A imprensa brasileira é realmente a favor da liberdade de imprensa? Há boas razões para duvidar.
O caso The Intercept, por duas graves circunstâncias, levanta dúvidas sobre a questão.
A primeira, mais antiga. A Associação Nacional de Jornais (ANJ) entrou com uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI 5613) junto ao STF em que pede algo surpreendente.
O artigo 222 da Constituição estabelece que a propriedade de empresa jornalística e de radiodifusão é privativa de brasileiros que deverão deter um mínimo de 70% do capital da empresa e exercerão obrigatoriamente a gestão das atividades e a responsabilidade editorial.
A ANJ pretende que os efeitos deste dispositivo sejam estendidos à internet e justifica: “Houve uma opção constitucional por estabelecer uma espécie de alinhamento societário e editorial com vista à formação da Opinião Pública nacional”.
É possível especular sobre o que a ANJ entende por isso, mas, nas condições locais, a afirmação mais parece um chiste freudiano.
Não há nada mais uniforme no Brasil do que a linha editorial dos jornais.
Em momentos decisivos, seus proprietários unem-se numa só voz “com vistas à formação da opinião pública”.
O que pretende a ANJ? Que sites de notícias progressistas como The Intercept Brasil, El Pais Brasil etc. saiam do ar? Que não possam utilizar o domínio .com.br? La Repubblica ou Le Monde não poderiam publicar notícias sobre o Brasil em português? O tradutor Google seria desabilitado?
A pretensão é tecnologicamente extravagante, mas reveladora de uma visão política nada moderna.
Parece desconhecer inclusive que, em tempos de big tech, o que conta não é apenas a notícia, falsa ou não, mas seu impulsionamento, que se dá, lícita ou ilicitamente, pela força do dinheiro e do poder de Estado no “black mirror” da internet.
Nesse admirável mundo novo, a presença do The Intercept e de Glenn Greenwald entre nós é uma felicidade e fonte de inspiração para novas formas de cooperação entre jornalistas.
O que me leva a uma segunda circunstância. Greenwald vem sendo covardemente atacado pelo presidente da República, por seu filho senador e pelo ministro da Justiça sem que a imprensa local se solidarize com ele na proporção exigida, muito pelo contrário.
A reputação internacional de Moro como juiz está comprometida, mas isso não lhe dá o direito de usar seu poder como ministro para prejudicar quem cumpre seu dever. Faria melhor se tomasse a conduta profissional de Greenwald como modelo.
Os jornais locais, se defenderem a liberdade e integridade de Greenwald, poderiam ajudá-lo nesta tarefa.
Fernando Haddad
Professor universitário, ex-ministro da Educação (governos Lula e Dilma) e ex-prefeito de São Paulo.
Texto publicado originalmente na Folha de S. Paulo