29 de janeiro é o Dia da Visibilidade Trans, uma data que visa a promover reflexões sobre a cidadania das pessoas travestis, transexuais (homens e mulheres trans) e não-binárias, as quais não se reconhecem como homens nem como mulheres. Foi escolhida porque nela houve o lançamento oficial da campanha Travesti e Respeito, promovida pelo Programa Nacional de DST/Aids do Ministério da Saúde em 2004, e que se tornou um marco para a luta protagonizada por militantes travestis históricas, como Fernanda Benvenutty, Jovana Baby, Kátia Tapety, Keila Simpson, entre muitas outras que deram a sua vida por um mínimo de humanização à população por elas representada.
O termo trans é uma abreviação de “transgêneros”, que se refere às pessoas que não se identificam com o gênero que lhes foi atribuído quando nasceram. Nos últimos anos houve um avanço para a visibilidade e consequente reconhecimento do direito à existência das pessoas trans enquanto cidadãs, as quais ainda não têm acesso pleno a direitos fundamentais como o de identidade, direito ao auto-reconhecimento, direito de ir e vir, direito à vida.
Na maioria das vezes, devido à transfobia (preconceito contra a população trans), sofrem rejeição da família, são forçadas a abandonar a escola sem terminar os estudos e enfrentam grandes dificuldades de inserção no mercado de trabalho, entre outras iniquidades, que as tornam altamente vulneráveis, nos níveis social e pessoal.
De acordo com dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), mais de 90% das travestis e mulheres trans brasileiras só encontram trabalho no mercado informal, concentradamente na prostituição. Não por opção, mas como única oportunidade de sobrevivência.
O Brasil é o país no qual mais se registram assassinatos de pessoas trans no mundo, particularmente das travestis e mulheres trans, configurando uma série de crimes de ódio que pode ser caracterizada como um tipo de feminicídio.
Dados da Organização Não-Governamental TransGender Europe (TGEU), que monitora a situação dos direitos humanos de pessoas trans em diferentes partes do mundo, indicam um total de 2.609 assassinatos em 71 países, entre primeiro de janeiro de 2008 e 30 de setembro de 2017. O Brasil é responsável, sozinho, por mais da metade desses crimes transfóbicos!
O pequeno espaço conquistado pela população trans é fruto de sua própria mobilização pelo respeito a suas especificidades e valorização de suas experiências particulares, e tem sido potencializado pela inserção dos coletivos trans e seus aliados cis (abreviação de “cisgêneros”. Cisgênero é quem não é trans, ou seja, quem se identifica com o gênero que lhe foi atribuído quando nasceu).
Repito o que escrevi em 2013, no Manifesto Transgênero: “A maioria sequer suspeita, mas vivemos hoje no Brasil um momento singular. Das margens da sociedade se subverte nossa história conservadora de controle sobre os corpos”.
Vale citar o excelente Programa Transcidadania, iniciado na Cidade de São Paulo pelo prefeito Fernando Haddad, e inicialmente coordenado por Symmy Larrat, como uma das pouquíssimas e exemplares políticas públicas voltadas para a inserção educacional, formação profissional e promoção da cidadania de pessoas trans em situação de vulnerabilidade social, tendo atendido, até 2016, 221 beneficiários, sendo 61% negros.
Um avanço histórico para a cidadania trans foi o reconhecimento, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em 1º de março de 2018, do direito de pessoas trans à autodeterminação de gênero, podendo retificar seus registros civis (nome e sexo nos documentos) em cartório, sem necessidade de judicialização ou de terem sua identidade diagnosticada.
A emergência de temas como a autonomia do movimento trans frente a outros movimentos sociais, a luta internacional pela despatologização, a diversidade sexual e de gênero das identidades trans, os privilégios da cisgeneridade, o reconhecimento da infância, adolescência e terceira idade trans, a reparação dos déficits educacionais, a inserção no mercado de trabalho formal e a representatividade nas artes e na política partidária, são questões que vão formatando pautas políticas amplas, e incitado a maior participação política de pessoas trans, para além dos espaços restritos que lhes são tradicionalmente atribuídos.
Conforme identificado pela ANTRA, foi registrado em 2018 um número recorde de 53 candidaturas trans nas eleições (incluindo a primeira candidata ao Senado), em relação a 2014, quando houve apenas cinco candidatos.
Entidades como a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT), presidida por Symmy Larrat; a Associação Brasileira de Estudos da Homocultura (ABEH), presidida pela professora doutora Luma Andrade; e o Instituto Brasileiro Trans de Educação (IBTE), presidido pela professora mestra Andréia Laís Cantelli; além de iniciativas de indivíduos e coletivos socialmente engajados, como a Casa 1, criada por Iran Giusti, e a Casa Florescer, gerida por Alberto Silva, ambas em São Paulo; a Casa Nem, liderada no Rio de Janeiro por Indianare Alves Siqueira; a CasAmor de Aracaju, criada por Linda Brasil; os cursos preparatórios TransEnem BH, coordenado por Raul Capistrano e Bel Lemos, TransVest, coordenado por Duda Salabert, que concorreu ao Senado por Minas Gerais, e Prepara Nem Niterói, coordenado por Bruna Benevides,promovem ações de visibilidade, a partir de manifestações públicas, principalmente pelo ativismo na rede virtual, instrumento pelo qual fabrica novas realidades sociais, reconfigura relações de gênero e demonstra, na sua práxis, que a identidade de gênero não esgota a subjetividade das pessoas trans.
