Na profusão de reações ao anúncio da troca na presidência da Petrobras, a do PSDB soou como uma confissão. No sábado (20), o partido publicou nas redes sociais uma foto do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso ao lado de uma imagem de Jair Bolsonaro, se vangloriando pelo fato de o partido ter privatizado bem mais em sua gestão, e questionando: “quem é o comunista e quem é o liberal?”.
A pretensa ironia revela outra maior: o partido – Fernando Henrique Cardoso à frente – é o principal responsável pela dolarização dos preços dos combustíveis que gerou a crise atual. A nefasta política de Preço de Paridade Internacional (PPI), como era feito no governo FHC, foi adotada em 2016 por Pedro Parente, indicado por ele. Parente, ex-ministro do apagão tucano, em 2002, tornou-se a primeira “vítima” da PPI após a greve dos caminhoneiros, conhecida como “crise do diesel”, deflagrada em maio de 2018.
Nomeado ainda em maio de 2016 por Temer para a presidência da Petrobras, Parente adotou a política de PPI em julho de 2016, dois meses após o afastamento de Dilma Rousseff. Com ela, os preços nas refinarias, primeiro do diesel e da gasolina e depois do GLP (gás de cozinha), passaram a ser calculados conforme a cotação internacional convertida em reais pela taxa de câmbio, mais 5% a título de “custos adicionais”.
Com essa política, os concorrentes da companhia com refinarias no exterior passaram a vender seus produtos no Brasil, tomando mercado da própria Petrobras. Além de afetar a Petrobras, cujas refinarias passaram a operar na ociosidade, prejudicou também os consumidores, que passaram a pagar preços muito mais altos.
“Petrobras s/ “intervenção” = menos refino de petróleo e + importação de combustível dos EUA, q subiu de 39% p/ 67%. Brasil fica dependente do mercado externo, o q reforça alto preço da gasolina/diesel/gás. Povo paga caro e estrangeiras felizes c/ política golpista, America First!”, publicou a presidenta nacional do Partido dos Trabalhadores, Gleisi Hoffmann, em seu perfil no Twitter, nesta segunda (22).
Na postagem, a deputada federal paranaense apresenta um gráfico demonstrando a evolução da participação norte-americana nas importações brasileiras de gasolina, que subiram de 29,3% em 2015 para 65,9% em 2019.
“Nos governos Lula e Dilma, as nossas refinarias estavam a plena carga, com 100% de sua capacidade e condições de suprir o mercado interno e praticar preços acessíveis à população”, lembrou José Maria Rangel, coordenador-geral da Federação Única dos Petroleiros (FUP) em 2018. “Agora, por uma decisão do governo, reduzimos drasticamente a carga processada em nossas refinarias e aumentamos a importação. Temer diminuiu o papel do Estado e passou a incentivar o investimento privado.”
Preços mais altos, dilapidação e entrega do patrimônio
Segundo dados da FUP, nos primeiros 90 dias após 3 de julho de 2016, data oficial de adoção da política do PPI pela Petrobras e do aumento em 30% das alíquotas de PIS/Cofins pelo usurpador Michel Temer, houve 58 reajustes nos valores dos combustíveis. O valor médio final ao consumidor subiu 10,98%, aumento 30 vezes superior à inflação do período. Antes da mudança, a gasolina acumulava redução de 2,17% no preço, considerando os valores praticados de janeiro ao fim de junho.
Em 2017, mesmo o Brasil tendo sido o maior produtor de petróleo da América Latina, o preço da gasolina ao consumidor final bateu recordes de aumento. Naquele ano, foram importados mais de 200 milhões de barris de derivados de petróleo, recorde da série histórica da Agência Nacional do Petróleo (ANP). Dados do Ministério de Minas e Energia mostraram que cinco refinarias da Petrobras (Rlam, Reman, Reduc, Refap e Rpcc) já operavam com capacidade inferior a 70% em 2017.
Financista especializado em mercados de capital, Pedro Parente tentara, durante o governo FHC, mudar o nome da Petrobras para “Petrobrax”, que considerava mais “palatável” para o mercado financeiro internacional. À frente da Petrobras, ele vendeu mais de US$ 15 bilhões em ativos, entre eles a malha de gasoduto do Sudeste NTS e 28% de participação na BR Distribuidora.
Em janeiro de 2019, Bolsonaro nomeou Roberto Castello Branco. Logo que assumiu, ele mostrou claramente a que veio com a frase: “Meu sonho sempre foi privatizar a Petrobras”. No ano passado, Castello Branco afirmou que a Petrobras em 2019, com sua gestão, obteve o maior lucro da história (R$ 40 bilhões).
Castello Branco omitiu que o lucro foi obtido pelo resultado da venda de ativos da empresa (R$ 24 bilhões) e da venda do controle acionário da BR Distribuidora (R$ 14 bilhões), e não pelo seu desempenho operacional. Em 2019, a companhia registrou a menor geração operacional de caixa em dez anos e encerrou 2019 com capital de giro negativo (ativo corrente-passivo corrente).
