Na entrevista concedida nesta quarta-feira (15) à TVT, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou que enquanto Jair Bolsonaro não se despir de sua “raiva e seu preconceito” não assumirá que foi eleito para governar para 210 milhões de brasileiros, e não só para quem gosta dele. Lula se refere à condução da economia liderada pelo ministro Paulo Guedes e ao distanciamento do Estado brasileiro de arcar com suas responsabilidades.
“Ele tem que pensar em atender a todas as pessoas. E tem que pensar nas pessoas mais carentes, é pra isso que o Estado deve funcionar. Não é pra cuidar do setor financeiro. Não é pra destruir direitos trabalhistas como estão destruindo. Não é pra fazer uma sociedade acreditar que trabalhar no Uber é ser empreendedor. As pessoas trabalham com Uber porque não têm possibilidade de ter um emprego formal, com carteira assinada, com Previdência Social, com 13º, com férias”, afirma.
Lula observou que depois da crise de 2008, em que o mundo passou a acentuar medidas de financeirização da economia, 165 países adotaram reformas que modificaram leis trabalhistas para reduzir direitos e que isso não resolveu o problema das economias. Na maioria, como no Brasil, o governo e os mercados fragilizam as relações do trabalho sem promover a criação de empregos decentes: “Querem que as pessoas voltem a trabalhar, achando que um cara que está entregando pizza de bicicleta é empreendedor. Então, não pode tratar o povo como palhaço”.
O ex-presidente considera uma luta obsessiva unir partidos e organizações sociais e diz sonhar com alguns movimentos, como “tentar criar consciência” da soberania nacional. “Soberania nacional não é defender empresa, é defender o país. É defender nossas riquezas do solo e subsolo da mesma forma como defendemos fronteiras. Defender florestas, água, educação, saúde, investimento em pesquisa. É uma coisa total. Soberania é defender a qualidade de vida do nosso povo.”
O convite da prefeitura de Paris para que viaje à capital francesa para receber o título de Cidadão Parisiense é lembrado por Lula, que cita ainda desejo de ratificar sua liberdade e cumprir uma agenda internacional. Mas avisa que está se preparando para viajar pelo Brasil e que pretende fazê-lo “sem raiva”, apenas com objetivo de dizer às pessoas o que deseja para o Brasil.
Participam da entrevista os jornalistas Juca Kfouri, José Trajano e Talita Galli, da TVT.
Hoje o senhor tem uma preocupação em relação a conversar com evangélicos?
Então eu acho que tem espaço muito grande para discutir religião neste país. Muito grande. E até tenho jeito para ser pastor (risos), com esse cabelo. Eu posso ser pastor, posso até ser padre, é só a Igreja (Católica) acabar com o celibato que eu topo.
Trajano – O papa até quer acabar, mas… Já que citei aqui o filme Dois Papas, vamos falar do filme Democracia em Vertigem?
Deixa eu falar só uma compreensão que eu tive do filme Dois Papas. Eu não sei se eu consegui compreender bem… porque eu estou na média da inteligência nacional…
Juca – Quem dera, presidente, deixe de modéstia, menos, menos…
O filme é muito condescendente com o papa alemão (Bento XVI) e bem mais duro com o papa Francisco. Eu vi um artigo do Leonardo Boff defendendo ele, e eu não sabia das qualidades do Ratzinger antes de ler o artigo, e quando o Boff diz você tem que levar em conta. Mas o filme mostra um Ratzinger muito bonzinho… E sobre Democracia em Vertigem, meu caro…
Juca – Desde que Democracia em Vertigem que foi indicado para o Oscar (de melhor documentário) está doendo o cotovelo de tanta gente. É uma dificuldade para dar essa notícia… Mas o PT está pagando a Academia?
Trajano – Está pagando a Netflix?
Vai ver que eles vão dizer que o PT comprou a Netflix (risos).
Trajano – Ou o filho do Lula…
Juca – Teve um aí uns tempos atrás que disse que o PT estava pagando o New York Times…
Quando eu vi o filme eu achei que a grandiosidade do documentário foi a narrativa da Petra (Costa, diretora). A sinceridade da narrativa, de colocar a família dela, uma naturalidade que eu não sei quantas pessoas teriam a coragem da sinceridade dela. Foi uma atitude brilhante. Quando ela ganhou (a indicação para concorrer) eu liguei para ela e apontei: você pode ficar certa que a sua narrativa é um dos pontos fortes do filme.