Concluo esta reflexão pertinente não apenas a este mês da visibilidade trans, mas a todos os dias, nesta sociedade transfóbica, propondo que as pessoas cisgêneras se tornem mais humanas, ao reconhecerem a humanidade das pessoas trans, a mulheridade das mulheres trans e travestis, a condição de homens dos homens trans, principalmente por meio do convívio, da valorização, e que acima de tudo, aprendam o que a criadora da Bandeira do Orgulho Trans, Mônica Helms, quis dizer, ao criá-la em 1999:
“Azul para meninos, rosa para meninas, branco para quem está em transição e para quem não se sente pertencente a qualquer gênero: isso significa que não importa a direção do seu voo, ele sempre estará correto”!
Indicações de leituras que abordam a realidade da população trans brasileira
ANDRADE, L. N. Travestis na escola: assujeitamento e resistência à ordem normativa. Rio de Janeiro: Metanoia, 2015.
ANTUNES, P. P. S. Travestis envelhecem?. São Paulo: Annablume, 2013.
ARARUNA, M. L. Nós trans: escrevivências de resistência. Grupo Transcritas Coletivas. Belo Horizonte: Litera Trans, 2017.
ARILHA, M., LAPA, T. S. & PISANESCHI, T. C. Transexualidade, travestilidade e direito à saúde. São Paulo: Oficina Editorial, 2010.
ÁVILA. S. Transmasculinidades: a emergência de novas identidades políticas e sociais. Rio de Janeiro: Multifoco, 2014.
BENTO, B. A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Rio de Janeiro: Garamond, 2006.
BENTO, B. O que é transexualidade. São Paulo: Editora Brasiliense, 2008.
DUQUE, T. Montagens e desmontagens: desejo, estigma e vergonha entre travestis adolescentes. São Paulo: Annablume, 2011.
FERREIRA, G. G. Travestis e prisões: experiência social e mecanismos particulares de encarceramento no Brasil. Curitiba: Multideia, 2015.
GUIMARÃES, A. Meu nome é Amanda. Rio de Janeiro: Fábrica231, 2016.
JESUS, J. G. Feminicídio de mulheres trans e travestis: o caso de Laura Vermont. Em: PRADO, Débora; SANEMATSU, Marisa (Orgs.), Feminicídio #InvisibilidadeMata (pp. 72-82). São Paulo: Instituto Patrícia Galvão/Fundação Rosa Luxemburgo, 2017. Disponível em https://bit.ly/2BNvg1e
JESUS, J. G. Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos. Goiânia: Ser-Tão/UFG, 2012. Disponível em: https://bit.ly/2hcmf8D
JESUS, J. G. Transfeminismo: teorias e práticas. Rio de Janeiro: Metanoia, 2015.
LEITE JÚNIOR, F. F. Sob as marcas do tempo: (trans)envelhecimento na (trans)contemporaneidade. Jundiaí: Paco, 2017.
LESSA, J. Eu trans: a alça da bolsa, relatos de um transexual. Rio de Janeiro: Metanoia, 2014.
MOIRA, A. E se eu fosse puta. São Paulo: Hoo Editora, 2016.
MOIRA, A., NERY, J. W., ROCHA, M. & BRANT, T. Vidas trans: a luta de transgêneros em busca de seu espaço social. Bauru: Astral Cultural, 2017.
NERY, J. W. Viagem solitária: memórias de um transexual trinta anos depois. São Paulo: Leya, 2011.
PELÚCIO, L. Abjeção e desejo: uma etnografia travesti sobre o modelo preventivo de AIDS. São Paulo: Annablume, 2009.
PERES, W. S. Travestis brasileiras: dos estigmas à cidadania. Curitiba: Juruá, 2015.
VASCONCELOS, P. Transresistência: histórias de pessoas trans no mercado formal de trabalho. São Paulo, 2018. Disponível em: https://bit.ly/2RAMuql
VERGUEIRO, V. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade. Dissertação de Mestrado. Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos. Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015. Disponível em: https://bit.ly/2fGxXGN
WONDER, C. Olhares de Cláudia Wonder: crônicas e outras histórias. São Paulo: Edições GLS, 2008.
Jaqueline de Jesus é professora do Instituto Federal do Rio de Janeiro e foi Assessora de Diversidade e Apoio aos Cotistas da Universidade de Brasilia