Para burlar a lei, que determina que a venda de ativos que fazem parte da Petrobras (empresa mãe) só podem ser feitas com autorização do Congresso Nacional, Castello Branco procurou o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), em julho de 2019, fazendo uma autodenúncia por prática de monopólio e oferecendo em reparo oito de suas refinarias para venda. Essas oito refinarias, que respondem por 50% da produção nacional de combustíveis, agora se encontram em processo de entrega.
Golpe articulado com estrangeiros
Temer avançou sobre o patrimônio da Petrobras o quanto pode. Em novembro de 2016, ele sancionou, sem vetos, a Lei nº 13.365, a partir de projeto de lei do senador José Serra (PSDB-SP), relatado pelo colega Romero Jucá (MDB-AP), que acabou com a exclusividade da Petrobras na operação do pré-sal. A presidente Dilma Rousseff era contrária ao projeto de Serra e o substitutivo de Jucá. Temer, favorável.
Em 2010, Serra havia sido derrotado nas urnas por Dilma. Em 2014, foi eleito senador. Valendo-se do cenário em que a oposição já havia decidido pelo impeachment em 2015, apresentou o projeto que alterava a Lei da Partilha. Coincidentemente, na eleição de 2014 o candidato do PSDB, Aécio Neves, também defendeu o fim do modelo de partilha.
Estava aberta a “porteira” para a entrada das petroleiras estrangeiras no pré-sal como operadoras. No período 2017/2018, foram realizados quatro leilões no pré-sal, permitindo a entrada na exploração da Shell, Statoil, Exxon e BP. O modelo de partilha teria de ser ajustado, o que ainda não ocorreu. O fato é que não há como controlar a apropriação dos gastos das operadoras que serão lançados como “custo em óleo”.
Contrariando os interesses do país, a política de conteúdo local já havia sido flexibilizada em 2016, com o Programa de Estímulo à Competitividade da Cadeia Produtiva, ao Desenvolvimento e ao Aprimoramento de Fornecedores do Setor de Petróleo e Gás Natural (Pedefor). As penalidades para os descumprimentos de contratação nacional mínima, estipuladas nos contratos, foram atenuadas e os elos da cadeia de valor enfraquecidos.
Em julho de 2018, a Medida Provisória (MP) 795/2017, editada por Temer, conhecida como “MP do trilhão”, foi transformada na Lei 13.586/17 pelo Congresso Nacional, isentando empresas estrangeiras do setor de petróleo de pagar impostos na importação de produtos como plataformas, máquinas e equipamentos. O prejuízo para os cofres públicos nos próximos 20 anos é estimado em R$ 1 trilhão.
Na época, o Partido dos Trabalhadores denunciou fortemente a pauta entreguista do golpe. “Em 2009, o Wikileaks vazou conversa de José Serra com executivos da Chevron na qual ele assumia o compromisso de mudar as regras do pré-sal para beneficiar a empresa e outras petroleiras estrangeiras. Muita gente não acreditou, a grande mídia abafou”, lembrou o então senador Lindbergh Farias (PT-RJ).
Lindbergh se referia ao episódio que revelou telegramas do consulado norte-americano no Brasil falando sobre a atuação de petroleiras estrangeiras contra a regulamentação da exploração das reservas do pré-sal, a maior descoberta deste século. O modelo de partilha definido pelos governos do PT, entregando à União pelo menos 30% dos campos de petróleo, com a Petrobras como operadora exclusiva, contrariava seus interesses.
A diretora de relações internacionais da Exxon Mobile, Carla Lacerda, reclamou que a Petrobras teria todo controle sobre a compra de equipamentos, tecnologia e a contratação de pessoal, o que poderia prejudicar os fornecedores ianques. E a diretora de relações governamentais da Chevron, Patrícia Padral, acusou o governo de fazer uso “político” do modelo. “Mas as regras sempre podem mudar depois”, afirmou.
Intitulado “A indústria de petróleo vai conseguir combater a lei do pré-sal?”, o telegrama do consulado detalhava a estratégia de lobby adotada no Congresso e mencionava o então pré-candidato do PSDB à presidência. “Deixa esses caras (do PT) fazerem o que eles quiserem. As rodadas de licitações não vão acontecer, e aí nós vamos mostrar a todos que o modelo antigo funcionava… E nós mudaremos de volta”, afirmou Serra.
“A estratégia é recrutar novos parceiros para trabalhar no Senado, buscando aprovar emendas essenciais na lei”, concluiu o telegrama do consulado. Entre os parceiros, a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e a Confederação Nacional das Indústrias (CNI), parceiros decisivos do golpe de 2016.
José Serra acabou com a obrigatoriedade de a Petrobrás participar dos leilões do pré-sal, mas a companhia manteve o direito de preferência. O senador agora pretende eliminar esse direito. Tramita na Comissão de Infraestrutura do Senado o projeto de lei 3178/2019, do senador, com esse objetivo.
Prosseguindo no projeto lesa-pátria, em dezembro de 2019 Bolsonaro sancionou a Lei nº 13.956. A lei permite à Petrobras vender até 70% dos seus direitos de exploração das áreas de cessão onerosa a outras empresas. Isso significa a possibilidade de repassar para empresas estrangeiras o direito de exploração de cinco bilhões de barris do pré-sal. No regime de cessão onerosa, a União só recebe 10% dos royalties sobre a produção de petróleo. A taxação é inferior à do regime de partilha, onde se paga 15%.
Da Redação