Trajano – Ao contrário do ex-capitão, que não viu e não gostou, você viu e gostou… Mas eu queria entrar numa pergunta aqui sobre esses dois meses em que você mesmo diz que está solto, mas não esta livre. O reencontro com a militância, os familiares, amigos, e gente do povo. Quando você entrou na Polícia Federal, pra ficar 580 dias, e agora você revendo essas pessoas, o olhar, a fala, as angústias, que paralelo que dá pra fazer?
Eu fui outro dia na Polícia Federal para tirar passaporte. Eu não quis mais tirar passaporte diplomático. Hoje ou amanhã vai ficar pronto, preciso ir buscar. E depois eu tenho que comunicar alguns juízes que eu tenho um convite para ir a Paris receber um título de Cidadão Parisiense.
Juca – Isso vai dar uma ciumeira em Higienópolis…
Depois ainda vou ver se faço uma visita à Alemanha, Inglaterra, Espanha, Portugal. Depois eu gostaria de cumprir agenda em Harvard, aonde o Moro vai tanto, espero que apareçam… Então, eu vou tentar conquistar o meu direito de viajar e continuar brigando pela minha liberdade plena…
Trajano – Mas e o reencontro com as pessoas?
Eu, durante os 580 dias que estive lá, em nenhum momento me permiti ter qualquer começo de depressão. Tudo pra mim que acontecia, por pior que fosse, eu tinha na minha cabeça que tinha muita gente pior do que eu. Eu estava com saúde, eu tinha um colchão pra dormir – embora me doessem as costas –, eu tinha cobertor, eu tinha papel higiênico que eu comprava, sabonete que eu comprava, eu bebia água que eu comprava, comprava meu café. Então, toda vez que vinha uma coisa ruim eu falava: “Não, eu estou melhor do que muita gente. Eu tenho que estar preocupado com esse povo, não comigo”. Quando eu saí, eu saí nesse período, perto de Natal, ano novo, muita gente já parando, viajando. Fui pra casa. Fui fazer meu milésimo gol lá campo do MST. E eu estou me preparando agora para começar a viajar o Brasil.
E eu não quero começar a viajar o Brasil com raiva. Eu quero viajar falando das coisas que eu acho que tem que acontecer. Não é possível aceitar que neste país tenha gente passando fome. Em nome de tudo que possa ser sagrado, não é possível um país do tamanho do Brasil ter gente passando fome. Não é possível um presidente da República ficar regateando se vai dar R$ 1.039 ou R$ 1.045 de salário mínimo. Ele só tem que saber que no meu governo o salário mínimo aumento 74% acima da inflação. Que 94% das categorias de trabalhadores que fizeram acordos salariais ganharam aumentos acima da inflação.
Ele só que saber que é possível, e é bonito, as pessoas tomarem café, almoçar e jantar todo dia. Tem que saber que o aposentado já se aposentou em 30 minutos, que a gestante já recebeu o auxílio-maternidade e o trabalhador doente que passou por uma perícia médica sabia que receberia dali a 10 dias – no tempo do Fernando Henrique levava 10 meses porque não tinha perito. Ora, ele tem que saber que este país pode ser consertado e eu vou viajar pra dizer isso. Quero viajar por que quero defender uma política de cultura neste país. Não é possível que um artista da qualidade do Wagner Moura tenha feito um filme e eu vi ele dizer numa entrevista dele que ele não ganhou um centavo até agora. E não consegue lançar o filme porque tem uma censura. Eu até sugeri num ato de cultura que teve no Rio de Janeiro que o Wagner Moura podia fazer uma frente de lançamento, eu poderia participar, no Anhangabaú, no centro do Rio, vamos lançar na rua e deixar o povo ver. E vamos mostrar a mediocridade de um governo que acha que pode ter o direito de censurar um filme porque está contando uma parte da história que ele não gosta.
Talita – Desculpa, mas você acha que existe algum interesse do presidente da República em pensar em tudo isso? Fora a agenda econômica, haveria interesse em discutir esse tipo de pauta, a fome da população?
