A jornalista Hildegard Angel publicou hoje em sua coluna no Jornal do Brasil uma carta aberta à presidenta do Supremo Tribunal Federal (STF), Cármen Lúcia. Ela pede à ministra que coloque em pauta na Corte o julgamento das Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) que colocam em questão a privação de liberdade após condenação em segunda instância. O pedido é um dos pleito dos ativistas há 22 dias em greve de fome em Brasília.
Segundo as ações, levadas ao STF pelo PCdoB, a determinação de cumprimento de pena antes de se esgotarem as possibilidades de recurso viola o texto constitucional que trata da presunção de inocência e do direito de defesa. E leva antecipadamente à prisão, além do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, favorito à eleição presidencial em outubro, entre 150 mil e 200 mil pessoas que podem estar sofrendo privação de liberdade – um bem irrecuperável caso venham a comprovar, mais adiante, sua inocência – num país em que o sistema carcerário está saturado e falido.
A jornalista, filha da estilista Zuzu Angel, morta pela ditadura em represália a sua luta para desvendar a participação do Estado brasileiro na prisão e assassinato de Stuart Angel, irmão de Hildegard, recorre à lembrança da mãe e de outras mulheres mineiras – como Zuzu e a própria Cármen – de destacado papel em defesa da liberdade: Hipólita Jacinta Teixeira de Melo, ativista na Inconfidência Mineira, e Tiburtina Alves, na Revolução de 1930.
A carta menciona ainda um ex-ministro do Supremo, Adauto Lúcio Cardoso, outro mineiro. “Primo-irmão de minha mãe, em família divergiam no pensamento político, mas eram convergentes na causa comum das liberdades democráticas.” E faz referência ao fato de que a um magistrado não cabe colocar preferências partidárias à frente da letra da lei. “Peço a Vossa Excelência e aos demais membros da Corte que ouçam as vozes, não as que lhes são mais próximas, mas as das ruas.”
Hildegard alerta para o momento delicado vivido pelo país. “No momento, a causa extrema é a da nossa Democracia. Faz-nos aflição nos sentirmos na iminência de perdê-la, abalada pela disseminação de um ódio que contamina e torna violenta a nossa sociedade.”
Ela ainda chama a atenção para o fato de sete militantes de movimentos populares em greve de fome, motivada por essa causa, estarem com a vida em perigo. “Vamos apascentar os corações deste país, antes que tenhamos que verter lágrimas por esse sacrifício em seu momento extremo, que parece estar próximo.”
Leia a íntegra
Carta aberta à presidente do Supremo Tribunal Federal
Presidente Cármen Lúcia,
Pretendia fazer esse pleito pessoalmente, por ocasião da visita a Vossa Excelência do sr. Adolpho Perez Esquivel, na pequena comissão de representantes da sociedade brasileira. Mas isso não foi possível. Resta-me faze-lo por esta carta, animada por suas demonstrações de solidariedade à luta e à memória de minha mãe, já feitas publicamente e diretamente a mim.
As mulheres mineiras, como são ambas vocês, têm tradição em nossa História de bravura e compaixão. Assim foram, na Inconfidência, Hipólita Jacinta Teixeira de Melo e, na Revolução de 1930, Tiburtina Alves, que, em suas épocas, na defesa de causa maior, desafiaram o medo e o senso comum.
No momento, a causa extrema é a da nossa Democracia. Faz-nos aflição nos sentirmos na iminência de perdê-la, abalada pela disseminação de um ódio que contamina e torna violenta a nossa sociedade, pela primeira vez na História republicana dividida radicalmente.
Amigos rompem relação, parentes não se falam, vizinhos deixam de se cumprimentar. Não houve precedentes em nossa sociedade, a não ser nas ditaduras, quando o temor de retaliações e estigmas levava pessoas a evitarem umas às outras.
Felizmente, lá se vão mais de trinta anos do último período de exceção. Contudo, os ares da excepcionalidade voltam a nos sufocar, confundir e separar. Urge que a Constituição Brasileira volte a ser cumprida em sua integralidade o quanto antes, o tempo atropela o desenrolar dos fatos, e as consequências são imprevisíveis.
Peço a Vossa Excelência e aos demais membros da Corte que ouçam as vozes, não as que lhes são mais próximas, mas as das ruas. Que atentem para o clamor popular, que se faz revolta pelo descrédito que agora inspiram ao povo as nossas instituições. Vemos manifestações em lugares públicos, marchas, movimentos, até greves de fome ocorrerem, na esperança de lhes atrair a atenção. De lhes merecerem um olhar ou até mesmo a preocupação.
Por favor, sra. Ministra, Deus lhe deu esta missão importante de apaziguar a Nação com seus atos, conduzindo este momento da História. Sei que o Supremo de nosso país tem sido capaz de atos de coragem que desafiam o próprio tempo. Como o do saudoso ministro Adauto Lúcio Cardoso, outro mineiro. Primo-irmão de minha mãe, em família divergiam no pensamento político, mas eram convergentes na causa comum das liberdades democráticas.
Ministra Carmen Lúcia, lhe rogo que paute as Ações Declaratórias de Constitucionalidade, que colocam em questão o entendimento firmado pela Corte de autorizar o cumprimento de pena após condenação em segunda instância. Esta é a reivindicação que temos percebido no clamor das ruas, levando até sete militantes de movimentos populares a completarem hoje 22 dias de greve de fome no Distrito Federal.
Vamos apascentar os corações deste país, antes que tenhamos que verter lágrimas por esse sacrifício em seu momento extremo, que parece estar próximo.
Sei de sua bravura, peço-lhe, também, a compaixão.
Muito respeitosamente,
Hildegard Angel