Débora Maria da Silva é uma mulher que não se amedronta. Tampouco é dada a alardes, de carregar nas tintas. De sofrimento causado pela violência, ela entende. Já viu o pior nesse quesito. Mesmo assim, ela acha que vai piorar o abuso policial contra os pobres e negros e a violência de uma forma geral, impulsionados pelo espírito justiceiro do atual governo, explicitado pelo pacote policialesco de Sérgio Moro, a quem ela intitula “ministro da Morte”.
Maio de 2006 foi marcado por uma das sequências mais aterrorizantes no processo de segregação social brasileiro. No dia 12 daquele mês, integrantes do PCC (Primeiro Comando da Capital) iniciaram uma série de ataques a unidades e viaturas da Polícia Militar de São Paulo como resposta à transferência de algumas das lideranças da facção para presídios fora da capital.
Nos dias seguintes, de um lado via-se uma população assustada, sem transporte público e com medo de sair às ruas.
O revide da polícia, à sombra das autoridades instituídas, foi uma carnificina. Ao final, 505 pessoas, todas moradores de bairros periféricos, estavam mortas.
Aí, a divisão se explicitou. Muitos aplaudiram a violência ilegal da polícia, a vingança contra os invisíveis.
Do outro lado, mães em desespero pela morte de seus filhos, baleados sem que se perguntasse se teriam ou não qualquer ligação com os ataques. Os policiais, segundo diversas denúncias, agiam fardados uns, encapuzados outros, para supostamente vingar os 59 agentes de segurança mortos pelos ataques do PCC.
Em busca de justiça, uma dessas mães, Débora Maria da Silva, decidiu criar um movimento intitulado Mães de Maio. O movimento cresceu e virou referência, dentro e fora do país, pela luta por esclarecimento das ações policiais, abertura de investigações, identificação dos criminosos e responsabilização do Estado.
Passados 13 anos, as Mães de Maio alcançaram uma vitória. A Promotoria de Direitos Humanos de São Paulo condenou o Estado a indenizar as mães em R$ 154 milhões. A decisão, a que cabe recurso, foi proferida em dezembro do ano passado, na forma de uma ação civil pública.
Para além do dinheiro, o principal destaque dessa decisão foi o fato de ter sido proferida por um promotor que havia assinado manifesto em apoio aos policiais, em 2006. Revendo os acontecimentos e escarafunchando os documentos relativos a processos e investigações conduzidos à época, o promotor Eduardo Ferreira Valério reconheceu que errou, registrando pedido de desculpas por escrito na peça condenatória.
A ação civil pública é resultado direto do trabalho das Mães de Maio. Débora, sua fundadora, diz: “Essa ação é bem-vinda, porque responsabiliza o Estado, mas não é 100%, porque nada paga o que sofremos”.
Acompanhe entrevista de Débora ao Reconexão Periferias.
Quantas mães compõem hoje o coletivo?
Não tem como você dizer quantas mães compõem o movimento porque o número é infinito, já que o Estado mata a cada 23 minutos um jovem no Brasil. E um jovem sendo assassinado, com certeza é mais uma mãe. Então ela acaba procurando o Mães de Maio e os núcleos espalhados por todo o Brasil.
A ação do coletivo se volta hoje para o combate permanente à violência ilegal da polícia, ou o objetivo continua sendo os crimes de maio?
Desde que foi fundado, o movimento combate tanto os crimes de maio como a violência policial como um todo. O movimento também sofreu represálias, tendo em vista que eles forjaram duas mães. Uma foi condenada a três anos de cadeia e outra, prenderam ela, mas a defesa entrou com recurso e o juiz considerou como prisão arbitrária. Então, tivemos sucesso na defesa de uma das mães. Eles tentaram criminalizar o movimento forjando tráfico de drogas. Foi uma tentativa de nos vincular ao crime organizado.
Como é a sustentação financeira de vocês? Qual tipo de apoio recebem?
O movimento não se sustenta com verbas públicas, porque é independente. O movimento se sustenta com a venda de materiais como roupas, com (venda de) livros lançados. E a gente tem apoio quando somos convidados a participar de eventos: temos apoio recebendo passagem e alimentação. Tipo uma diária que as organizações nos dão quando convidam as mães (para participar de debates, seminários). A gente não pede auxílio de instituições públicas porque o movimento tem autonomia. O movimento são mães ingovernáveis. A partir do momento que pedisse apoio, a gente ficaria atrelado. E a gente não aceita ordens. Somos mulheres que têm o dever de decidir qual o enfrentamento vamos fazer e de ter nossas opiniões. Nossas opiniões devem ser preservadas e respeitadas, porque os filhos eram nossos.
A gente faz vários eventos com escolas públicas, escolas privadas, universidades públicas e privadas. A procura é muito grande, porque Mães de Maio é um movimento que veio pra ficar e é um movimento necessário para o país, pra parir uma sociedade sem ódio e que preserve vidas humanas. Temos uma ideologia: nós parimos nossos filhos e o Estado não tem o direito de matá-los.
