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Lésbica, Três Gerações | “Eu não falava que era lésbica, eu dizia que era gay”, Camila Furchi. 

Camila Furchi, 39, abre o coração e conta como foi seu processo de sair do armário que começou nos anos 90 e terminou no início dos anos 2000.

Ana Clara, Agência Todas

Essa é a segunda matéria do Especial “Lésbicas, três gerações”. Conversamos com a Camila Furchi, 39 anos, cientista social formada na USP e mestrado na área pela UFABC. Para ela, o processo de “sair do armário” se deu em três etapas — assumir para si mesma, encontrar uma rede de amigos e se assumir para a família. É claro que essa síntese de avaliação só foi possível a posteriori a partir de uma profunda reflexão sobre as decisões que ela tomou na vida, tanto para se encontrar quanto para fugir de si mesma.

 

NÃO SOU IGUAL ÀS OUTRAS GAROTAS

 

Para mim, esse processo aconteceu desde muito cedo. Desde o pré, eu já me percebia diferente das outras meninas e gostava mais de brincadeiras que eram consideradas “de menino”. Mas esse não foi o ponto principal: eu me apaixonava pelas meninas — esse sentimento se manteve ao longo da infância e pré-adolescência.

Era final dos anos 80 e início dos anos 90, em uma família de classe média baixa brasileira, sem acesso à informação, com pessoas bastante preconceituosas.

Eu lembro de ter visto em algum lugar, em algum globo repórter, falando sobre isso [ser lésbica] e eu lembro de alguém ter falado que isso era só uma fase. Então durante muito tempo, eu encarei como uma fase que ia passar e eu continuava me apaixonando pelas minhas coleguinhas.  

 

O primeiro passo foi me assumir para mim mesma.

 

Comigo aconteceu aos 15 anos de idade. Enquanto isso, eu vivia aquele amor platônico pelas colegas e não consegui dizer nem pra mim mesma que eu era lésbica. Eu sempre fantasiava esses amores, me imaginando menino. Esse processo foi muito doloroso, bastante solitário e não tinha com quem conversar. Era uma coisa muito horrível para contar  às pessoas.

A primeira vez que falei sobre isso foi quando comecei a ter contato com outras jovens lésbicas — a partir do meu envolvimento com a torcida de basquete da Microcamp. Era um time na cidade de Campinas que tinha em meados dos anos 90, tinha a Magic Paula e outras jogadoras, viramos tiete. Era uma turma de adolescentes como eu. Fiz amizade com as atletas do time juvenil e, nesse processo, acabei conhecendo a namorada de uma delas. E foi pra ela que eu disse a primeira vez que eu era lésbica.

Até lá foi muito solitário, mas a partir daquele momento, quando eu disse para essa amiga, foi libertador.

Ainda assim, permaneceu tudo ainda meio em segredo.

 

A MINHA FANTASIA

 

Não existia tanto acesso à cultura LGBT como tem hoje com filmes, séries, debates e conversas. Eu lembro que ia na locadora e ficava procurando filmes LGBT, porque eu queria, de alguma forma, saber o que era isso, fantasiar com uma vida que não fosse de mentiras, e eu lembro o malabarismo que era tentar pegar essas fitas de temática lésbica ou gay e enfiar outras pra não dar pala de que eu era lésbica.

 

ENCONTRAR UMA REDE DE AMIGUES

 

Já no vestibular, eu escolhi fazer Ciências Sociais em São Paulo porque eu tinha a perspectiva, talvez uma fantasia, de que aqui eu poderia viver mais livremente a minha sexualidade. Isso aconteceu apenas em parte. Em 1999, por conta de uma ocupação que fizemos no CRUSP (moradia universitária da USP), acabei caindo em um grupo de pessoas do interior, extremamente conservadoras, com quem continuei sem liberdade para me abrir.  

Até que eu conheci um grande amigo, que era gay, e comecei a me assumir para outras pessoas. Dar esse outro passo só foi possível porque eu encontrei um grupo de pessoas LGBT — onde eu me sentia segura em uma rede de amigos.

A gente contar com uma rede com pessoas que vivem as mesmas coisas que nós — foi fundamental para eu passar por esse processo com menos dor e menos angústia. Enquanto eu não conheci essas pessoas, eu vivi tudo isso de forma muito solitária.

