Nessa quarta-feira, o plenário da Câmara Federal aprovou o texto-base do projeto de lei (PL 2401/19), que regulamenta a prática da educação domiciliar (homeschooling) no Brasil.
Caso aprovado, o também chamado de “ensino doméstico” vai ampliar ainda mais a desigualdade do acesso à educação em todo país. Quem tem dinheiro, poderá pagar professores para ensinar em casa. Enquanto à população mais pobre restará um ensino precarizado, sem socialização, que poderá se tornar o caos. Esta é a avaliação de Rosilene Correa, pedagoga e dirigente do SinPro-DF (Sindicato dos Professores) e da CNTE (Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação).
“É a volta a idade média, quando quem podia pagar tinha aulas em casa com um tutor”, salienta Correa.
O homeschooling (ensino doméstico) é mais um capítulo da agenda ideológica sem base racional e científica do governo Bolsonaro, porém profundamente conservadora e fundamentalista. “A aprovação do regime de urgência para sua tramitação mostra que, na verdade, a urgência está na mudança do perfil parlamentar do Congresso Nacional, que precisa ocorrer em 2022”, pontua professora Bebel, deputada estadual PT/SP e presidenta da Apeoesp.
As mulheres parlamentares e dirigentes petistas estão em diversas frentes para impedir esse retrocesso – que prejudica não só o futuro de crianças e adolescentes, mas também tem um impacto direto na vida das trabalhadoras, sobretudo das mulheres negras. “Elas já sofrem com o racismo para conseguir espaço no mercado de trabalho, correrão o risco de não ter escola pública de qualidade para colocar os filhos e viveremos em um país que condena famílias inteiras ainda mais à baixa escolarização e à vida precária”, aponta Anne Moura, secretária nacional de mulheres do PT.
O que está por trás do Ensino Doméstico
Privatização
Primeiro, trata-se de um processo de privatização dos ensinos Fundamental e Médio, com lobby e atuação de grupos privados, ao mesmo tempo em que se precariza ainda mais o investimento em educação pública. “É uma postura conservadora, individualista e exclusiva que visa, na verdade, elitizar e privatizar ainda mais a educação no Brasil, ao invés de valorizá-la como bem público, melhorando a sua qualidade para todas e todos”, reforça Rosilene.
O Brasil não cumpre a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e ainda está muito distante de alcançar as metas do Plano Nacional de Educação em vigor. “A universalização segue precária, sobretudo na educação infantil, e as escolas, espaços privilegiados de socialização e interação, e parte indispensável do processo de aprendizagem, necessitam de mais estrutura, não de alternativas caseiras que visam a atender nichos radicalizados do eleitorado bolsonarista”, denuncia a deputada Bebel, de São Paulo.
Ataque ao pensamento crítico
A escola é concebida para socializar as crianças, transmitir valores e aquilo que a sociedade quer que a criança tenha como referência de vida para o futuro. Quando a criança é privada do convívio coletivo e da socialização, ela está ainda mais suscetível a reforçar preconceitos, a não ter respeito pelas diferenças, tampouco a ser empática e perseverante, apontam as especialistas. “Trata-se de um movimento estratégico para a aplicação da agenda conservadora e fundamentalista no país, tanto aqui no Brasil quanto nos EUA esse projeto de poder neopentecostal segue em curso”, afirma Anne Moura.
Os conservadores deturpam o debate dizendo que a educação está nas mãos dos profissionais de esquerda, sendo que, na verdade, são eles que querem impor uma educação limitadora, conservadora e profundamente ideológica. “Há uma deturpação por parte de quem defende esse projeto do que é o pensamento crítico, a formação de uma escola crítica em nosso país”, explica Maria Palmira Silva, doutora em Psicologia pela PUC-SP, professora da UNINOVE e autora de “Racismo alimenta dupla crise: Pandemia da Covid-19: reflexões na diáspora negra entre Brasil, EUA e França”.
Opressão de gênero
Quando se trata de ambiente doméstico, todos os estudos apontam a sobrecarga das mulheres. No caso do “ensino doméstico”, as mulheres vão precisar trabalhar o triplo, acentuando ainda mais a divisão sexual do trabalho e inviabilizando, cada vez mais, a possibilidade delas se inserirem no mercado de trabalho, terem autonomia financeira e controle seus próprios destinos.
No entanto, a opressão de gênero não para nessa perspectiva. Ao prover um ensino limitador, preconceituoso e profundamente elitista, as especialistas apontam que o ensino doméstico também abre espaço para reforçar na criança a ideia de que a mulher é apenas aquela cuida, exerce as profissões de menor valor (menos competitivas). “A longo prazo, vamos voltar àquilo que a gente sempre combateu: mulheres nas funções de cuidadoras, precarizadas e com baixa remuneração e homens em funções competitivas. É um retrocesso na mentalidade da nossa sociedade”, aponta Maria Palmira.
Violação de Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes
A pandemia da Covid-19 trouxe à tona os efeitos negativos do “ensino doméstico” e evidenciou que os pais não dispõem de todos os recursos pedagógicos para garantir o aprendizado dos filhos. Um estudo realizado pela Organização Gallup revelou que o uso do castigo físico é comum no universo de 94% dos entrevistados para crianças entre 3 e 4 anos.
“Diante das exigências da escola, os pais aplicam castigo físico, ameaças, gritos durante a execução das tarefas. Minhas alunas que trabalham nos SAICAS (Serviços de Acolhimento Institucional) trazem relatos de aumento no número de violência física, negligência ou de casos de exploração do trabalho de crianças e adolescentes”, explica Palmira.
Também no Brasil a maior parte das crianças que sofrem agressões estão na faixa etária semelhante. Ou seja, não é possível confiar a educação dos filhos para os pais que não dispõe de recursos pedagógicos e já estão assoberbados com outras tarefas domésticas.
Ana Clara Ferrari, Agência Todas