Partido dos Trabalhadores

Indianara, peça de resistência ao avanço do totalitarismo, estreia no Brasil

Chega às plataformas digitais documentário sobre trajetória da ativista transexual Indianare Siqueira, fundadora da Casa Nem, abrigo de pessoas LGBTIs no Rio de Janeiro. Destaque em Cannes e mais 40 festivais internacionais de cinema, o longa dimensiona a luta da revolucionária em favor das minorias, entrelaçando momentos históricos do país como os protestos contra Temer, a prisão de Lula e a morte de Marielle Franco, companheira de batalhas de Indianare, covardemente assassinada em 2018. Resistindo à escalada autoritária do governo Bolsonaro, Indianare é pré-candidata à vereadora pelo PT

Divulgação

A trajetória de lutas da protagonista pela causa LGBTI é retratada no filme "Indianara"

“A revolução pode ser na paz, no amor e no afeto. Mas se não puder, será no fogo e na pedrada”. A frase é de Indianare Siqueira e está presente no longa-metragem “Indianara”. O petardo, segundo ela, continua valendo para 2020. Em depoimento exclusivo à Agência PT de Notícias, a ativista pelos direitos de pessoas LGBTIs considera que o coronavírus representa uma boa oportunidade para a sociedade questionar o sentido do capitalismo, além de uma revisão do papel do Estado . “As pessoas devem ficar em casa, mas com condições para ficar em casa, não passando fome, sem direito à saúde, sem direito a nada”, afirma Indianare, que mudou recentemente o nome para enfatizar a igualdade de gêneros. A trajetória de lutas da ativista é tema central do documentário que leva seu nome e chegou às plataformas digitais  de todo o país nesta quinta-feira (25), no Mês do Orgulho LGBT.

“Indianara” foi lançado em 2019 no Festival de Cannes, na França, e, de lá, percorreu um circuito internacional de 40 festivais antes de desembarcar no Brasil. Dirigido pela francesa Aude Chevalier-Beaumel, radicada no Rio de Janeiro, e o brasileiro Marcelo Barbosa, diretor de filmes experimentais, o longa retrata a jornada de lutas de Indianare, revolucionária e matriarca da Casa Nem, um abrigo no centro histórico do Rio destinado a atender pessoas LGBTIs em situação de vulnerabilidade. Também é o primeiro filme a acompanhar e documentar a atuação de Marielle Franco, companheira de batalhas de Indianare, covardemente assassinada em circunstâncias misteriosas em 2018.

Em função da pandemia, “Indianara” foi lançado nas plataformas iTunes, Google Play, NOW, Looke e Vivo Play. No dia 05 de julho estreia, também por streaming, em 195 países. Com forte repercussão na Europa, especialmente na França, onde foi exibido em 70 salas de cinema, o filme foi destaque em veículos prestigiados como os jornais ‘Le Monde’, ‘Telerama’, ‘Libération’ e a renomada espanhola ‘Fotogramas’, com resenhas elogiosas. A revista classificou ‘Indianara’ como um dos 20 melhores documentários estrangeiros de 2019. No Brasil, o longa foi exibido na 43ª Mostra de São Paulo, e passou por festivais em Recife (PE), Curitiba (PR), João Pessoa (PB) e Rio Branco (AC), além de uma sessão especial no Consulado-Geral da França no Rio de Janeiro (RJ).

Ato de resistência

Idealizado como um documentário sobre as lutas da população LGBTI- pelo olhar da então vereadora suplente Indianara – em um país devastado por um golpe fraudulento que tirou uma presidenta do campo popular do poder -, “Indianara” transformou-se em uma histórica peça de resistência contra o fascismo e o totalitarismo. Com uma linguagem universal e forte carga dramática – favorecida pela incrível proximidade da câmera com os personagens – o filme captura de perto o cotidiano da ativista para mesclá-lo à própria história recente do país, trazendo imagens impactantes das manifestações contra Temer, os protestos contra a prisão de Lula e a morte de Marielle.

