Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.
A Flor e a Náusea
Carlos Drummond de Andrade
A grave crise política e ideológica que vive o PT requer um balanço profundo das mutações políticas e estratégicas que marcaram a trajetória do partido e que redundou na derrota política e ideológica sem precedentes que se abateu sobre esta rica experiência de construção de um partido de esquerda de massas num país periférico e desigual e que teve impacto tão relevante na América Latina e no mundo. Este balanço é sumamente necessário para reorientar e rearmar politicamente o partido, que é uma experiência histórica singular dos trabalhadores e dos pobres em geral na suas lutas em busca da libertação contra a exploração, dominação e alienação.
Entre a sua fundação formal em 1980 e a campanha de 1989, o centro de acumulação estratégica do PT era o movimento de massas em ascenso no campo e na cidade que se cristalizou na chamada estratégia democrático-popular e a formação do campo democrático-popular. A estratégia do campo democrático-popular era uma estratégia de confronto com a estrutura política, social e econômica do país, portanto propunha no mínimo uma profunda reforma na organização do Estado, na apropriação da riqueza e da renda e no questionamento, senão da propriedade em si, pelo menos de sua função social, especialmente na questão da terra.
O confronto de classes nos anos 1980 se dava pela ação direta de massas, nas greves, ocupações rurais e urbanas, lutas por melhorias urbanas e de condições de vida (asfalto, esgoto, transporte público, escolas, postos de saúde etc.), sendo as eleições submetidas à estratégia geral de confronto de classe e como elemento de agitação e propaganda do projeto. Se podemos apontar o ápice desta estratégia, ele certamente ocorreu no processo eleitoral de 1989. Dois aspectos confluíram para tornar as eleições de 1989 um marco: o primeiro foi que ele representou a sublimação do vasto movimento de massas que eclodiu e se espraiou no final da década de 1970 até lá, e o segundo foi o fato inédito no país de um partido de esquerda, de massas com um programa de confronto de classe disputar palmo a palmo uma parcela do poder de Estado tão proeminente no Brasil como o são a Presidência da República e o Governo Federal.
A derrota de 1989, a queda da União Soviética e do Leste Europeu, a mundialização do capital e seus efeitos devastadores sobre o mundo do trabalho e a cristalização da hegemonia neoliberal abriu um novo ciclo nos anos 1990, caracterizado por derrotas e recuo estratégico dos trabalhadores e de suas organizações e partidos.
Neste cenário ocorreu uma pulverização das lutas e um enfraquecimento da ação direta de massas ao passo que as eleições se tornam o centro de acumulação do partido. Este novo quadro estrutural e conjuntural oriundo das transformações do capitalismo e por conseguinte da própria sociedade, tiveram efeitos dramáticos sobre o PT, que nos 10 anos seguintes viveu um lento e conflituoso processo de construção de uma estratégia fundamentalmente diferente daquela que culminou com a eleição de 1989. Esta estratégia, a partir de uma percepção/concepção de impossibilidade de derrotar o capitalismo, propõe mudanças negociadas dentro dos marcos do capitalismo no âmbito econômico e nos marcos do chamado “Estado democrático de Direito” nos âmbitos político, social, institucional e ideológico.
Esta estratégia pressupõe quatro questões básicas:
1- Uma política de acomodação e negociação ao invés de confronto e a formação de um campo político eleitoral com representantes de parcelas do capital (a parcela dos capitalistas a quem interessa um grande mercado interno de massas, o chamado capital produtivo, por falta de termo mais apropriado), ou o chamado “centro” ou a “centro-direita” ou outra denominação que se queira dar.
2- A acomodação ou pelo menos o não confronto com as formas tradicionais do fazer político.
3- A transformação do PT de um partido de confronto para um partido parlamentar e de concertação de classe.
4- A incorporação da concepção da democracia como valor universal e da neutralidade do Estado que se desdobrou na prática na ilusão de classe do republicanismo.
