Folha/El País: A gente queria começar falando sobre a prisão do senhor. O que passou por sua cabeça quando estava sendo preso?
Lula: Durante todo o processo, eu sempre tive certeza, (pelos) discursos da Lava-Jato, de que (a operação) tinha um objetivo central, que era chegar em mim. Aliás uma jornalista importante, amiga nossa, escreveu um artigo em que dizia: o que eles querem é o Lula. E isso foi ficando patente em todos os depoimentos.
A imprensa retratava: prenderam fulano. Vai chegar no Lula. Prenderam fulano. Vai chegar no Lula. E muita gente que era presa, a primeira pergunta que faziam (para a pessoa) era: “Você é amigo do Lula? Você conhece o Lula?”.
A imprensa retratava, as pessoas contavam, advogado conversava com advogado. E foi ficando patente que o objetivo era chegar em mim. Tinha companheiros no PT que não gostava quando eu dizia isso. “Eles vão chegar em mim e depois vão caminhar para criminalizar o PT.”
Muita gente achava que eu deveria sair do Brasil, ir para uma embaixada, que eu deveria fugir. E eu tomei como decisão que o meu lugar é aqui (no Brasil).
Eu tenho tanta obsessão de desmascarar o (ex-juiz e ministro Sergio) Moro, de desmascarar o (procurador Deltan) Dallagnol e a sua turma, e desmascarar aqueles que me condenaram, que eu ficarei preso cem anos, mas eu não trocarei a minha dignidade pela minha liberdade.
Eu quero provar a farsa montada. Montada aqui dentro, montada no Departamento de Justiça dos EUA, com depoimento de procuradores, com filme gravado, e agora mais agravado com a criação da “fundação Criança Esperança do Dallagnol”, pegando R$ 2,5 bilhões da Petrobras para criar uma fundação para ele.
Eu tenho uma obsessão. Você sabe que eu não tenho ódio, não guardo mágoa porque, na minha idade, quando a gente fica com ódio a gente morre antes.
Então como eu quero viver até os 120 anos, porque eu acho que sou um ser humano que nasceu para ir até 120 (anos), eu vou trabalhar muito para provar a minha inocência e a farsa que foi montada.
Por isso eu vim para cá com muita tranquilidade. Havia uma briga no sindicato aquele dia (da prisão, em abril de 2018), entre os que queriam que eu viesse e os que queriam que eu não viesse (para a prisão).
E eu tomei a decisão. Eu falei “olha, eu vou”. Eu vou lá. Eu não vou esperar que eles venham até mim. Eu vou até eles porque eu quero ficar preso perto do Moro. O Moro saiu daqui (de Curitiba). Mas eu quero ficar preso. Porque eu tenho que provar a minha inocência.
O senhor — concretamente, é um fato — pode ser que fique aqui para sempre. O senhor mesmo assim acha que tomou a decisão correta?
Tomaria outra vez.
O senhor já pensou que pode ficar aqui para sempre?
Não tem problema. Eu tenho certeza que eu durmo todo dia com a minha consciência tranquila. Eu tenho certeza que o Dallagnol não dorme, que o Moro não dorme. E aqueles juízes do TRF4 (Tribunal Regional Federal da 4ª Região), que nem leram a sentença? Fizeram um acordo lá (entre eles). Era melhor que um só tivesse lido e falado “olha, todo mundo aqui vota igual”.
Então, sinceramente, quem tem 73 anos de idade, quem construiu a vida que eu construí nesse país, quem estabeleceu as relações que eu estabeleci nesse país, quem fez o governo que eu fiz nesse país, quem recuperou a auto estima e o orgulho do povo brasileiro como eu e vocês fizemos no meu período de governo, não vou me entregar.
Então eles sabem que eles têm aqui um pernambucano teimoso. É o que eu digo sempre. Quem nasceu em Pernambuco e não morreu de fome até os cinco anos de idade, não se curva mais a nada.
Você pensa que eu não gostaria de estar em casa? Adoraria estar em casa com a minha mulher, com os meus filhos, os meus netos, os meus companheiros. Mas não faço nenhuma questão. Porque eu quero sair daqui com a cabeça erguida como eu entrei. Inocente. E eu só posso fazer isso se eu tiver coragem e lutar por isso.
Com a decisão da Justiça de que a OAS devolva o dinheiro do apartamento de dona Marisa, o senhor acredita em sua absolvição?
