Para analisar o atual cenário político brasileiro é preciso, necessariamente, levar em conta dois pontos fundamentais no processo de construção da narrativa neoliberal que culminou numa série de retrocessos desde o golpe de 2016 e cujo episódio mais recente foi a prisão política do ex-presidente Lula: a relação entre democracia e comunicação.
Foi sob esta perspectiva que a filósofa Marilena Chauí e o cientista político Juarez Guimarães traçaram um panorama sobre o país no debate que abriu o último dia da “Conferência Lula Livre: Vencer a Batalha da Comunicação” realizada em São Paulo em 13 e 14 de abril. Foram disponibilizadas as íntegras das duas apresentações tanto por sua contribuição intelectual, histórica e política.
Abaixo, está disponibilizada a íntegra da apresentação Juarez:
A libertação de Mandela da prisão só foi possível quando os movimentos de protesto em seu país e a campanha internacional atingiram um patamar incontornável, irresistível mesmo à mais dura repressão.
Assim, devemos ter a consciência de que a libertação de Lula só será possível se a campanha internacional e nacional pela sua libertação atingir um patamar incontornável, irresistível até mesmo à mais dura repressão.
Só assim será possível obter uma vitória judicial em um aparato sistêmico que funciona como um estado policial e de exceção para as esquerdas. Se é legítimo ter esperança que a justiça lá prevaleça, esta esperança será apenas uma ilusão se não construir as razões políticas de sua conquista nas ruas aqui e agora.
A questão, então, para nós é: como construir a consciência e as vozes dessa campanha massiva – friso – “ Incontornável, irresistível até mesmo à mais dura repressão?” Será ela possível a partir da força política que acumulamos no presente estágio da resistência popular ao golpe?
Penso que sim, como analista da conjuntura brasileira, inserido na inteligência coletiva da esquerda, há 38 anos, como primeiro cientista político brasileiro que estabeleceu já em dezembro de 2014 um campo de previsão sobre a possibilidade do golpe, como estudioso da comunicação em diálogo com a impressionante inteligência pública já construída nesta área.
Por três razões:
A primeira é que estamos a defender o mais importante líder popular da história brasileira e o mais importante líder hoje da esquerda no plano internacional. Trata-se, em suma, da liderança que hoje após tantos anos de ódio, calúnia e difamação, poderia vencer as eleições presidenciais até mesmo no primeiro turno, como reconhecem até institutos de pesquisa adversários.
A segunda razão é que a condenação e a prisão de Lula ocorreram em um momento de grave crise de legitimação da coalizão golpista, a qual explica inclusive o crescendo da violência judicial, fascista neste 2018, além da tutela militar sem mais disfarce. A crise desta narrativa golpista é evidenciada seja pela altíssima impopularidade de Temer, das principais lideranças nacionais ligadas ao golpe (é a maior crise de toda história do PSDB) e do programa posto em prática pela coalizão golpista.
A razão terceira, mas não menos importante, é que, pela primeira vez na história do PT, formou-se uma consciência auto-crítica, nítida e de esquerda, sobre a imperiosa necessidade de colocar no primeiro plano da nossa práxis a comunicação política a partir de nossa identidade de esquerda, da nossa potência de voz, da nossa inteligência pública e de nossos valores, enfim, da unidade com todas as forças de esquerda. Penso que é esta nova consciência que tornou possível a realização desta conferência nacional, em meio a tantas dificuldades da hora, pois ela contou desde o início com o entusiasmado apoio do presidente Lula e da companheira Gleisi Hoffman.
Lula foi, desde a fundação do PT e cada vez mais, o nosso maior comunicador público. A única liderança nacional da esquerda brasileira que falava para dezenas de milhões e cuja potência de voz podia fazer um contraponto, em um patamar aproximado, com a Rede Globo de Televisão. Por isto, para a coalizão golpista não era suficiente impugnar a sua candidatura à presidente, nem mesmo é suficiente prendê-lo, mas é necessário calar a sua voz.
No ato histórico de resistência à prisão em são Bernardo, ele nos passou o seu direito de voz público. Trata-se de construi-la como um direito público de liberdade de expressão da esquerda brasileira, de fazer o caminho de um que falava uma voz multitudinária, por e com tantos e tantas, para estes tantos e tantas que, em seu pluralismo de voz, falam agora por um.
Esta pedagogia de falar para dezenas de milhões, nós ainda não a temos mas possuímos em potência, aqui e agora. Como entendê-la e como realizá-la?
