O modus operandi bolsonarista de “passar a boiada” com medidas infralegais para driblar o ordenamento legal e legislar em causa própria sem anuência do Congresso sofreu uma derrota. O juiz Alberto de Almeida Canuto, da 25ª Vara Cível Federal de São Paulo, determinou a suspensão da portaria que ampliou o limite da quantidade de munição a ser comprada por civis com direito a posse de armas. Cabe recurso.
O governo federal havia aumentado para 550 unidades o limite de compra de munições por pessoas físicas autorizadas a adquirir ou portar arma de fogo, por meio da Portaria Interministerial n° 1.634/2020, dos ministérios da Defesa e da Justiça e Segurança Pública, publicada em 23 de abril no Diário Oficial da União.
A decisão liminar da 25ª Vara Cível Federal de São Paulo atende a um pedido feito pelo deputado federal Ivan Valente (PSOL). Em manifestação enviada à Justiça, a Advocacia-Geral da União (AGU) tinha pedido o indeferimento do pedido. No entanto, o entendimento do Judiciário foi de que a portaria tem vícios que a tornam nula.
“Em suma, a edição da Portaria Interministerial 1.634/GM-MD, padece de vício que a nulifica, tornando inválido o processo de sua formação, tanto por falta de competência do emissor do ‘parecer’ produzido para subsidiar a edição da Portaria Interministerial quanto por ausência de motivação”, diz a decisão.
Os fundamentos para a suspensão da portaria apontam que o ato normativo foi produzido de forma irregular, “quer porque se baseou em parecer exarado por servidor público que, à época da prática do ato já não mais exercia a chefia ou qualquer outro cargo do órgão competente e nem mesmo era servidor em atividade (havia sido transferido para a reserva), quer porque o ato (parecer) carece de qualquer motivação”.
Segundo a decisão da Justiça, o órgão técnico de controle e fiscalização de armas e munições do Comando do Exército – a Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados do Comando do Exército – teria que, necessariamente, ser ouvido para subsidiar a edição da norma sobre as munições, mas isso não ocorreu.
Para contextualizar as circunstâncias da edição da nova portaria, a decisão judicial cita o vídeo da fatídica reunião ministerial de 22 de abril, em que a prática de “passar a boiada” via publicação de medidas infralegais foi confessada pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Na ocasião, Bolsonaro defendeu a necessidade de que “o povo se arme” para evitar a imposição de uma ditadura no país.
Ainda segundo o documento, dirigindo-se ao ministro da Defesa, Fernando Azevedo, e ao então ministro da Justiça e Segurança Pública Sergio Moro, o presidente requisitava a assinatura de uma portaria sobre o assunto. No mesmo dia (22), foi editada a norma aumentando o limite de compra de munição, publicada no dia seguinte.
Segundo a decisão, o aumento na compra de munição aumenta os riscos de mortes causadas pelas armas. “Tendo ela [portaria] aumentado significativamente a quantidade de munições passíveis de aquisição, tem-se, por decorrência, o aumento da letalidade no meio social, o que vai de encontro com o Estatuto do Desarmamento”, diz o documento.
Em uma primeira portaria publicada em janeiro, o governo havia determinado um limite de 200 unidades por arma de fogo para pessoas físicas e 600 unidades por arma para integrantes de órgãos de segurança e instituições previstas no Estatuto do Desarmamento, sem especificações. Com a medida agora suspensa provisoriamente, civis poderiam adquirir até 550 unidades de munição para diferentes tipos de armas.
General exonerado
O vício apontado pelo deputado e corroborado pela Justiça é o fato de que a portaria questionada se baseou em parecer produzido com a assinatura de um servidor que já havia sido exonerado. O general Eugênio Pacelli Vieira Mota havia sido transferido para a reserva remunerada em 31 de março –22 dias antes da publicação do ato.
O general deixou o cargo de diretor de fiscalização de produtos controlados uma semana depois de os atos terem sido publicados pelo Exército. Durante o período em que esteve na vaga, ele chefiou o grupo que elaborou os textos. As portarias 46, 60 e 61 foram elaboradas em conjunto por militares, policiais federais e técnicos do Ministério da Justiça.
A primeira portaria, publicada em 20 de março, criava o SisNaR (Sistema Nacional de Rastreamento de Produtos Controlados pelo Exército), que teria como finalidade rastrear os chamados PCE (Produtos Controlados pelo Exército), que incluem armas de fogo e explosivos. As outras duas, publicadas um dia antes de serem canceladas, ampliavam pontos da primeira.
O cancelamento das portarias e a saída do general ocorreram sob forte pressão de lobistas de empresas de armas e munições. Por dois meses Pacelli sofreu pressão nas redes sociais também de grupos armamentistas. Clubes de colecionadores, atiradores e caçadores (CACs), além de páginas no Facebook que vendem armas, vinham ironizando a atuação do general por causa das portarias. Esses grupos, segundo procuradores, cobram para que o presidente interfira em funções que, por lei, são atribuídas ao Exército.
Em carta aos subordinados e superiores na despedida, Pacelli ressaltou “conquistas” relacionadas à modernização no controle de armamentos durante sua gestão e citou as portarias. “Foram quatro importantes decretos presidenciais a serem normatizados”, afirmou o general.