Os pontos 1 e 2 determinaram os limites políticos e práticos dos nossos governos. A regra de ouro não escrita em nossos governos em todos os níveis, em especial do governo federal, era melhorar a vida dos pobres sem mexer com os interesses dos ricos, o que determinou o impedimento objetivo de fazer reformas estruturantes (fiscal e tributária, agrária, urbana, política e eleitoral e da mídia). Os pontos 3 e 4 têm implicações profundas sobre a crise partidária atual. A transformação estrutural do PT de um tipo de partido (de confronto de classe) em outro tipo de partido (parlamentar e de concertação de classe) não pode ser tomado de forma estanque, sob o risco de fazermos uma leitura mecânica de uma realidade complexa, pois nos anos 1980 o PT também tinha características de partido parlamentar e de concertação de classe e hoje ainda tem características de partido de confronto de classe, no entanto enquanto nos anos 1980 havia uma clara hegemonia da política de confrontação de classe, nos últimos 20 anos o PT implementou hegemonicamente uma política parlamentar e de concertação de classe.
As mudanças na estrutura partidária a partir dos anos 1990 tensionaram no sentido de tornar o PT no que ele se tornou nos anos 2000 em diante, um grande partido de massa eleitoral com uma agenda progressista para a realidade brasileira. A substituição dos núcleos pelas zonais e diretórios, a formação de uma burocracia partidária poderosa e com fortes laços com os mandatos parlamentares e governos que se tornaram os centros dinâmicos do partido, constituição das correntes políticas como grandes guarda-chuvas eleitorais, a entrada no sombrio campo da disputa pelo financiamento eleitoral tradicional (lembrar que no X Encontro Nacional do PT, em 1995, a maior polêmica se deu quando César Benjamin, então da Direção Nacional do partido, questionou o financiamento por parte dos banqueiros e empreiteiras da campanha de Lula em 1994 e da campanha de Zé Dirceu para governador de São Paulo neste mesmo ano), e a mudança na forma de escolha das direções partidárias que passou de encontros presenciais para o PED, todas estas mudanças político-organizacionais consolidaram o caráter de partido de massa eleitoral e enfraqueceram o caráter militante e de confrontação social do PT.
Estas mudanças foram resultado da hegemonia da concepção de concertação de classe, ou seja, esta política era respaldada e defendida pela maioria dos militantes, dos filiados, dos quadros médios, dos parlamentares e governos, das direções e da base social e eleitoral do PT. É importante ressaltar esse ponto para não cairmos nem na fulanização, de que a responsabilidade/culpa é de fulano ou sicrano, pois foi um processo de construção de hegemonia, e portanto coletivo, nem mascarar as responsabilidades coletivas e individuais dos grupos e pessoas que capitanearam e implementaram esta estratégia. O fato é que a partir de meados dos anos 1990 o PT consolidou a estratégia e fez as inflexões na política e na estrutura e funcionamento partidário que preparam o terreno para as vitórias eleitorais e a conquista da Presidência da República e do Governo Federal, com todas as suas consequências boas e más.
O foco deste balanço é tentar dar à militância uma orientação mínima que permita ao menos entender o que está acontecendo para além da explicação real, porém altamente insuficiente, da perseguição ao PT, bem como compreender a falência da direção, a confusão estratégica, o imobilismo e os sinais de desespero na base, nas direções, bancadas e governos do PT.
A crise global do capitalismo que teve seu epicentro em 2009 na crise do subprime, que levou à derrocada do Lehman Brothers e ao quase colapso do sistema financeiro mundial, e a metástase da crise são o elemento central da conjuntura mundial. Esta metástase de uma crise profunda e sem saída à vista se espraia por todos os poros do tecido social e todos os aspectos da vida humana. No Brasil, para além de toda a tragédia econômica, social e humana, a crise destruiu as bases da estratégia hegemônica no PT de concertação social expressada na politica de alianças com a direita e centro-direita para fazer mudanças incrementais negociadas e não conflitivas na medida do possível.
Em todas as crises do capital a parcela mais fraca dos capitalistas é tragada ou destruída no processo de concentração/centralização inerente às crises do capital. Todo o peso da crise é jogado nas costas dos trabalhadores e dos pobres via desemprego, queda dos salários, perda de direitos e apropriação agressiva de parcelas cada vez maiores do dinheiro público para os interesses do rentismo , da especulação e dos oligopólios em detrimento das políticas públicas e compensatórias. No quadro de uma crise global do capitalismo, não existem condições econômicas nem políticas de uma estratégia de concertação de classe, pois os capitalistas exigem o couro e o sangue dos trabalhadores e dos pobres para sobreviver e acumular. Assim, estava claro a partir de 2009 que a estratégia hegemônica até então adotada não tinha futuro, e o imobilismo e incapacidade da direção política do PT e do governo, ao não reorientar a estratégia e portanto manter a mesma política e os mesmos métodos, desarmou o partido e os seus apoiadores, enfraqueceu e retardou a resistência frente ao golpe que se avizinhava e nada mais era que o capital engolfando o poder político para implementar as suas políticas de jogar todo o custo da crise sobre os trabalhadores e os pobres sem mediações ou vacilações.
