A leitura da matéria “UnB será ocupada pela periferia: exemplos vêm de Ceilândia e Brazlândia”, de Pedro Grigori e Walder Galvão, no “Correio Braziliense” desta quarta-feira, 31, é uma excelente oportunidade para reabrir a discussão sobre o êxito da política de cotas no Brasil.
A reportagem aponta que na UnB, primeira universidade federal a adotar o sistema de cotas e que possui, de forma complementar, o Programa de Avaliação Seriada (PAS), duas escolas públicas da periferia do Distrito Federal foram responsáveis pelo ingresso de mais de 100 alunos na universidade, um recorde no número de aprovados.
Os relatos dos alunos aprovados são emocionantes e abrem a perspectiva de ocupação de um espaço do qual seriam alijados não fosse a opção da universidade por um esforço de inclusão. Não poderia deixar de mencionar algumas histórias, narradas pelo “Correio Braziliense”, que me sensibilizaram, como é o caso da conquista da estudante Rafaela Moura Curinga, de 18 anos. Filha única de um porteiro e de uma dona de casa, Rafaela foi aprovada no curso de medicina da UnB e não deixa de sonhar. “Quero fazer especialização em neurocirurgia. Meu coração sempre me chamou para essa área”, relata a estudante.
Outra personagem da matéria é Lamara de Souza, também de 18 anos, que foi a primeira da família a ser aprovado em um curso de ensino superior. “Tive a maior nota entre os alunos da rede pública no curso de agronomia. Meu próximo objetivo é me tornar uma excelente profissional”, diz a aluna. O Correio menciona que garota levou a mãe, a avó e a tia, com quem mora, para comemorar na UnB. E que ela ainda guarda na bolsa o cartaz que pintou com a palavra “aprovada”.
A reportagem apresenta, ainda, a história de Ayana Oliveira, 16 anos, que vai cursar ciências sociais na UnB. “Ter as cotas é uma vitória imensa, pois existe uma diferença muito grande entre a educação que temos e a que as escolas particulares fornecem”, comenta ela, que, aos 15 anos, conseguiu 980 na redação do PAS.
Os relatos não param por aí e comprovam que, com as cotas e outras políticas de inclusão educacional, a diversidade está chegando na comunidade universitária. Diversidade de origem social, de experiência de vida e de raça, uma diversidade que enriquece a formação e que contribui para superar os preconceitos sociais e raciais.
A Lei de Cotas, sancionada em agosto de 2012 pela presidenta Dilma Rousseff, ataca, de forma articulada com ações afirmativas, duas dimensões fundamentais do problema histórico da exclusão educacional brasileira: a desigualdade social e a discriminação racial. Entretanto, como todos os outros instrumentos de acesso favorecido aos estudantes de escolas públicas do ensino médio e aos alunos de baixa renda, implementados pelos governos Lula e Dilma, sofreu forte resistência.
Tivemos um debate muito difícil no Congresso Nacional e com a sociedade, uma vez que grande parte da imprensa se posicionou publicamente contra a política de cotas. A oposição conservadora parlamentar, depois de obstruir por uma década o projeto no Senado Federal, entrou com uma ação de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal contra a Lei de cotas.
A liderança parlamentar de obstrução ao projeto de lei e responsável pelo recurso ao STF foi do DEM, partido do atual ministro da educação nomeado pelo governo golpista de Temer. Mas, eles foram derrotados e o julgamento consolidou o sistema de cotas e reconheceu sua constitucionalidade e legalidade.
Sendo a mais ousada ação afirmativa que se tem registro na história do nosso país, a política de cotas procurou romper um ciclo vicioso, em que os estudantes oriundos de famílias da elite econômica estudavam em escolas particulares até o ensino médio, faziam tantos vestibulares pagos quanto necessário e tinham acesso as universidades públicas e gratuitas, prejudicando o acesso dos mais pobres.
O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que unificou o acesso de forma republicana, e a Lei de cotas mudaram essa lógica, assegurando que pelo menos 50% das vagas ofertadas devem ser para estudantes das escolas públicas, com recorte de renda e acesso, favorecidos para negros e indígenas, proporcionais aos seus pesos demográficos da raça em cada unidade da federação.