Talita, o ideal seria que o presidente das República se despisse de toda a raiva, de todo o preconceito e de toda bobagem que ele venha a pensar, e saber que ele agora é presidente de 210 milhões de brasileiros, e ele tem que pensar em atender a todas as pessoas. E tem que pensar nas pessoas mais carentes, é pra isso que o Estado deve funcionar, para cuidar das pessoas mais pobres. Não é pra cuidar do setor financeiro. Não é pra destruir direitos trabalhistas como eles estão destruindo. Não é pra fazer uma sociedade acreditar que trabalhar no Uber é ser empreendedor. As pessoas trabalham com Uber porque não têm possibilidade de ter um emprego formal, com carteira assinada, com Previdência Social, com 13º, com férias.
Juca – Não sei se o senhor conhece um youtuber que a garotada gosta muito, chamado Felipe Neto. Ele fez uma crítica à precarização do trabalho, agora chamada no Brasil de empreendedorismo, dizendo que empreendedorismo no Brasil está sendo confundido com sobrevivência.
É que as pessoas novas não compreendem isso. Na década de 1950 e 1960, tinha muitas mulheres que trabalhavam em casa. Pegavam nessas fábricas de costura, roupas, shorts, camisetas, cobertor, para costurar em casa para fora. No final do mês não ganhava nem um salário mínimo, não tinha benefícios, férias, natal, ano novo, nada. Brigamos feito malucos para dar dinheiro para essa gente. Não tinham benefícios, não tinha férias, não tinha descanso, Natal, ano novo, nada. Brigamos que nem malucos para dar direitos para essa gente.
Querem que as pessoas voltem a trabalhar, achando que um cara que está entregando pizza de bicicleta é empreendedor. Então, não pode tratar o povo como palhaço.
Juca – Não se pode mais deduzir do imposto de renda e o INSS da empregada doméstica.
Veja, só terminar essa questão delicada. O cidadão vai trabalhar no Uber porque no Brasil predomina a visão de que é melhor pingar do que secar. Se você ficar desempregada, você vai trabalhar de qualquer coisa. Vai ganhar um terço do que ganha, não tem direito a nada, mas tem que trabalhar, tem que levar o leite pra casa.
É normal isso. Esses dias estava conversando com um motorista de Uber que tinha um carro e vendeu. Agora está trabalhando alugando o carro. Paga 1.600 de aluguel no carro e tira de 1.500 a 1.600, que é a parte dele. Mas, obviamente, quando ele trabalhava tirava o dobro disso.
Essa gente está vivendo mais precarizado o possível. As pessoas aceitam trabalhar.
Talita – Você acredita numa insurgência popular por conta disso, como tem acontecido na América do Sul?
Temos que fazer com que o povo se mobilize, vá à luta para conquistar seus direitos. Talita, você entrevista muita gente do movimento sindical, desde a quebra do Lehmann Brothers (crise de 2008) até hoje, tivemos 165 países que tiveram mudanças na legislação trabalhista. Só em três teve alguma melhoria. Estamos voltando ao tratamento de antes da escravidão. Estão dizendo que isso é bom.
E o que faz o ministro da Fazenda (refere-se ao ministro da Economia, Paulo Guedes)? Você não vê dizer a palavra crescimento, desenvolvimento. Eles só falam em vender. Deveria ser presidente de uma associação de mascate e nunca ministro da Fazenda. Não tem criatividade, não pensa. Não pensa no Brasil. Como pode vender tudo? Como vamos arrumar dinheiro?
Quero estar junto dos outros partidos, com Boulos, Dino, Haddad, CUT, Força Sindical. Sonho em alguns movimentos. Um que me chama atenção é tentar criar consciência da soberania nacional. Soberania nacional não é defender empresa, é defender país. É defender nossas riquezas do solo e subsolo da mesma forma como defendemos fronteiras. Defender florestas, água, educação, saúde, investimento em pesquisa. É uma coisa total. Soberania é defender a qualidade de vida do nosso povo.