Por incrível que pareça, eu acredito. Eu ainda continuo com a cabeça de Lulinha paz e amor. Eu acredito na construção de um mundo melhor, de um mundo de Justiça.
Eu penso que haverá um dia em que as pessoas que irão me julgar estarão preocupadas com os autos do processo, com as provas, e não com a manchete do Jornal Nacional, com a capa das revistas, com fake news.
As pessoas se comportarão como juízes supremos, de uma corte (o STF) (da qual) não podemos recorrer. E que já tomou decisões muito importantes.
Essa corte, por exemplo, votou (a liberação de pesquisas com) células-tronco contra uma boa parte da Igreja Católica. Já votou a questão (da demarcação da área indígena de) Raposa Serra do Sol contra os poderosos do arroz no estado de Roraima. Essa mesma corte votou a união civil (de homossexuais) contra todo o preconceito evangélico. Essa corte votou as cotas para que os negros pudessem entrar (nas universidades). Ela já demonstrou que teve coragem e se comportou.
Ora, no meu caso, a única coisa que eu quero é que votem com relação aos autos do processo. Eu não peço favor de ninguém, eu não quero favor de ninguém. Eu só quero que as pessoas, pelo amor de Deus, julguem em função das provas.
Porque eu tenho certeza, o Moro tem certeza (de sua inocência). Se as pessoas não confessarem agora, no dia da extrema unção vão confessar. Ele tem certeza que eu sou inocente. Esse Dallagnol tem certeza de que ele é mentiroso. E mentiu a meu respeito. Então eu tô aqui, meu caro, para procurar justiça, para provar inocência. Mas estou muito mais preocupado com o que está acontecendo com o povo brasileiro. Porque eu posso brigar, e o povo nem sempre pode.
O senhor, durante esse um ano, passou por dois momentos de muita tristeza, que foi a morte do seu irmão e depois a morte do seu neto Artur. O que, para o senhor, depois de viver isso, fica da vida?
Esses dois momentos foram os mais graves. Eu poderia incluir a perda de um companheiro como o (ex-deputado) Sigmaringa Seixas, que era meu companheiro de dezenas e dezenas de anos. A morte do meu irmão Vavá… O Vavá era como se fosse um pai da família toda. E a morte do meu neto é uma coisa que efetivamente não, não… (chora).
Eu às vezes penso que seria tão mais fácil que eu tivesse morrido. Eu já vivi 73 anos, poderia morrer e deixar o meu neto viver. Mas não são apenas esses momentos que deixam a gente triste.
Eu tento ser alegre e trabalhar muito a questão do ódio. Eu trabalho muito para vencer a questão do ódio. A questão da mágoa profunda.
Quando eu vejo essa gente que me condenou na televisão, sabendo que são mentirosos, sabendo que forjaram uma história… Aquela história do power point do Dallagnol, nem o bisneto dele vai acreditar naquilo. Nesse messianismo ignorante. Então eu tenho muitos momentos de tristeza aqui. Mas o que me mantém vivo, e é isso o que eles têm que saber, eu tenho compromisso com esse país.
Eu tenho compromisso com esse povo. E eu estou vendo a obsessão que está acontecendo agora. De destruir a soberania nacional. De destruir empregos. De juntar R$ 1 trilhão, para que? Às custas dos aposentados?
Se eles lessem alguma coisa, se eles conversassem, eles saberiam que esse cidadão aqui, analfabeto, com um curso de torneiro mecânico, juntou R$ 370 bilhões e dólares de reservas, que a R$ 4 o dólar dá mais de R$ 1,2 trilhão, sem causar nenhum prejuízo a nenhum brasileiro. Então, se eles querem economizar R$ 1 trilhão, tem uma fórmula secreta: coloque o povo no orçamento da União. Gere emprego. Gere crédito para as pessoas.
Ah, o povo tá devendo? Tire todo o penduricalho da dívida do povo e ele paga apenas o principal no banco e você vai perceber que as pessoas voltam a comprar. Um país que não gera emprego, não gera salário, não gera consumo, não gera renda, quer pegar do aposentado e do velhinho R$ 1 trilhão? O Guedes precisava criar vergonha.