A crítica central contra a Lei de Cotas argumentava que esse instrumento agredia a meritocracia e comprometeria a excelência nas universidades públicas, dois valores que devem orientar o acesso à educação superior. Entretanto, a meritocracia não pode ser considerada fora das condições socioeconômicas e históricas, porque, isoladamente, contribui para reproduzir e perpetuar a desigualdade social e racial e a exclusão educacional.
Estudantes matriculados nas escolas públicas de ensino médio respondem por 87% das matriculas e o ensino pago por 13%. Portanto, assegurar metade das vagas de acesso às universidades públicas, com um processo seletivo especifico, é uma política muito razoável e adequada, que trouxe extraordinários resultados
Quanto à questão da qualidade, pesquisas acadêmicas apontam para o excelente desempenho dos alunos beneficiados pela política de cotas. A inclusão por cotas não comprometeu a excelência dos cursos, mas encerrou um longo ciclo elitista e abriu novas oportunidades para os estudantes do ensino médio público, que nunca tiveram a oportunidade de ingressar no ensino superior.
A pesquisa do professor Jacques Wainer da Unicamp e da professora Tatiana Melguizo associada da Rossier School of Education da University of Southern Califórnia, por exemplo, avaliou o desempenho de 1 milhão de alunos no Enade, entre 2012 e 2014. A conclusão é de que a qualificação dos formandos, que tiveram acesso ao ensino superior em razão das políticas de inclusão social, equivale ou até supera a qualificação dos demais alunos.
Os estudantes beneficiados pela lei de cotas têm em média, ao final do curso, um desempenho equivalente aos não cotistas. No Prouni, os bolsistas têm um desempenho superior aos não bolsistas e no Fies ligeiramente inferior.
Resultados de pesquisas da UFBA, da UnB e da UFRN sobre cotistas e não cotistas nessas universidades federais também apontaram no mesmo sentido. Todos esses resultados comprovam o êxito das políticas de democratização de oportunidades na educação superior e enterram, de uma vez por todas, o preconceito e esses argumentos dos que são e continuam sendo contra as cotas.
Porém, a realidade da UnB contrasta com a da USP. Refém de uma visão elitista e com mais de 20 anos de governo do PSDB no estado de São Paulo, a USP foi uma das últimas universidades públicas a aderir e ainda de forma muito limitada às cotas, ao Enem e as demais políticas de acesso favorecido. No Sisu deste ano, apenas uma pessoa foi aprovada para o curso de medicina da USP por cotas raciais e só oito conseguiram vagas entre o grupo que estudou em escolas públicas.
É evidente que as cotas isoladamente não resolvem os problemas de desigualdade social e de discriminação racial, mas contribuem para sua superação. Comparados, dados do Censo da Educação Superior do Ministério da Educação revelam que, entre 2012, ano de sanção da Lei de Cotas, a participação de negros na educação superior passou de 2,6% para 5,3%, em 2015. No caso de indígenas, de 0,1% para 0,4%, passando de 10.282 para 32.147 matrículas, no mesmo período.
Os alunos oriundos de escola pública que acessaram a educação superior passaram de 1.072.647, em 2012, para 5.167.091, em 2015. Uma verdadeira explosão de alunos, que passaram a representar 64,3% do total de matriculas na educação superior em 2015, em relação aos 39,6%, de 2012.
Eles vieram para ficar. Ainda mais quando observamos que 35% dos formandos, que participaram do Enade em 2015, foram os primeiros da família a receberem um diploma de curso superior. São milhares de “Rafaelas, Lamaras e Ayaras”, em todo o Brasil. São pessoas que foram incluídas na educação universitária, permitindo uma mudança de perspectiva intergeracional dessas famílias.
É o filho do pedreiro e da empregada doméstica que passou a sonhar com a possibilidade de ser doutor. O Brasil profundo, que foi valorizado e que passou a ter acesso a uma nova realidade em nossos governos, com o oportunidades e cidadania para todos, não vai aceitar retroceder.
Aloizio Mercadante é economista, professor licenciado da PUC-SP e da Unicamp, foi deputado federal e senador pelo PT-SP, ministro-chefe da Casa Civil, ministro da Educação e ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação