Desde a vitória de Jair Messias Bolsonaro nas eleições presidenciais de outubro, tudo mudou. Uma coisa é escolher alguem para assistir à ascensão de um movimento populista; outra é escolher viver sob um regime populista que tomou o poder. Não é tanto o populismo de extrema direita, como encontramos em outros lugares, mas um populista de extrema direita. As referências aos fascismos europeus da década de 1930 e à ditadura militar dos anos de chumbo (1964-1985) com pedido de desculpas pela tortura são constantes.
Em pouco tempo, o Brasil se tornou um estado desonesto – mais próximo da Rússia ou da Índia do que da Hungria ou da Polônia – como os Estados Unidos no meio do continuum populista. Enquanto os outros países precisaram de uma década ou mais para chegar onde estão, no Brasil, com seu sistema presidencial americano, houve avanço célere. Passamos rapidamente da ameaça populista ao autoritarismo. Oficialmente, ainda somos uma democracia. O insidioso desmantelamento do Estado de Direito e os ataques incessantes à intermediação institucional (a suprema corte, congressos, mídia), no entanto, nos aproximam de uma “democracia”.
Multidão sem máscara
Nostálgico pela ditadura, Bolsonaro pratica o negacionismo histórico. Ao alimentar o fogo na Amazônia, ele também praticou a negação do clima. Ao tratar o Covid-19 como uma “gripezinha” ou um “resfriadinho”, ele também pratica o negacionismo científico. Em meio à pandemia de coronavírus, convoca seus seguidores mais radicais para uma manifestação abertamente sociopata contra o Congresso e a Suprema Corte. Como se um crime não fosse suficiente, ele atraiu uma multidão sem máscara e sem gestos de barreira, quando soube que várias pessoas em seu ambiente imediato que o acompanharam durante a visita oficial aos Estados Unidos já estavam infectadas. Ele minimiza os riscos de uma pandemia, vituperando contra a grande mídia acusando-os de fomentar uma “verdadeira histeria”.
Com três semanas de atraso, quase em todo o país, o confinamento está ocorrendo. Escolas e universidades estão fechando as portas, empresas e serviços estão parados tememos o pior. Desde a emenda da Constituição pelo governo de Michel Temer em 2016, os gastos com saúde foram limitados… até 2036! No Estado do Rio de Janeiro, o sistema de saúde entrou em colapso em outubro. O narcotráfico e as milícias paramilitares impõem toque de recolher nas favelas. Nas farmácias, não existem máscaras ou álcool gel. Além disso, como lavar as mãos quando não há água corrente em casa? Como praticar o isolamento social quando uma família inteira vive em um quarto individual? E como se sobrevive quando não se tem mais trabalho, nem renda e ou reservas?
Como sempre, o governo está mais preocupado com a austeridade do que com saúde. Bolsonaro autoriza a suspensão de contratos de trabalho por três meses sem remuneração, enquanto Paulo Guedes afirma que o governo pode abrir seus cofres e doar 200 reais (40 euros) por mês para trabalhadores informais desempregados. Para protestar contra a irresponsabilidade do presidente, panelaços são realizados nas noites de contenção em todo o Brasil.
Apelo à suspensão do confinamento em massa
Em 24 de março, Bolsonaro fez um pronunciamento fatídico, o “discurso da morte”, completamente irresponsável e criminoso. Ao contrário de todas as instruções oficiais da Organização Mundial da Saúde e de seu próprio ministro da Saúde, ele pediu a suspensão imediato do confinamento. Sob a alegação que a crise econômica é muito mais mortal do que a saúde, disse que o país não pode e não deve parar, que o Covid-19 não é mais perigoso do que uma “gripezinha” que afeta apenas os idosos, que pessoas como ele, com seu “histórico de atleta”, não correm o menor risco. Por fim, disse que Deus e a cloroquina salvarão o país. E exigiu a reabertura imediata de escolas e lojas, anunciando o levantamento da “contenção em massa”.
Ainda criticou a mídia, atacou os governadores, acusando-os de praticarem a política de “terra arrasada”, pedindo o retorno imediato à normalidade, ele politizou a crise da saúde até o limite. A partir de um cálculo eleitoral louco, esperando que os efeitos da crise econômica sejam atribuídos a seus oponentes, Bolsonaro intencionalmente causará caos e semeará a morte. Ele comete suicídio político?
Bolsanovírus
A resposta dos altos funcionários da República, dos governadores dos estados da federação, dos prefeitos e da sociedade civil é imediata: é necessário manter a política de contenção e seguir as diretrizes da autoridade. É necessário, é claro, desenvolver uma política inteligente que atue tanto combatendo o vírus quanto ajudando a economia, mas a proposta de Bolsonaro de levantar imediatamente a contenção para todos, exceto para as categorias em risco (“isolamento vertical”) e retomar a economia a todo custo não é razoável. Como ele é incorrigível, não aprende e não fecha a boca, deve permanecer isolado e em quarentena. Como o coronavírus, o bolsonavírus é virulento e mortal.
Diante de um crime de irresponsabilidade, o processo de impeachment deve ser instaurado, mas o procedimento é demorado, mesmo sendo urgente. Certamente seria ainda melhor se o próprio Bolsonaro pedisse a renúncia, mas ele não vai fazê-lo. Ele é totalmente capaz de declarar o estado de emergência e de promover um golpe contra si mesmo para instituir a ditadura contra o caos que ele próprio criou. Seja o que for, um dia um tribunal criminal terá que julgar e condenar ele e seu clã pelo “populicídio”, isto é, promover assassinato em massa, de maneira voluntária e premeditada.
* Frédéric Vandenberg | Libération.
Frédéric Vandenberghe é professor de Sociologia no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS-UFRJ)
Artigo publicado originalmente no jornal Libération, em 6 de abril.