Onde ele fez esse curso de economia dele? Se ele quiser me visitar aqui, eu discuto com ele esse problema dos pobres sem causar prejuízo aos pobres. Por que ele não mostra os privilegiados (de quem) eles falam que vão acabar com os privilégios? Coloca a lista no jornal de dez privilegiados. Coloca o nome, o CPF. Não. É o coitado que vai ter que trabalhar até 65 anos, que vai ter que contribuir 40 anos (para se aposentar). Ele não percebe que muita gente morre sem chegar a essa idade. Lamento profundamente o desastre que está acontecendo nesse país. E é por isso que eu me mantenho em pé.
Como é a rotina na prisão? O senhor passa muito tempo sozinho?
Eu passo o tempo inteiro sozinho. Eu leio, eu vejo pendrive que o pessoal me manda, assisto a filmes, muitos filmes. Muita série, muito discurso, muita aula. Eu por exemplo fiz, na minha cela… Que eu não trato de cela, eu trato de sala porque é melhor. Eu fiz um curso sobre Canudos no canal Paz e Bem (na internet), recuperando a história e mostrando as mentiras que Euclides da Cunha contou sobre Canudos (no livro “Os Sertões”). Ou seja, a história não é aquela. Então eu fiz um curso de oito aulas. Agora eu sugeri a eles que façam um curso, Retratos do Brasil. Sobre todas as lutas sociais no Brasil. E agora acho que toda segunda-feira tem uma aula (no canal). Eu espero juntar umas quatro ou cinco, recebo um pendrive, vou assistindo e vou me aprimorando. Quando sair daqui, sairei doutor.
Mas o senhor lava a sua própria roupa, lava suas coisas? E a prisão mudou o sr. em alguma coisa?
É engraçado, porque eu sempre tive vontade de morar sozinho. Quando eu fiquei viúvo pela primeira vez, em 1971, eu fiquei bravo com a minha mãe (dona Lindu), porque meu sonho era alugar uma quitinete e morar sozinho. A minha mãe morava com a minha irmã, a minha mãe abandonou a minha irmã, foi na minha casa e exigiu que eu alugasse uma casa para morar comigo. E eu morei com a minha mãe durante três anos e meio. Sabe aquele sonho de jogar a cueca para qualquer lado, a meia para qualquer lado, a camiseta, não ter que prestar contas, não ter ninguém atrás de mim, “recolhe, põe no chuveiro”? Hoje, eu faço isso. Mas eu preencho o meu tempo vendo muita coisa.
O senhor lava suas roupas?
Não. Eu mando para o meu pessoal lavar. Mas eu curto a solidão tentando aprender, mentalizar a minha espiritualidade, tentando gostar mais do ser humano, tentar ficar um pouco mais humano. Eu acho que eu vou sair daqui melhor do que eu entrei. Com menos raiva das pessoas. Eu vou sair um cidadão bom daqui. Bom e motivado para brigar. Estou doido para fazer uma caravana.
Um grupo perto da prisão diz “boa noite” e “boa tarde” todos os dias para o senhor.
Eu escuto todo santo dia. Quando tem atividade, eu escuto discurso das 9h às 21h. É música, é canto. Eu sinceramente não sei como um dia eu vou poder agradecer a essa gente. Tem gente que está aqui (numa vigília em frente à PF) desde o dia em que cheguei aqui. Vai para casa, lava a roupa e volta para cá. Eu serei eternamente grato, não sei se isso já aconteceu alguma vez na história com alguém. Mas eu sinceramente não sei como fazer para agradecer. Eu já disse para todo o mundo aqui. Mas quando eu sair daqui, quero sair daqui a pé e quero ir lá no meio deles. A primeira cachaça eu quero tomar com eles. E brindar.
No dia em que eu sair daqui, eles sabem, eu estarei com o pé na estrada. Para, junto com esse povo, levantar a cabeça e não deixar entregar o Brasil aos americanos. Para acabar com esse complexo de vira-lata. Eu nunca vi um presidente bater continência para a bandeira americana (como fez Bolsonaro). Eu nunca vi um presidente ficar dizendo “eu amo os EUA, eu amo”. Ama a sua mãe, ama o seu país! Que ama os Estados Unidos! Alguém acha que os Estados Unidos vão favorecer o Brasil?