Conte-nos um pouco sobre como é combater o abuso e o crime de Estado no dia a dia. Que tipo de medidas vocês tomam? Como transmitir esse aprendizado para as pessoas?
Precisamos passar para essas crianças que os jovens que são executados, não são executados por serem bandidos. E sim porque existe na sociedade uma cultura política de execução e aprisionamento do jovem pobre e negro. E quando a gente vê que vários homicídios são cometidos pelo Estado e não são punidos, então há uma cultura de conivência por parte das autoridades e especialmente pelo Judiciário. Quando o Judiciário pede o arquivamento de um caso de crime contra a vida, se torna um dos maiores violadores da Constituição. A gente diz que quem mata dez vezes com a caneta é quem faz o pedido de arquivamento. Quando o Judiciário sabe que os inquéritos são paliativos, porque não há investigação – houve até a declaração de um desembargador do Estado de São Paulo, que falou que a falha vem da base. Aí eu perguntei pra ele: ‘O que é essa base?’ Eu cheguei a achar que essa base fosse a base familiar, criminalizando a pobreza. Mas aí ele diz assim, na rádio, onde a gente participou de um debate, que (a base de onde vem a falha) era a polícia judiciária. Então, a partir do momento que a polícia judiciária é apenas paliativa, então nossa luta é por uma perícia independente. A partir do dia em que a gente tiver uma perícia desvinculada das secretarias de segurança pública, e ligada às secretarias de saúde, acaba a impunidade.
Segundo analistas, a violência ilegal da polícia tende a aumentar a partir do posicionamento do governo federal e seus admiradores, como o governo de São Paulo. Vocês já notam isso no cotidiano?
A violência só vai ter tendência pra crescer, com certeza. Principalmente com esse pacote apresentado pelo ministro da Justiça. Não é ministro da Justiça, apresentando um pacote desse. É o ministro da Morte. Ele dá carta branca pra matar. Um policial se estiver emocionado, tiver brigado, ou mesmo com um problema em casa e sair pra rua pra trabalhar, e se ele fizer com o jovem o que tem acontecido, não será punido, então é carta branca pra matar. A gente está percebendo sim, porque o ódio está se espalhando pelo Brasil, e não é diferente em São Paulo, onde o governo Dória vem a público legitimar as mortes cometidas por sua polícia. Desde quando começamos a cobrar os crimes de maio, a gente não cobra só o Estado, cobra o governo, dando nome. Acho que chegou a hora de a gente pedir a punição dos governantes, que incentivam a violência e estimulam essa marcha fúnebre que prossegue nas favelas e na periferia. Essa marcha fúnebre não ataca o asfalto nem os bairros nobres.
Há um temor no ar de que as milícias possam se instalar em São Paulo. O que a senhora tem a dizer sobre isso?
O que paira no ar sobre as milícias é o que a gente já vem falando há muito tempo. Os crimes de maio foram cometidos por policiais da ativa e por paramilitares. Os grupos de extermínio já existem em São Paulo há muito tempo. As empresas de segurança privada fazem parte de milícias e muitas vezes elas têm donos que são policiais militares que acabam empregando ex-militares que foram expulsos da PM. Então, as milícias estão espalhadas por todo o Brasil, mas as pessoas só estão olhando para o Rio de janeiro. Não podemos negar também os pistoleiros contratados para matar no campo, nas reservas indígenas. A milícia existe em todo o país e no poder público.
Houve uma vitória recente na Justiça a favor do coletivo Mães de Maio. O que isso representa para vocês? Acredita que essa decisão de reparação de danos será mantida e cumprida?
A vitória conquistada pelo movimento é, para nós, uma vitória entre aspas. Não se repara dano nenhum. Nossos filhos não têm preço. Nossos filhos merecem a memória. Não foi uma barata que se matou e jogou no lixo. Não aceitamos isso. E essa vitória vem com um agravante: o promotor público refez toda a sequência dos crimes de maio de 2006 e declara que o estado falhou em não proteger, e ainda matar, os nossos filhos. Foi uma prova testemunhal. Na época, a gente não conseguiu apresentar testemunhas dos crimes, porque a gente sabe que essa testemunha será a próxima vítima. Como mães a gente não quer adquirir outras mães de vítima. Agora a gente tem uma testemunha legítima, que foi o promotor que abriu o processo de ação civil pública. Como aconteceram os crimes de maio? Como mães a gente já sabia, mas agora o promotor refez o passo a passo dos crimes. Então, as 1726 folhas do processo trazem os fatos e o pedido de desculpas dele, em nome do Estado, quando ele pede desculpas por ter carimbado a parabenização que foi dada aos policiais que agiram naquela época. Ele diz que se arrependeu de ter carimbado o ofício de parabenização que foi feito naquela época. Ficamos tristes porque uma pesquisa feita pela Unifesp, procurando as mães, descobriu que algumas já morreram, em numeral de dez, e não puderam ver a justiça sendo feita. Essa ação é bem-vinda, porque responsabiliza o Estado, mas não é 100%, porque nada paga o que sofremos.
Esta entrevista foi publicada originalmente na Revista Reconexão Periferias. Para baixar a edição completa, clique aqui