Fernando Haddad
Angela Alonso poupou-me o trabalho tão necessário de comparar os discursos de Bolsonaro e Lula no Dia da Independência. De uma lado, a pátria neoliberal, hierárquica, religiosa e armada; de outro, o Estado-nacional social-democrata, igualitário, laico e tolerante. Em 2018, diante da “difícil” escolha, a elite econômica optou por Bolsonaro.
A sua eleição exigiu a instrumentalização de praticamente todas as instituições. Uma operação coordenada como poucas vezes se viu ao longo da nossa história.
A julgar pelo noticiário da semana sobre nossos vizinhos, a prática vem sendo utilizada com ainda mais desenvoltura, sem que a comunidade internacional, a classe política e a imprensa se manifestem frente aos escombros da democracia latino-americana.
O Brasil, em situação de normalidade, seria, pela sua importância, parte da solução dos problemas regionais. As reservas cambiais, o SUS e a tecnologia do Bolsa Família deram ao país condições únicas de enfrentamento da pandemia, infelizmente mal aproveitadas pelo atual governo, exemplo mundial de má gestão e conduta.
Enquanto isso, Equador e Bolívia vivem momentos de forte instabilidade democrática, não apenas pela perseguição política de ex-presidentes altamente populares (Rafael Correa e Evo Morales) como pela ousada tentativa de impedir que seus respectivos partidos lancem candidatos.
Se no contexto da Guerra Fria entre EUA e URSS várias democracias latino-americanas foram golpeadas por ditaduras militares, a presente guerra comercial entre EUA e China provoca desdobramentos geopolíticos e econômicos que abalam as estruturas da região e afetam países mais bem organizados, como Argentina e Chile.
Angela Alonso notou que os discursos de Bolsonaro e Lula recorrem ao tema da soberania nacional, “mas o bolsonarismo carrega bandeiras norte-americanas, enquanto o outro lado prefere a companhia de África e América Latina”. A subserviência do primeiro é flagrante. A exportação do aço brasileiro, por exemplo, foi dificultada, enquanto a importação do etanol americano foi facilitada.
Essa relação vassálica, sem dúvida, compromete a soberania nacional, mas o que tem passado despercebido é a perda de protagonismo político e diplomático regional do Brasil.
Nem falo de África, continente com o qual temos uma dívida histórica. Falo da América Latina, que, diante da crise do neoliberalismo global e dos desacertos do sistema-mundo, deveria se nos apresentar como “comunidade imaginada” supranacional em um projeto de integração radical.
Mas, para isso, precisaríamos ter escolhido um estadista.
Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo, em 12 de setembro de 2020