Americano pensa em americano em primeiro lugar, pensa em americano em segundo lugar, pensa em americano em terceiro lugar, pensa em americano em quinto e se sobrar tempo pensa em americano. E ficam os lacaios brasileiros achando que os americanos vão fazer alguma coisa por nós. Quem tem que fazer por nós somos nós. A solução dos problemas do Brasil está dentro do Brasil.
O seu partido perdeu a eleição e a extrema direita chegou ao poder com muitos votos que eram do PT. Como o senhor avalia essa guinada?
Vamos só relativizar tudo isso. Uma das condições que fez com que eu viesse para cá era porque não havia nenhum advogado naquele instante que não garantisse que eu disputaria as eleições sub judice. Mesmo condenado, eu poderia concorrer. E eu estava com um orgulho muito grande de ganhar as eleições de dentro da cadeia. É importante lembrar que eu cresci 16 pontos aqui dentro (da prisão). Sem poder falar.
Aí quando o ministro (do STF e do TSE, Luís Roberto Barroso) fez aquela loucura (foi decidido que Lula não poderia se candidatar), eu tive que assinar uma carta dizendo para o Haddad ser candidato.
Ali eu senti que nós estaríamos correndo risco. A transferência de votos não é simples, automática. Leva tempo. Eu tinha certeza de que o Haddad poderia representar muito bem a candidatura, como representou.
Nós tivemos uma eleição atípica no Brasil. O papel do fake news na campanha, a quantidade de mentira, foi uma coisa maluca. E depois (teve) a falta de sensibilidade dos setores de esquerda de não se unirem. A coisa foi tão maluca que a Marina (Silva, da Rede), que quase foi presidente da República em 2014, teve 1% dos votos.
Eu respeito o voto do povo. O povo não é bom só quando vota em mim. Mas a verdade é que eu nunca tinha visto o povo com tanto ódio nas ruas. Eu já fui muito a estádio de futebol. Eu sou corintiano. Eu ia com palmeirense, com são-paulino, com santista. A gente brincava, brigava. Mas, agora, era loucura. É ódio. E eu tenho acompanhado por leitura. Está no mundo inteiro assim. A política está efetivamente demonizada. E vai se levar um tempo muito grande para a gente tratar a política com mais seriedade.
Veja o caso do Brasil. O que você tem visto nesses quatro meses? Eu não esperava que o Bolsonaro fosse resolver o problema do Brasil em quatro meses. Quem acha que em cem dias pode apresentar alguma coisa, realmente não aprendeu a sentar a bunda na cadeira. E, depois, com a família que ele tem. Com a loucura que tem. Quem é o primeiro inimigo que ele tem? É o vice (general Hamilton Mourão). Ele (Bolsonaro) passa a agredir os deputados, depois tenta agradar os deputados. Diz que está fazendo a nova política e a política que ele faz é a mesma, porque ele é um velho político.
Ou seja, o país está desgovernado. Ele (Bolsonaro) não sabe até agora o que fazer e quem dita regras é o Paulo Guedes. O homem de R$ 1 trilhão (que o ministro afirma que será economizado com a reforma da Previdência). A única coisa que o povo sabe é do R$ 1 trilhão.
Eu vejo jornal das sete, das oito, das 11, do meio-dia, em todos os canais. Nunca vi tanto jornal na vida. É tudo a mesma coisa. Parece as sentenças que dão contra mim. Fez a reforma da Previdência, acabou o teu problema. Acabou o problema do Brasil. Todo mundo vai ficar maravilhosamente bem. E eu acho que todo mundo vai se lascar se for aprovada a Previdência tal como ele (Guedes) quer. Se a Previdência precisava de reforma, senta com os trabalhadores, com os empresários, com os aposentados, os políticos, e encontra uma solução para arrumar onde tem que arrumar.
Dá para culpar muitos pela derrota. Mas vocês ficaram muito tempo no poder. Houve corrupção de fato, comprovada. Que autocrítica que o senhor faz? E como fica o PT agora, sem o senhor?
Obviamente que reconhecemos que perdemos as eleições. Mas é importante lembrar a força do PT. Porque só eu pessoalmente tenho mais de 80 capas de revistas contra mim. Quando eu fui preso, eu tinha 80 horas de Jornal Nacional contra mim. Mais 80 horas da Record, mais 80 horas do SBT, mais 80 horas de um monte de coisas. E eles não conseguiram me destruir. Isso significa que o PT tem uma força muito grande.