 

FIM DO CICLO E O LUTO DOS PAIS

 

O processo de me assumir se completou em 2003, quando eu terminei meu primeiro relacionamento com uma mulher — que hoje é uma grande amiga. Quando eu estava em Campinas, visitando minha família, eu falava muito com ela pelo telefone que, então, era minha namorada. Mas não havia contado para minha mãe. Quando a gente terminou, eu fiquei muito triste, era final do ano, eu estava na casa da minha mãe.

Ela me viu muito triste, perguntou o que estava acontecendo, e eu notei, pelo jeito que ela me perguntou, que ela já sabia. Foi quando eu disse que eu tinha uma namorada, tinha terminado e estava muito triste.

Minha mãe me acolheu.

“Olha, Camila, eu não pensava isso pra você. Tenho medo do mundo, do preconceito,  da violência do que pode acontecer, mas você é minha filha, eu te amo.”

Mas ainda assim ela viveu um certo luto.

Embora eu nunca tenha sido como as outras meninas, ela não pensava nisso como uma possibilidade. Na minha perspectiva, teve um processo pra ela concluir essa informação. Depois disso, todas as minhas relações mais sérias minha mãe conheceu.

E me sinto muito privilegiada de ter uma mãe que entende e acolhe e inclusive sofreu muito com a eleição do Bolsonaro pelo risco que ele representa pra nós, LGBT.

 

VIOLÊNCIA SIMBÓLICA PERMANENTE

 

Eu sei a violência física e simbólica que estou exposta a todo momento, mas uma coisa que me deixa muito revoltada é um casal de lésbica ter menos legitimidade e não sermos reconhecidas. Além das frases lesbofóbicas “não está faltando nada”, “falta um pinto”, tem esses desdobramentos nas próprias relações.

Parece que diante de um casal heterossexual, a gente é menos casal — uma violência simbólica permanente que tem a ver com a questão da invisibilidade.

 

SAIR DO ARMÁRIO HÁ 20 ANOS

 

O processo de se assumir hoje é muito mais fácil do que na minha geração, por conta do acesso à informação, da cultura LGBT, de debates e pessoas falando sobre. É claro que a minha geração ainda teve algumas facilidades que gerações anteriores não tiveram, sobretudo por conta do contexto da minha adolescência, nos anos 90, de uma certa “encaretada” em relação a valores. A gente vive esses ciclos de “desencaretamento” e “encaretamento” ao longo do tempo.

As gerações mais novas talvez não sofram tanto como a gente, mas isso não significa que elas não sofram.

Temos que pensar aí no recorte de classe: uma coisa é uma jovem lésbica em um ambiente de classe média com muito acesso à informação e cultura e outra coisa é uma jovem lésbica que mora na periferia da cidade e não tem acesso.

Tem um crescimento do conservadorismo, mas tem uma juventude muito mais aberta e disposta a confrontar esses valores da heternormatividade.

 

DE CAMILA 39 PARA A CAMILA DE 15 ANOS

Quando eu tinha 15, eu achava que eu ia ficar sozinha pra sempre.

Hoje, se eu pudesse, eu diria pra mim, naquela época: Calma. Você está no caminho certo.

 

PARA AS LÉSBICAS DAS NOVAS GERAÇÕES

Para a garotada de hoje, eu diria: tenham muito orgulho de serem lésbicas e busquem construir uma rede de apoio para passarem por esse processo de assumir pra si mesma e pra sociedade de uma forma mais amparada. Não passem por isso sozinhas.

A gente não falava que era lésbica, eu dizia que era gay. Uma palavra aí pra falar sobre homossexual, demorou pra eu falar lésbica. Eu achava a palavra feia. Demorou para eu entender o quanto era necessário eu me afirmar enquanto lésbica.

E para as lésbicas mais radicais: a gente precisa ser solidária com as mulheres, com os homens. Pensar que temos lutar pelo nosso direito de existir  sem apagar a existência de outras possibilidades de vida. Me preocupa muito um certo discurso que nega a existência e legitimidade de pessoas transexuais, me preocupa muito que a gente se coloque nessas caixinhas tão enrijecidas de não aceitar a sexualidade de outras mulheres.

A nossa luta tem muitas partes em comuns com a luta gay, transexual e travesti — mas a gente tem as nossas especificidades. No entanto, as nossas especificidades não devem nos separar do ponto de vista do discurso e das políticas — apenas reconhecer nossa existência, reafirmá-las, sem apagar outras.