As esquerdas e o momento gramsciano
A esquerda brasileira venceu quatro vezes o neoliberalismo seja pela sua legitimidade em construir amplos processos de inclusão social e expansão de direitos, seja pelo tempo de televisão eleitoral que lhe permitia em tempos de campanha nacionalizar sua rede, seja pela amplitude das coalizões que organizou. O tempo de televisão, em geral terceirizado para agências, desmotivou a formação de uma rede própria de comunicação com potência nacional. A coalizão com partidos de centro e até de direita levou a uma certa perda de identidade e, principalmente, da capacidade de disputar valores.
Em síntese, conquistas de maiorias eleitorais se divorciaram de um processo de construção de hegemonia política. Ou seja, vitórias eleitorais que soldassem a construção de uma potência de voz própria com identidade e construção de valores socialistas democráticos.
Agora, o desafio é exatamente este: construir uma potência de voz política que, a partir da identidade e de valores da esquerda, construa uma maioria eleitoral. Não se trata de reproduzir uma falsa polêmica entre uma aliança de esquerda versus uma aliança de centro-esquerda mas apostar em uma dinâmica que, a partir da identidade valores e da potência unitária das esquerdas, polarize, atraia, pactue com todas as forças políticas, sociais, culturais e religiosas em contradição com a coalizão golpista.
Este é, sem dúvida, por excelência, um desafio gramsciano. É preciso voltar e atualizar Gramsci para além da rica cultura do euro-comunismo, a qual, no entanto, tinha, ao mesmo tempo, uma crítica insuficiente da URSS e uma crítica insuficiente da democracia liberal. É este Gramsci, fruto de uma terceira geração de estudos críticos e atualizadores, que é preciso trazer para a nossa cultura em sua potência de formar maiorias pela expansão democrática e republicana da identidade socialista e não pela sua contenção ou neutralização.
Em primeiro lugar, esta identidade do socialismo democrático é fundamental para estabelecer a disputa com as classes dominantes no planos dos valores de civilização que se expressam na atual disputa dos fundamentos do Estado brasileiro. Pois a contra-revolução golpista está agindo para refundar o Estado brasileiro como um Estado neoliberal, destruindo o pacto constitucional de 1988.
Polemizando com Benedetto Croce, que buscava afirmar o liberalismo como religião da liberdade, Gramsci afirmou, então, que o marxismo seria a heresia da religião da liberdade. Com Gramsci, podemos afirmar que o neoliberalismo é o fundamentalismo da religião da liberdade e que, mais do que nunca, contra ele, é preciso afirmar o socialismo democrático como a heresia do fundamentalismo da liberdade nestes inícios do século XXI.
E isto se faz, sem tergiversações, pela defesa do princípio da soberania popular e dos direitos humanos universais – não corporativos – dos cidadãos e das cidadãs trabalhadores, mulheres, negros,pobres, índios, quilombolas, gays. A linguagem política (e não do direito natural) dos direitos humanos, democrática e anti-capitalista é e deve, ser mais do que nunca, da esquerda.
O conceito de hegemonia de Gramsci se estrutura exatamente pela democratização radical da própria definição de intelectual e por sua conformação em rede nas organizações populares. Visando um novo humanismo, mas massivo como havia sido a Reforma protestante, fugindo de uma interpretação iluminista e elitista da vanguarda, Gramsci propunha a organização pela base de uma vontade política e cultural organizada. Faz-nos, lembrar, aqui o saudoso Marco Aurélio Garcia, sempre preocupado com a “sociedade civil organizada do petismo.”
Chegamos aqui, então, à relação entre comunicação e hegemonia política. Um Estado auto-regulado para Gramsci, seguindo dupla face do poder como propõe Maquiavel, seria aquele que maximizasse o momento do consenso e subordinasse a ele o momento da coerção. A noção de formação de uma opinião pública democrática, que construa efetivamente a liberdade de expressão pública das maiorias oprimidas e exploradas, está no coração do conceito de hegemonia.
Ora, hoje sabemos que o PT e as esquerdas brasileiras não formaram este programa de construção das bases de uma opinião pública como fundamento da democratização do poder.
Trata-se de dar voz pública – direito de falar e ser ouvido – aos que sempre foram silenciados na história brasileira, como nos ensina o mestre Venício Lima, recém titulado professor emérito da UNB. Ninguém pode falar em nome dos que buscam a liberdade pois ela mesma, a liberdade depende do direito público de falar com autonomia de voz. Um cidadão ou cidadã silenciado não constitui-se em liberdade. Nem é mesmo um cidadão ou cidadã.
Assim, está no centro da disputa com o neoliberalismo o próprio conceito de liberdade de expressão. O estudo do que se passou nos EUA nas últimas décadas mostra um deslocamento fatal do conceito liberal de liberdade de expressão, que conjugava a cultura da responsabilidade social da mídia e a aceitação de certo padrão de regulação democrática com o chamado “mercado de idéias.”