O PT não foi destruído. O PT perdeu a eleição. Provou que é o único partido que existe nesse país. O resto é sigla de interesses eleitorais em momentos certos. Quem acabou foi o PSDB. Esse acabou. Esse foi dizimado. Então o PT perdeu as eleições. Deve ter cometido erros durante os nossos governos. O Ayrton Senna cometeu erros, um só, e morreu.
E a corrupção?
Ela pode ter havido. Agora, que se faça prova. Teve corrupção, a polícia investiga, faz acusação, prova, está condenado. Fomos nós do PT que criamos os melhores mecanismos para apurar a corrupção. Não foi o Moro, não foi ninguém. Combater a corrupção é uma marca do PT.
Se alguém do PT cometeu um erro, tem que pagar. A única coisa que queremos é que se apure, que se investigue. Eu falo por mim. Eu desafio Moro, Dallagnol, 209 milhões de pessoas — inclusive você — a provar a minha culpa.
Na questão do sítio, houve de fato uma reforma, comprovada, e o senhor usufruiu dessa reforma. A Justiça decidirá se houve crime. Mas não houve um erro?
Eu poderia ter aceito e nunca ter ido naquele sítio. Então eu cometi o erro de ter ido no sítio. Eu disse que está provado que eu fiquei sabendo daquele maldito sítio dia 15 de janeiro de 2011. E o sítio tinha dono, dono, pré-dono, e bidono. O Jacó Bittar era meu amigo de 40 anos, comprou o sítio no nome do filho dele, com cheque dado pela Caixa Econômica Federal, e a polícia sabe disso, a polícia investigou.
Nós tivemos policiais e procuradores visitando casa de trabalhador rural, casa de pedreiro, casa do caseiro, perguntando até para as galinhas: “Você conhece o Lula? O Lula é o dono?” Nem as galinhas falaram. Porque se eu quisesse eu podia comprar.
Então, se eu cometi o erro de ir num sítio em que alguém pediu e a Odebrecht reformou, vamos discutir a questão ética. Aí é outra questão. Acontece que o impeachment da Dilma, o golpe, não fecharia com o Lula em liberdade.
Qual é o meu incômodo? Se eu tivesse aqui preso e o salário mínimo tivesse dobrado, (pensaria) “o Lula realmente é um desgraçado, prendeu e melhorou a vida do povo”. Mas não.
Acabaram agora com o aumento real do salário mínimo. Inventaram uma carteira de trabalho verde e amarela. Nenhum empresário vai contratar um trabalhador que não esteja com carteira verde e amarela. Essa gente pensa que o povo é imbecil para ficar mentiNdo o tempo inteiro para o povo.
Quando falam em autocrítica, eu acho que nós devemos ter muitos erros. Eu, por exemplo, tive um erro grave. Eu poderia ter feito a regulamentação dos meios de comunicação. É uma autocrítica que eu faço. Mas imagina se todo mundo nesse Brasil fizesse uma autocrítica. A elite brasileira deveria estar agora fazendo autocrítica: “Poxa vida, como a gente ganhou tanto dinheiro no governo do Lula, como é que o povo pobre vivia tão bem, como é que o povo pobre estava viajando para o Piauí, para Sergipe, para Guaranhus, de avião e agora nem de ônibus pode viajar?”.
Vamos fazer uma autocrítica por causa do que aconteceu em 2018 na eleição. Vamos fazer uma autocrítica geral nesse país. O que não pode é esse país estar governado por esse bando de maluco.
O senhor se sente injustiçado por empresários que cresceram em seu governo fazerem delações premiadas contra o PT e o senhor?
Eu não fico com raiva. Eu tenho desafiado os empresários a dizerem quem é que me deu cinco centavos. A coisa é que mais acontece no Brasil é denúncia. E sou favorável que todas as denúncias feitas sejam apuradas. Investiga, investiga, apura, apura, faz o que quiser.
Eu estou achando estranho essa tal dessa milícia do Bolsonaro. Cadê aquele cidadão dos R$ 7 milhões (Fabrício Queiroz, ligado a Flavio Bolsonaro)? Cadê a imprensa que não está atrás do Queiroz? Então, é o seguinte, o Brasil tem dois pesos e duas medidas.
Eu, ex-presidente da República, sem nenhuma prova, foram na minha casa, recebi vários policiais. O seu Queiroz não atendeu a nenhum pedido (para depor no Ministério Público) e a Polícia Federal não foi buscar ele ainda.
