O governo do Distrito Federal, na contramão da Lei 4.751/2012, que dispõe sobre a Gestão Democrática do Sistema de Ensino Público do Distrito Federal, e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, está impondo uma variante da política de militarização das escolas públicas, denominada “gestão compartilhada”, inclusive nas escolas que, através de votação no âmbito de suas respectivas comunidades escolares, rejeitaram a militarização.
O autoritarismo do governador Ibaneis Rocha também contraria o acordo que havia sido firmado entre a Secretaria de Educação, a Secretaria de Segurança Pública e o Ministério Público, segundo o qual as escolas poderiam aderir ou não, mediante livre deliberação das comunidades escolares, ao processo de militarização. O Secretário de Educação, Rafael Parente, acaba de ser demitido por não concordar com a imposição autoritária da política.
O processo de militarização das escolas públicas, deflagrado inicialmente no estado do Goiás, já está presente em vários estados brasileiros e integra o programa do governo Bolsonaro. Apresentada como pretensa solução para elevar a qualidade do ensino e para a redução da violência no ambiente escolar, a militarização faz parte de um projeto autoritário de poder, que busca impor uma maneira de pensar o mundo, um padrão comportamental e até mesmo um padrão estético.
Analisando-se a realidade dos 13 colégios militares existentes no Brasil, percebe-se que a proposta do governo Ibaneis, sintonizada com o programa do governo Bolsonaro, não passa pela transformação das escolas públicas de educação básica em colégios militares de alto nível, pois nos colégios militares, que são custeados pelo Ministério da Defesa, há substantivo investimento na infraestrutura escolar, os professores são bem remunerados e o investimento por aluno é aproximadamente três vezes superior ao investimento por aluno nas escolas públicas.
Ademais, os estudantes das escolas militares possuem condições socioeconômicas privilegiadas, sendo em sua maioria filhos de militares ou selecionados a partir de concursos de admissão extremamente concorridos. As escolas militares, regidas por legislação específica, não atendem aos princípios da gratuidade do ensino em estabelecimentos oficiais e da igualdade de condições para o acesso e permanência na escola, cobrando mensalidades e/ou taxas.
Isso significa que a transformação das escolas públicas de educação básica em colégios militares de alto nível, acessíveis aos estudantes mais pobres, demandaria a realização de investimentos substantivos em educação, o que não está no radar do governo Ibaneis, assim como não está no radar do governo Bolsonaro. A militarização das escolas públicas de educação básica representa tão somente uma intervenção militar no ambiente escolar, uma vez que não pressupõe uma política consistente de valorização dos profissionais da educação nem tampouco de ampliação dos investimentos na infraestrutura das escolas públicas.
Existem exemplos concretos demonstrando que, com um incremento de apenas 30% no investimento por aluno, é possível elevar a qualidade das escolas públicas de educação básica e melhorar seu desempenho no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), sem a necessidade de os estudantes baterem continência para militares, estudarem fardados ou serem submetidos à doutrina militar. A ampliação da oferta de educação em tempo integral, Meta 6 do Plano Nacional de Educação, integra esses exemplos e abre um horizonte de possibilidades para a redução das desigualdades educacionais.
O investimento por aluno nas escolas federais também é inferior ao verificado nos colégios militares, no entanto, o desempenho das escolas federais é superior ao dos colégios militares e frequentemente superior ao desempenho das escolas particulares, inclusive em avaliações internacionais como o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Cabe destacar ainda que, diferentemente dos colégios militares, os institutos federais reservam 50% das vagas para estudantes oriundos de escolas públicas e não cobram mensalidades e/ou taxas, garantindo acesso aos estudantes mais pobres. Aliás, se olharmos atentamente para os institutos federais de educação vamos perceber exatamente o que falta para que as escolas públicas possam ofertar educação básica de qualidade, e o que falta não é disciplina militar.
As unidades escolares públicas de educação básica, respeitada a gestão democrática, possuem relativo grau de autonomia para realizar parcerias com foco na oferta de educação pública, gratuita, democrática, laica e de qualidade para todas e todos, mas a gestão das escolas públicas não pode ser terceirizada para instituições que já enfrentam dificuldades inclusive no cumprimento das missões que lhes foram atribuídas pela Constituição de 1988, como as polícias militares.
Não podemos admitir que um estudante negro seja obrigado a anular expressões de sua cultura e de sua identidade, como o seu cabelo black power e o vocabulário da sua comunidade, para ser aceito em uma escola pública submetida ao processo de militarização. Trata-se de racismo institucional. Também não podemos admitir que a educação, processo dialógico e multifacetado, seja substituída pela cultura da coerção e do medo, do contrário estaremos decretando a morte da própria educação.
Wilmar Lacerda é ex-senador e ex-secretário de Administração Pública