Está na ordem do dia a luta dos que trabalham via aplicativos por seus direitos, começando pela legalização de seu trabalho e de um vínculo trabalhista com a empresa para a qual prestam serviços. Os antecedentes da uberização, como ficou conhecida a economia de plataforma ou economia compartilhada e do bico, foram os modelos fordista e toyotista.
O primeiro, no início do século XX, reinventou as relações de trabalho e produção com uma gerência racional e um sistema de remuneração com salários acima da média e uma série de benefícios inéditos no mundo industrial.
Já a Toyota, logo depois da II Guerra Mundial, inovou ao introduzir a produção flexível e sob demanda (just in time) e um novo projeto de relação entre o trabalhador e a empresa. Tal harmonia nas relações entre empresa e trabalhador recorreu às ideias da gestão participativa, da cooperação, do consenso, da integração e da participação. Como parte da equipe, o trabalhador passou a sentir-se responsável pelos resultados da empresa, pelo aumento da produtividade, pela redução dos custos e maximização dos lucros.
Status não mudou
Só que essa “harmonia”, se permitiu ao Japão um forte desenvolvimento tecnológico e liderança em vários mercados, não mudou o status dos trabalhadores japoneses. Eles não se transformaram em sócios das empresas, o seu padrão de bem estar social não sofreu mudanças significativas.
Ao contrário. Quatro décadas depois do auge do modelo implantado pela Toyota e disseminado para muitas outras empresas mundo afora, o que vemos hoje é uma precarização bárbara do trabalho e diminuição da renda e da participação do trabalho na renda nacional.
Segundo os especialistas, a uberização é a superação para pior do modelo toyotista de transformar o trabalhador em colaborador, só que via economia do compartilhamento, confundindo trabalho com “empreendedorismo” (para não ter que arcar com direitos trabalhistas) e tornando fluídas as fronteiras entre consumo e trabalho. Mas enquanto no modelo Toyotista o trabalhador -colaborador tinha garantia de direitos, em especial a Previdência Social, no mundo da uberização não tem direito a nada. É um franco-atirador.
Na esteira do Uber, a plataforma de transporte individual mais popular em todo o mundo e que emprestou seu nome ao fenômeno atual da precarização do trabalho, seguiram-se várias outras plataformas de transporte (Cabify, Bolt, Grab etc.), de hospedagem (Airbnb, Booking), de aluguel e venda de imóveis (5 Andar) e de todo tipo de serviço: aluguel de carro, consulta médica, aluguel de escritório sob demanda, delivery de qualquer tipo de comida.
Sem tradição
Não só o céu é o limite, como empresas que atuam nesse ramo não necessariamente têm tradição no segmento. Há companhias que prestam serviço para pernoite e que nunca construíram um hotel nem mesmo contrataram um profissional de turismo.
Outras, sem nunca terem comprado um automóvel, oferecem para aluguel carros de pessoas que não os estão utilizando – veículos on demand; há quem ofereça vagas em garagens para locação mensal ou de apenas algumas horas, sem ter estacionamento ou manobrista. E por aí vai.
Essas empresas, ao se beneficiar dos avanços tecnológicos promovidos e guiados pelo capital, “destroem” mercados tradicionais através de estratégias que consideram apenas o negócio, sem levar em conta a sua inserção na cadeia produtiva e o impacto social. Com raríssimas exceções à regras, ignoram as leis de cada pais, fogem dos impostos domésticos e violam toda e qualquer legislação trabalhista.
Regressão selvagem
Se consideramos que essa violenta terceirização via plataformas acontece num momento de crise econômica, recessão, desemprego e retirada de direitos trabalhistas, de repressão a greves inclusive via Justiça trabalhista, teremos a fotografia da regressão selvagem e bárbara das condições de trabalho de milhões de trabalhadores em todo país, especialmente dos trabalhadores em aplicativos. Na busca de alternativas, surgiram propostas (e experiências) de cooperativas de trabalhadores com suas próprias plataformas, com apoio de prefeituras, sindicatos e iniciativas autônomas.
Mas o jogo não está jogado. Os trabalhadores brasileiros, que são obrigados a prestar serviços via plataformas, começam a se mobilizar em todo o país para lutar por seus direitos. Embora a 5ª Turma do TST não tenha reconhecido a existência de vínculo trabalhista entre prestador de serviço e empresa de aplicativo, em outros países, caso da Alemanha, a Justiça já dá ganho de causa ao trabalhador. Na Califórnia, há lei reconhecendo o vínculo trabalhista.
É hora de se propor uma lei específica no Congresso e lutarmos apoiando os trabalhadores em seus direitos históricos. Só para registrar: Uber e iFood são os maiores “empregadores informais” do país, com 4 milhões de trabalhadores. Não podemos deixá-los e às suas famílias à mercê da ganância das empresas e da conivência – quando não cumplicidade — dos tribunais do trabalho que hoje são mais do capital.
José Dirceu é ex-ministro da Casa Civil e um dos fundadores do PT
*Artigo publicado originalmente no Metrópoles