A mídia se concentrou e convergiu, o pluralismo foi fortemente afetado, o direito de resposta dos cidadãos perdeu espaço e, principalmente, o discurso do ódio ( o chamado hate speech) passou por uma alteração em sua jurisprudência na Suprema Corte , tornando-se praticamente legalizado. O discurso das grandes empresas de comunicação no Brasil é exatamente este discurso neoliberal, que confunde liberdade de expressão com o poder imperial e não regulado democraticamente dos oligopólios de mídia.
O próprio STF brasileiro passou a adotar esta nova jurisprudência em relação ao discurso do ódio.
Este debate é fundamental para a democracia porque é através do discurso do ódio que o neoliberalismo constitui um campo de convergência público com as culturas proto-fascistas ou abertamente fascistas. É necessário diagnosticar este fenômeno brasileiro e internacional das relações entre neoliberalismo e fascismo.
Desde as suas origens (no final dos anos trinta do século XX), a tradição política neoliberal marcou seu antagonismo ao princípio da soberania popular e aos direitos humanos. Ao contrário do liberalismo social ou keynesiano, que propôs no pós-guerra um pacto histórico com as esquerdas, que foi dominante até o final dos anos setenta, a tradição neoliberal defendeu a execração das esquerdas e social-democratas e a sua neutralização. Como já se disse, para o neoliberalismo “a Guerra Fria” não acabou.
Por sua vez, o que estamos chamando aqui de forças proto-fascistas ou fascistas são aquelas que, sem mediações de ordem institucional, visam o extermínio político e físico das esquerdas. Historicamente, o fascismo ocorreu como projetos nacionalistas, marcados pela concentração e centralização do poder. Chefes carismáticos, mobilização e organização de setores médios, discursos do ódio e ações violentas. Não se trata, é evidente, de operar com analogias históricas, essencializando o fenômeno do fascismo, mas identificar que lideranças e dinâmicas fascistas estão se articulando e ganhando protagonismo na cena da crise das democracias contemporâneas.
Em relação às esquerdas neoliberalismo e fascismo coincidem em não aceitar a disputa democrática com elas a partir de um princípio da soberania popular. Mas enquanto o neoliberalismo pretende a neutralização da esquerda asfixiando a democracia, os fascistas trabalham pela sua eliminação política e até física.
Assim, as relações de afinidade política, social e cultural entre neoliberalismo e fascismo podem ser sintetizados.
Na política, a zona cinzenta entre a neutralização das esquerdas via asfixiamento da democracia e os ataques violentos dos fascistas. Na dimensão social, o território comum entre as políticas extremas de exclusão e apartação social e as novas culturas anti-imigrantes, racialistas, patriarcais, nacionalistas xenófobas ou fundamentalistas religiosas. E, no plano cultural, a celebração midiática das culturas do ódio através da sua legitimação através da interpretação neoliberal da liberdade de expressão.
Mas é preciso atualizar o conceito de hegemonia que, no Brasil só pode ser também negro e feminista, para um tempo em que vivemos cada vez mais em sociedades midiatizadas, isto é, nas quais a sociabilidade, até nas intimidades, é mediada pela mídia. Sabemos que Gramsci fundamentou-se no partido, na fábrica e na escola pública, na aliança entre o operariado do norte e o campesinato do sul, para a construção de uma resposta nacional-popular à crise italiana.
É preciso hoje tratar com mais centralidade para a construção da hegemonia a construção da política comunicativa na disputa do poder. Não separar comunicação da política, atribuindo à política uma dimensão exclusivamente linguajeira, como fazem algumas teorias da esfera pública e do reconhecimento, mas também não isolar mais a disputa de poder da potência comunicativa.
Assim, é preciso falar hoje do poder comunicativo, que combina potência de voz, sua potência orgânica e sua potência persuasiva. Chamamos de potência de voz à amplitude de alcance e força de uma linguagem política. De potência orgânica à sua capacidade de expressar sujeitos coletivos em processo de emancipação. Enfim, de potência persuasiva a capacidade de neutralizar a linguagem política adversária e de convencer massivamente.
Este encontro nacional de comunicação popular tem estes três desafios combinados, de aumentar qualitativamente a nossa potência de voz ( através de convergências em TV, rádios, mídia virtual e impressa), estruturar a potência orgânica desta voz pública (vinculando-as às forças da esquerda e aos movimentos sociais) e qualificar a inteligência política de sua potência persuasiva.
Em síntese, construir o poder comunicativo da luta hegemônica . Mas ele só pode se construir agora na luta política pública pela liberdade de Lula.
