragem do indivíduo inconformado que suplanta um sistema disfuncional.
Quando o intrincado conjunto de regras estabelecidas se torna um empecilho para a reparação de dano grave, clama-se por providências concretas em detrimento de formalidades abstratas.
O velho adágio de que os fins justificam os meios, do qual o linchamento é a expressão mais radical.
Em sociedades evoluídas, estes instintos primitivos são satisfeitos pela produção cinematográfica. Nas salas de projeção, urros e aplausos são admitidos para celebrar a subversão da lei em nome da justiça, desde que o vilão pague pelo que fez.
Já no plano das instituições, condutas “heroicas” são duramente combatidas. Firmou-se a concepção de que meios e fins são indissociáveis, ou, na bela formulação de Dewey, de que os meios são “frações de fins”.
A maturidade trouxe a compreensão de que a falibilidade do sistema, pelo seu contínuo aperfeiçoamento, é menor do que a falibilidade do “herói”.
Decerto, o sistema não é neutro e imparcial: “A venda sobre os olhos da Justiça não significa apenas que não se deve interferir no direito, mas que ele não nasceu da liberdade”, dizia Adorno.
Menos ainda os indivíduos que o integram, que, por isso mesmo, são, na ampla maioria, ciosos dos protocolos a que estão submetidos.
A questão que se coloca é a de como coibir a ação delituosa do “herói” que ocupa função pública na magistratura, no Ministério Público, na polícia ou Forças Armadas.
A tarefa não é simples. Temos assistido a um festival de impunidade em todos esses âmbitos. De juízes corruptos aposentados compulsoriamente a chacinadores absolvidos em processos duvidosos, tudo leva a crer que os controles não estejam operando satisfatoriamente.
Imagine-se a dificuldade de se julgar um “herói”.
Estes julgamentos se dão pelos próprios pares. Os conselhos nacionais (CNJ e CNMP), as corregedorias, as ouvidorias etc. são compostos majoritariamente por membros das respectivas corporações.
Se o mérito científico é atestado por pares, outro deveria ser o critério quando o que está em jogo é a licitude e a moralidade da conduta.
A costumeira confusão entre a defesa da instituição e a dos seus integrantes —que só a enfraquece— exige que se garanta a hegemonia de um olhar não corporativo dentro dos órgãos de controle.
Esta reforma das instituições é imperativa.
Para que um juiz com pretensões políticas que perpetre crime contra chefe de Estado, por exemplo, nunca mais fique impune.
Fernando Haddad é professor universitário, ex-ministro da Educação (governos Lula e Dilma) e ex-prefeito de São Paulo