O documento foi visto como uma demonstração de que as normas feriam os interesses dos eleitores do presidente. “Desculpe-me se por vezes não os atendi em interesses pontuais… Não podia e não podemos: nosso maior compromisso será sempre com a tranquilidade da segurança social e capacidade de mobilização da indústria nacional”, escreveu o general em referência a empresários do setor.
Pacelli não fez qualquer agradecimento ao ex-chefe, o general Laerte de Souza Santos, que assinou a revogação das portarias por determinação de Bolsonaro. Laerte é chefe do Comando Logístico do Exército, ao qual o setor de Pacelli estava subordinado.
O general entregou o cargo numa “cerimônia de passagem de posse” em 16 de abril. No dia seguinte, Bolsonaro foi ao Twitter para informar que tinha determinado o cancelamento das portarias. “Determinei a revogação das portarias (…) por não se adequarem às minhas diretrizes definidas em decretos”, escreveu. A ordem do presidente foi aceita pelo Comando Logístico do Exército (Colog) no dia 18 de abril.
Mas o Centro de Comunicação Social do Exército argumentou que a exoneração do oficial não ocorreu por pressão política ou interferência da Presidência. A assessoria destacou que a mudança no cargo é uma “atividade de rotina”, feita regularmente para promoção de generais.
Pressão do MPF
O Ministério Público Federal abriu duas investigações para apurar indícios de interferência do presidente em atos exclusivos do Exército por ter revogado as três portarias sem qualquer justificativa plausível. Uma das denúncias foi elaborada pela procuradora regional da República Raquel Branquinho. A outra, pelos procuradores Deborah Duprat e Marlon Alberto Weichert, dos Direitos do Cidadão, e Domingos Sávio Dresch da Silveira, da 7.ª CCR.
Raquel Branquinho pediu ao chefe da Procuradoria da República do Distrito Federal, Claudio Drewes José de Siqueira, que abra uma investigação para apurar o caso. Em documento assinado em 20 de abril, ela alega que a revogação das portarias fere a Constituição, além de abrir espaço para incentivar o contrabando e abastecer milícias.
A depender dos resultados da investigação, o presidente pode ter que responder a uma ação de improbidade na Justiça Federal ou, ainda, ser alvo de um inquérito no Supremo Tribunal Federal (STF). “Estão sendo levantadas informações para subsidiar o MPF na continuidade ou não das investigações”, explica o MPF, em nota. O presidente também foi acusado de interferir na atuação da Polícia Federal.
Em maio, o MPF acionou a Justiça para que o Exército retomasse a validade das portarias revogadas. Na ação, enviada à 22ª Vara de Justiça Federal do Distrito Federal, os procuradores pedem a declaração de ilegalidade das revogações.
De acordo com o MPF, as portarias “atendem a exigências legais, bem como a compromissos internacionais assumidos pelo Brasil”, e o controle estabelecido por elas “é imprescindível para a concretização de modelo efetivo de Segurança Pública”.
“Ao estabelecer normas de rastreabilidade de munições, como aquelas previstas nos textos em questão, o Estado adota conduta que pode inibir o tráfico de armas, balas e outros artefatos, contribuindo assim para a investigação de crimes que os envolvam”, afirma o MPF, em nota.
“Infelizmente, com a realidade criminosa do nosso País, vivenciamos inúmeros casos de furtos e desvios de armamentos e munições. E essas armas acabam sendo disponibilizadas para facções e organizações criminosas que se utilizam do armamento sem que as autoridades públicas possam localizar esse material, tendo em vista a inadequação dos métodos de rastreabilidade e controle”, destaca a ação do MPF. Entre 2010 e 2016, os CACs registraram no Exército o roubo ou furto de 5.808 armas.
Ao solicitar a investigação, a procuradora regional da República relatou a possibilidade de Bolsonaro ter agido para beneficiar uma parcela de seus eleitores, que defendem o setor das armas. Segundo Branquinho, não há espaço na Constituição “para ideias e atitudes voluntaristas” do presidente, ainda que pautadas por “bons propósitos”.
A ação civil que pede a retomada das portarias, no entanto, não tem como finalidade apontar eventual interferência no Exército por parte do Bolsonaro. “O objetivo da peça foi apenas apontar as irregularidades nas revogações e os graves prejuízos gerados por essas medidas”, afirma o MPF.
“A Procuradoria da República no Distrito Federal não possui atribuição para investigar e processar atos do presidente da República – nem por conduta criminal, nem por ação ímproba. Nesses casos, cabe ao Senado Federal apurar crimes de responsabilidade e ao Supremo Tribunal Federal, crimes comuns”, diz o órgão.
Em resposta ao MPF, o Comando Logístico do Exército (Colog) admitiu que revogou três normas de controle de armas e munições para atender a questionamentos e questões levantadas pela “administração pública e as mídias sociais”.
Em ofício à Procuradoria no último dia 28, o general Laerte de Souza Santos, chefe do Colog, tentou justificar as medidas. “Tão logo publicadas oficialmente as referidas portarias, surgiram inúmeros questionamentos e contrapontos levantados por diversos setores da sociedade, especialmente nas mídias sociais, e da administração pública em razão da tecnicidade do tema.
Nesse viés, foram verificadas algumas oportunidades de melhoria em pontos de difícil compreensão, pelo público alcançado pelas normas em comento, visando atingir total transparência na motivação das medidas de fiscalização editadas”, escreveu o comandante logístico do Exército Laerte de Souza.