Lula Livre
Estamos diante da mais dura (porque construída em meio à violência crescente), mais importante (porque de conseqüências emancipatórias maiores até do que a campanha pelas reformas de base ou pelas diretas já) e mais bela (porque de raiz mais popular e de alcance mais internacional) do que todas as campanhas políticas da história do Brasil.
Com as suas forças políticas em processo de rearticulação e resistência, as esquerdas brasileiras já conseguiram quando do impeachment deslegitimar o golpe, em 2017, construir e consolidar a impopularidade do programa e das lideranças golpistas.
A campanha pela liberdade de Lula já se inicia com uma grande deslegitimação do sistema judiciário que o condenou: segundo a pesquisa IPSOS de março de 2018, 51 % rejeitam Moro e apenas 39 % aprovam sua atuação), a rejeição a Carmen Lúcia já havia ascendido a 49 %; segundo a última rodada da Vox Populi, 56 % afirmavam que a condenação de Lula era mais política que judicial e 54 % defendiam o direito dele ser candidato à presidência.
A resistência em São Bernardo, o discurso de Lula e, agora, o acampamento da liberdade em Curitiba construíram os símbolos unitários desta campanha. A cobertura da mídia internacional, já sensibilizada pela denúncia do brutal assassinato de Marielle Franco, pela militarização e pelos ataques fascistas à caravana de Lula ao sul do país, foi amplamente favorável ao ponto de vista das esquerdas.
Pode-se sintetizar, então, a disputa política comunicativa desta campanha em quatro dimensões centrais.
A primeira é a consolidação das razões judiciais e democráticas da injustiça histórica cometida contra Lula. A primeira fase desta campanha, até o julgamento do TRF-4, conquistou o direito público de acusar o acusador, como no famoso caso Dreyfuss.
A segunda fase, exponenciais no discurso do doutor Batocchio e na desmoralização da decisão do STF, construiu a razão democrática: o direito cidadão à presunção da inocência, ao devido processo legal e ao direito sagrado ao habeas-corpus. Agora, é preciso sintetizar em mensagem pública clara estas duas dimensões, consolidando uma larga maioria em favor da libertação de Lula.
A segunda dimensão central é a reafirmação democrática e unitária do direito de Lula ser candidato á presidência da República. Eles querem, agora, normalizar o cenário político, isto é, redefinir a cena eleitoral sem Lula e com as candidaturas da esquerda e centro-esquerda divididas. Trata-se exatamente de fazer o contrário disto: a defesa do direito democrático de Lula ser candidato à presidente já unifica as esquerdas e tensiona a posição ambígua de Ciro Gomes e constitui, junto com a defesa da investigação e punição dos assassinos de Marielle Franco, a unidade da frente democrática contra o fascismo.
A terceira dimensão central desta campanha é a da colagem da figura de Lula à defesa dos direitos cidadãos do povo brasileiro. Lula, como disse bem o ex-presidente do PC do B, é um programa político. Agora pacificado com o que há de historicamente progressivo da herança de Vargas, ele representa a história da conquista destes direitos nas últimas cinco décadas.
Este é o sentido maior da voz plural, multitudinária, negra e nordestina, feminista e popular, centralmente classista dos trabalhadores e descolonizadora. O juízo do grande historiador da cultura Peter Burcke, professor emérito de Cambridge: Lula, para consciência internacional contemporânea, assim como Mandela foi contra o apartheid racial, é o símbolo maior da luta contra o apartheid social da civilização neoliberal.
Mas a quarta e a mais decisiva dimensão da campanha Lula livre é a participativa, dialogal, mobilizadora: somos todas e todos Lula. Não deve ser banalizado este desafio: é preciso dar voz a milhões. A esperança da candidatura de Lula – as caravanas o demonstraram – não é um fenômeno apenas eleitoral. Mas devemos reconhecer que entre a votação potencial de Lula e o alcance das mobilizações de rua em sua defesa tem, até agora, havido uma enorme defasagem.
Este é o grande momento da cidadania ativa e da voz ativa. É o momento mais alto da indignação e também da festa, da fé, da arte e da irreverência do povo brasileiro contra os donos do poder e da voz. É o momento do Congresso do Povo brasileiro.
Tivemos a felicidade de estar naquela que foi uma das mais belas manifestações de solidariedade à Lula, que se realizou em Lisboa, chamada pelo Instituto Saramago e pelo CES dirigido pelo professor Boaventura dos Santos, de Coimbra. Ao final, centenas cantaram juntos a canção da Revolução dos Cravos. Fica, pois, o desafio: seremos capazes de ser algo em torno de um milhão de Lulas – somadas todas as manifestações em todos os cantos e recantos do país no Brasil e no mundo – neste Primeiro de Maio, o mais importante da história das classes trabalhadoras brasileiras?
Juarez Guimarães é cientista político, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)