Os policiais do Exército dão 80 tiros num carro, matam um negro. E vai (a imprensa) perguntar para o ministro da Justiça e ele fala: “Isso pode acontecer”. É por isso que eu não tenho o direito de baixar a cabeça, de ficar esmorecido, fraquejar. Eu estou mais tinhoso que nunca.
Como o senhor recebeu a notícia da morte de Alan Garcia (ex-presidente do Peru, que se matou quando ia ser preso por denúncias de corrupção)?
Eu nunca consegui entender a morte do Getúlio Vargas. O último filme que assisti do Getúlio Vargas foi esse com o Tony Ramos. É um bom filme.
Eu lembro que, em 2005, numa plenária com empresários no Palácio da Alvorada (quando era presidente), eu falei: “Eu quero que vocês saibam como eu sou. Não vou me matar porque eu não tenho vocação de Getúlio, não vou correr porque não tenho vocação de pedir asilo político. Se alguém quiser me pegar nesse país, vai me pegar na rua”.
E comecei a ir pra rua. E por isso que ganhei em 2006 (quando foi reeleito presidente) e orgulhosamente terminei o meu mandato com 87% de bom e ótimo, 10% de regular, e 3% de péssimo, que deve ter sido lá no condomínio do Bolsonaro e na sede do PSDB.
E o Alan Garcia?
Ele teve uma reação psicológica que muita gente tem, como o reitor da UFSC (que se suicidou).
Não é todo mundo que aguenta. A Marisa (mulher de Lula) morreu por conta disso. Quem está falando é um homem de 73 anos de idade, perto de fazer 74 anos. A dona Marisa morreu por conta do que fizeram com ela e com os filhos dela.
A dona Marisa perdeu motivação de vida, não saia mais de casa, não queria mais conversar nada. O AVC dela foi por isso. Agora, não pense que por causa disso eu vou ficar com meu coração cheio de ódio.
Aqui tem muito lugar para amor. O ódio eu vou colocando num cantinho bem escondido.
E o Alan Garcia não deve ter suportado. Eu não sei, não leio imprensa peruana, não sei qual era a acusação que se fazia contra ele. Mas o Alan Garcia era um homem que tinha saído muito mal do governo. O Peru tem uma coisa engraçada, é um país que cresce a 5% ao ano e todos os presidentes saem com 10%, 5% de aprovação.
É porque eles exportam tudo para os Estados Unidos. Eles crescem mas não têm distribuição de renda. O país cresce 5% e a miséria cresce a 10%. A miséria sempre vai na frente do crescimento.
Eu sinceramente não sei como ele se matou. Tem que ter muita decisão [para não se matar]. Eu sei o que eu passei. Eu sei o que passei. Você não tem noção do que é passar seis meses esperando todo santo dia que a Polícia chegue na tua casa? Todo santo dia. Não é um dia, não, são seis meses.
E, de repente, você vê a polícia chegar na tua casa, com uma desfaçatez, todo mundo (os policiais) com máquina fotográfica pendurada no peito para tirar fotografia.
Deveriam ter mostrado a quantidade de dólares que acharam, a quantidade de joias que acharam da dona Marisa. Deveriam ter tirado foto e colocado na TV Globo. Enfiaram o rabo no meio das pernas porque não encontraram nada. E a imprensa não fala “não encontraram nada na casa do Lula”.
É duro. Não queira que isso aconteça com você. Eu conheço casos de pessoas [presas] que estavam em cadeira de rodas, pediam para ir no banheiro e diziam: “Se você não falar o nome do Lula, você não vai no banheiro”. Como a história não é contada, essas coisas vão acontecendo. Então eu tenho muita motivação para estar vivo. Estar vivo e não fazer nenhuma loucura.
Foi a forma que eu encontrei de ajudar esse país a se reencontrar com a democracia, com o amor, com a paz. Esse povo tem o direito de ser feliz, de viver bem. Então é para isso que eu existo, meu caro. E para isso eu vou brigar até os últimos dias da minha vida.
Me diga o seguinte: Lula, você está livre, vai morar nas Bahamas, tem um lugar para você lá, vai ter água de coco todo dia de manhã. Mas o compromisso é não fazer política. Eu vou dizer o seguinte: “Eu vou ficar aqui, sem água de coco, sem Bahamas. Vou ficar na esperança de que eu vou andar por esse país levantando a cabeça do meu povo para a gente voltar a conquistar direitos”.