Um país que não é soberano, que o presidente bate continência para outro presidente, diz “eu te amo, eu te amo” e o outro nem vê. É um país sem respeitabilidade. Não tem coisa pior no mundo do que não ser respeitado pelos seus pares, pelos vizinhos. Eu queria ser respeitado pelo Evo Morales mas antes queria ser respeitado pelo Bush, pelo Obama. Fazia questão, adotava a teoria do Chico Buarque: não grito com Evo Morales e não falo baixo com os Estados Unidos. Falo igual com os dois. O Brasil tem tamanho. Vivi isso graças a Deus, graças ao trabalho do Celso Amorim. Vivi um momento em que o Brasil era respeitado pela China, pela Índia, Alemanha, França.
Juca – Contudo, o senhor está com os bens bloqueados até hoje. No processo chamado “quadrilhão” o senhor foi absolvido. As palestras pelas quais é investigado, agora a PF diz que aconteceram e são legais.
Há cinco anos me investigam. Pegaram meus discursos. Acho que tiraram cópia para aprender. Ele tem matéria do meu debate, filme do meu debate, entrevista com vários presidentes. Eles estão há cinco anos e não tem nada.
Como vive com bens bloqueados?
Sobrevivo. Tenho aposentadoria como anistiado político, 8 mil e poucos reais. Não tinha entrado com aposentadoria por tempo de serviço. Por que ia ser presidente, não queria ter duas aposentadorias. Não reivindiquei. Agora fui tentar reivindicar.
Trajano – Vai ter que entrar na fila do INSS, como 2 milhões de brasileiros.
Sou um cara que de baixo custo. Não vou em restaurante, nem um terno meu me serve. Eu emagreci 9 quilos. Nos últimos meses na PF estava andando na esteira 10 quilômetros por dia. Colocava o pen drive na televisão, ficava vendo e andando. Quando o cara falava algo que não gostava, aumentava e corria mais. Gostava de ouvir cantos gregorianos.
Talita – Seriados, o senhor está assistindo Merlí?
Terminei de assistir. Fui ligar para a Chaui nesses dias sobre uma palestra, disse que gostaria que ela assistisse ao Merlí para ela dizer se está correto aquelas coisas que ele fala…
Juca – Sim, sim, dos filósofos, está correto, sim, mas não sou Marilena Chauí para dar essa resposta. Presidente, retomando uma questão que o Trajano tocou, acho que certas coisas que o senhor viveu passam despercebidas. Por mais duro que seja, voltar a elas é importante. Nos 580 dias que passou na prisão o senhor dizia que tinha gente em pior situação, que pensava no Brasil e relevava o que acontecia com o senhor. Mas o senhor teve dores dessas que não se curam. Perder um irmão é terrível, mas faz parte. Mas perdeu um neto. Como superar isso, lidar com isso?
Não se supera. Acho que a morte de um filho, de um neto é uma coisa insuperável. Eu até disse para a Marlene (nora, mãe de Arthur) que não tem palavras para te confortar. Vamos rezar para que o tempo se encarregue de fazer com que você consiga amenizar o sofrimento. O Arthur é uma criança muito especial. Queria ir no enterro.
O que me deixou meio puto com a morte do Vavá, eu queria ir ao enterro, foi a mais esdrúxula possível. Permitiram que eu fosse a São Paulo, mas não que eu fosse ver o Vavá. O Vavá que fosse me ver. Ou seja, decidiram que o Vavá ia em um quartel me ver e que não poderia ter imprensa, ninguém. Como eu ia exigir que os parentes levassem o defunto para um quartel? Achei isso de uma grosseria, de uma desumanidade, que não consigo entender como alguém toma uma decisão dessa. Então, me ofendeu muito.
Perdi outros companheiros. O Sigmaringa Seixas foi me visitar, era muito meu companheiro, um irmão. E ela estava triste e às vezes queria chorar e nesse dia eu fiquei bravo com ele e disse: se é para você vir pra chorar, não venha. Não quero tristeza. Meu médico que me fazia acupuntura, nunca pensei que fosse morrer de tão saudável que era. Morreu. Teve um câncer e morreu. Então, Juca, a gente vai aprendendo a lidar com o sofrimento. Às vezes não ia tomar banho de sol porque o tempo estava feio e em vez de ficar puto da vida eu pensava: porra, tem tanta gente que não consegue tomar banho de sol, que mora em caverna na China. Por que eu tenho que ficar lamentando?