Na história, Indianara está prestes a completar 50 anos e vive uma relação intensa com o companheiro “macho alfa”. Em meio aos preparativos para a cerimônia de matrimônio do casal, ela atende a um chamado para mais um ato revolucionário diante do retorno de forças conservadoras, saídas das trevas direto para o centro da política nacional. Os golpistas chegaram dispostos a tudo para impor uma agenda nociva aos interesses do país: a retirada de direitos de trabalhadores, a suspensão de gastos nas áreas de saúde e educação, o massacre das populações carentes pela destruição de conquistas sociais e até a perigosa ascensão autoritária representada por Bolsonaro.

“Em primeiro lugar, o documentário é um grito de liberdade pelas opressões que os corpos de pessoas LGBTIs  sofrem em uma sociedade patriarcal e machista”, define Indianare. “Mas também é um filme que mostra porque ainda é tão necessário que a gente lute por moradia, por direitos básicos que as pessoas nem deveriam mais estar brigando”. 

Transformação

Para a diretora Aude Chevalier-Beaumel, o convívio com o grupo de Indianara foi uma experiência que afetou profundamente a realização do filme. “Para fazer o filme, tivemos de entrar para o bando de Indianara e, de certo modo, deixamos nos transformar. Em nenhum momento pensamos em fazer um filme de observação distante e imparcial”, afirma Aude, no release distribuído à imprensa.

Marcelo Barbosa avalia que o filme é uma aposta na capacidade do ser humano de se relacionar e resolver seus problemas. “O filme leva o nome de uma pessoa, mas traz uma crença de que esse passo, com afeto, será coletivo”, disse, em entrevista à ‘Agência PT de Notícias’. 

Em um país que lidera o ranking de assassinatos de LGBTs, ‘Indianara’ reverbera como uma resposta em alto e bom som a tudo que há de sombrio e retrógrado em certos setores da sociedade. “No fundo, o filme fala menos das causas do que das consequências dessa violência. Nesse sentido, é um grito”, opina Marcelo Barbosa. “Mostrar o que essas pessoas constroem por cima desse horror da qual são vítimas é muito transformador. Só de ouvir com atenção essas histórias já muda muita coisa”, observa o diretor.

Indianare e Marielle Franco. Foto: Reprodução

Marielle Franco

“O retrocesso é total, vem desde o golpe contra a Dilma”, pontua Indianare, que também fez parte do Comitê contra o Impeachment, do movimento Volta Dilma e é pré-candidata à vereadora no Rio de Janeiro pelo PT. Para ela, o golpe não só foi o início da investida contra as conquistas sociais das populações de baixa renda nos governo petistas, mas a abertura da porteira para a ascensão do fascismo. “O impeachment foi um pesadelo e era só o começo”.

Ela refere-se a um acontecimento que alterou o curso da história das lutas em favor das minorias e do próprio filme do qual é personagem principal: o assassinato de Marielle Franco, executada com quatro tiros na cabeça, aos 38 anos. Companheira de Indianare na política e uma amiga fora da Câmara dos Vereadores, onde exercia um mandato depois de ser eleita por uma votação histórica, Marielle era conhecida por sua atuação em defesa de jovens, mulheres e moradores da periferia vítimas da violência. As duas se conheceram em 2010, na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), quando Indianare pediu proteção em razão das ameaças de morte que vinha sofrendo por denunciar práticas de cafetinagem na capital fluminense.

“Talvez o assassinato da Marielle tenha sido o ponto social mais baixo a que o país chegou em muitas décadas”, reflete Barbosa. “Mudou completamente o sentido do filme, mudou toda nossa percepção e mudou o país. Havia de início uma luta por direitos que, então, retrocedeu para uma luta pela sobrevivência pura”, afirma. Para Indianare, em muitos sentidos, o documentário assumiu um caráter premonitório. “O filme iria retratar um pouco da minha história política, depois de 2016, quando me tornei vereadora suplente. Mas hoje vemos que é um filme premonitório, parece que ele antevia tudo o que estamos passando agora”, observa.

Fascismo

“Em qualquer outro lugar do mundo, uma execução como foi a de Marielle levaria o povo a se levantar contra o fascismo, a querer tomar o poder”, compara Indianare. “No Brasil, aconteceu o contrário, permitiu a ascensão do fascismo”, espanta-se a ativista, comentando ainda a eleição de Jair Bolsonaro em 2018. “É muito desesperador”.