O povo tem que tomar café de manhã, almoçar e jantar todo dia, e se puder comer uma bolachinha às três horas da tarde com café com leite, e se puder fazer um lanchinho dez horas da noite, antes de dormir.
Quero que o povo vá ao teatro, ao cinema. A coisa mais fantástica é um pobre pegar um avião, não sabe nem como entra no banheiro, mas pega um avião e vai para a sua terra. É isso que eu quero é e por isso que vou brigar
E sei que tem muita gente que não gosta de mim, e é por isso que eu vivo, é por isso que eu tô de cabeça erguida. Não pense que eu estou aqui orgulhosamente, não. Eu estou aqui com orgulho de defender o povo. Mas gostaria de estar fora com meus netos e meus filhos.
O senhor falou que o PSDB acabou. Quem vê agora como principal adversário? O Bolsonaro? O Moro? Os militares, que passaram a ter protagonismo?
A vida inteira vocês gozaram de mim porque ele falava “menas laranja”. O Moro falar “conje” (em vez de cônjuge) é uma vergonha. Sinceramente é uma vergonha. É o mínimo que ele deveria saber porque está escrito no Código Penal, há vários artigos que falam de cônjuge.
O Moro não sobrevive na política. E o Bolsonaro, ou ele constrói um partido político sólido ou do jeito que está também não perdura muito. Porque ali você tem uma quantidade difusa de interesses. Não sei como você é deputado 27 anos e diz que não gosta de política (referindo-se à carreira de Bolsonaro). Como você faz um filho vereador, outro deputado federal, outro senador, e você não gosta de política.
Então, ele vai ter que ter muita capacidade de articulação, muita vontade, vai ter que gostar muito de política para poder dar certo. Porque a chance de ele dar certo é o Brasil dar certo. O povo tem paciência, mas não tem toda a paciência do mundo.
Pode dar certo?
Não sei. Do jeito que está fazendo não pode dar, querida. Não tem condições de dar. Você (o governo) diminuiu a renda per capita da sociedade, você diminuiu o salário mínimo, você diminuiu a possibilidade de oferta de emprego e você acha que tudo vai ser resolvido com R$ 1 trilhão para a Previdência, para o sistema financeiro? Vai dar certo onde?
Sabe o que dá certo? Dá certo se fizer como nós fizemos: legalizamos e formalizamos seis milhões de microempreendedores individuais. Sabe porque a Previdência era superavitária no meu governo? Porque teve 20 milhões de pessoas trabalhando com carteira profissional assinada. Seis milhões de microempreendedores individuais se formalizaram. O Brasil quadruplicou as exportações.
Você está lembrada que eu criei uma coisa chamada primeiro emprego. Foi uma farsa aquilo, uma loucura. Eu achava que fazendo uma lei, criando o primeiro emprego, e dizendo para os empresários que eu ia pagar R$ 200, ia gerar emprego.
Nenhum empresário gera emprego porque eu estou dando R$ 200 para ele. O que vai gerar emprego são os puxadinhos da Caixa Econômica Federal. Fiz financiamento para construir um puxadinho. Surgiram no mesmo ano dez novas fábricas de cimento no Brasil.
Quando você faz a economia, o povo come um pãozinho a mais, toma um cafezinho a mais, uma cervejinha a mais, ganha um real a mais, compra um chinelo a mais.
Aí , você começa a gerar emprego no país. Agora você, do jeito que eles tão fazendo, inclusive brigando com os nossos maiores parceiros comerciais, desprezando a América do Sul… o nosso comércio com a Argentina é maior do que com todos os países da Europa.
Como vai desprezar o nosso comércio com a Argentina o Mercosul?
Esse cara (Bolsonaro) não entende de nada. Também, com o ministro que ele tem das relações exteriores (Ernesto Araújo), aquilo foi encomendado.
Saudades do Silverinha (Azeredo da Silveira, ex-chanceler) nos tempos do (ex-ditador Ernesto) Geisel, que teve coragem de reconhecer Angola. Esse cidadão que está aí (Araújo), sinceramente, como o Celso Amorim (ex-chanceler de Lula) deixou um cara desse na carreira do Itamaraty?
Por Folha de S. Paulo e El País