A estratégia que hegemonizou o PT por 20 anos e que em grande medida pavimentou as vitórias eleitorais e políticas em duas décadas, foi também responsável por esta profunda derrota política que foi o golpe e que pelo imobilismo e falência da direção se transmutou em desastre na eleição municipal. A necessidade de reorientação estratégica e construção de uma nova direção política é fundamental para o PT, para os trabalhadores e pobres e para a esquerda. A desconstituição do PT como instrumento de classe dado os erros, vacilações e derrotas graves que sofreu no período é a visão predominante de uma parte da esquerda, dos intelectuais e mesmo parte dos petistas, mas nenhum destes setores consegue apontar qualquer alternativa que seja longinquamente relevante para tomar o lugar do PT como instrumento de classe. Esta é a questão central , pois define o que é correto fazer sem pagar tributo à atmosfera envenenada do controle burocrático e cada vez mais parasitário da máquina partidária e ao desespero das bancadas e governos ensandecidos pela busca da sobrevivência eleitoral.
O PT se esgotou como instrumento de classe? Existe uma alternativa, mesmo embrionária que cumpra as tarefas necessárias a este período da luta de classes? A resposta dada pela realidade é NÃO, portanto temos que disputar o PT, derrotar a burocracia e construir outra estratégia e outra direção que dê conta das enormes tarefas que temos no próximo período.
O PT não se esgotou como instrumento de classe, mas isso não torna a vida menos dura, nem a situação menos grave, pois a conjuntura política aponta para transformar o atual desastre em tragédia, quer por fatores externos (cassação do registro do PT, prisão de Lula e, por absoluta falta de direção e orientação política, dispersão dos militantes e quadros partidários entre uma miríade de siglas), quer por fatores internos (rachas internos por conta do desespero eleitoral ou por não conseguir estabelecer uma nova estratégia e direção pela oposição da burocracia partidária). Os fatores externos (cassação do registro do PT, prisão de Lula) em grande medida serão determinados pelo grau de resistência popular, o preço que o capital esta disposto a pagar e o risco que esta disposto a correr para nos destruir.
É um jogo que está sendo jogado. Os fatores internos estão cada vez mais na ordem do dia e sob certos aspectos cada vez mais caminham para um desfecho traumático. Existe uma possibilidade real de racha e desagregação do PT e o cenário que se apresenta de forma mais nítida (podem existir outros) é a inviabilização do PT pela burocracia partidária, potencializado pelo desespero eleitoral dos mandatários e candidatos a mandatários.
A burocracia, qualquer que seja ela, ao se consolidar cria mecanismos de auto-reprodução que em grande medida a autonomiza da política e da estratégia que a gerou. A estratégia e a direção que trouxeram o PT até aqui faliu, a aliança com os parlamentares e governos petistas que garantiam uma legitimidade à burocracia partidária se esvaiu e os instrumentos e métodos de direção que se serviram no período da hegemonia da concertação de classe são imprestáveis hoje, pois não se trata mais de impor e controlar, as vezes por meios autoritários para dizer o mínimo, a imposição de uma agenda hegemônica, mas de construir e debater uma nova estratégia. Mesmo nessa condição de profundo isolamento e sem a menor condição de dirigir qualquer coisa, a burocracia do PT, tal qual a orquestra do Titanic, continuará a fazer tudo como sempre e dizer que as coisas têm que mudar desde que permaneçam como estão.
Este quadro é possível, mas profundamente indesejável, pois alija a esquerda da disputa política por um longo período já que nenhum partido credenciou-se a assumir o protagonismo da disputa do poder
A única alternativa factível é disputar o PT, derrotar a burocracia e estabelecer uma nova estratégia e uma nova direção. Todas as alternativas colocadas por mais atraentes e brilhantes que possam parecer não resolve nenhum dos problemas do PT e da esquerda, cria novos e não servem aos interesses da classe.
Por Jutai Moraes de Jesus, economista, funcionário público, ex-sindicalista do Sindicato dos Químicos e Petroquímicos da Bahia e suplente do Diretório Nacional do PT, para a Tribuna de Debates do 6º Congresso. Saiba como participar.