“Agora estamos aí onde chegamos. O Brasil devastado, com um desgoverno, formado por milicianos corruptos. Tivemos um presidente que tanto fez pelo país preso de forma ilegal, um juiz fascista que ascendeu ao poder como ministro…  é surreal, como um filme de terror”.

Mobilização

Ela defende a saída urgente de Bolsonaro, “A saída de Bolsonaro nos daria outro fôlego, tiraríamos um fascista que ascendeu pregando o ódio ao PT e disseminando mentiras em forma de fake news”, argumenta. Segundo a líder LGBTI, o espectro militar sobre o país representa outra ameaça ao campo progressista.”Não estamos em uma ditadura declarada, mas de resto esse já é um governo ocupado por militares, vivemos praticamente um regime militar”, constata.

Ela argumenta que apenas uma mobilização popular pode derrubar o governo. “Se precisar, bloqueamos tudo e cruzamos os braços, é só não darmos lucro ao capital que eles caem”, sustenta Indianare. “Quem puder ir pra ruas, protegido, com máscara, vá, porque nós temos que tomar as ruas deles, dizer que as ruas não são deles”, sustenta. “E é aquilo mesmo: se [a revolução] tiver que ser no fogo e na pedrada, vai ser”.

Indianare avalia ainda que o coronavírus pode trazer uma oportunidade de conscientização política, além de uma revisão do papel do Estado no país. “O coronavírus pode fazer uma revolução contra o capitalismo que a gente não conseguiu fazer com as greves gerais. Por isso entendo o Lula, quando ele falou sobre as chances que a doença nos deu para uma mudança”, frisa. “Aconteceu a mesma coisa com a Aids nos anos 80 e 90”.

Casa Nem

Nas trincheiras deste tenebroso 2020, ano em que pretende ser candidata a vereadora pelo PT, Indianare concentra suas forças em salvar a Casa Nem, da qual é fundadora, de uma ação de despejo. O abrigo atende 50 pessoas diretamente em um prédio ocupado em Copacabana, e outras 130 que dependem do fornecimento de cestas básicas e, por conta da pandemia, de mantimentos de proteção como máscaras e produtos de higiene. “A Casa Nem é mais do que uma ocupação, é uma ideia. E as ideias não morrem”, defende.

A Casa já distribuiu mais de 2.500 cestas básicas neste ano, não apenas para a comunidade LGBT mas para populações carentes de favelas e da periferia. Além disso, também doaram 5 mil máscaras de pano, feitas nas dependências de um ateliê da própria Casa Nem. Pelo ateliê, pessoas LGBT estão produzindo as máscaras e recebendo auxílio de R$ 800. O abrigo também participa de um projeto com o Ministério Público do Trabalho, que irá permitir a confecção de mais 6.800 máscaras por outras 34 pessoas, que também receberão auxílio. A Casa também distribui marmitas a moradores de rua e até ração para cães abandonados.

O abrigo já passou pela Lapa, Botafogo e Vila Isabel antes de chegar em Copacabana, em um prédio abandonado e deteriorado e que foi recuperado pelos voluntários do grupo. Lá, foi encontrado um acervo de obras de arte, esquecido no prédio. “Chamamos o diretor do Museu  Nacional, o IPHAN (Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), a Polícia Federal, e  entregamos as obras”.

O prédio é histórico e estava abandonado há mais de 10 anos. “O prédio estava em um estado deplorável, com morcegos, ratos… Nós limpamos e deixamos habitável”, relata, explicando que a ocupação despertou interesses. “Recebemos uma ordem de reintegração de posse no dia 9 de junho. São 30 dias para desocupar o prédio”, relata. “Com todos esses projetos, sofremos um ataque como esse. O judiciário, ao invés de pensar no seres humanos, ainda mais no meio da pandemia, pensa em proteger patrimônio. É um ataque que coloca em risco a vida de mais de 50 pessoas”.

A ativista adverte que pelo menos outras 10 ocupações estão sofrendo ataques judiciais, com ameaças de despejo, e outras ligadas à Frente Internacionalista dos Sem Teto (FIST), entidade que tem a Casa Nem como filiada. A revolucionária avisa, no entanto, que não se deixará intimidar pela investida conservadora. “Nossa resposta é e sempre será a solidariedade”.

Da Redação