A imagem de justiceiro construída nos anos de Lava-Jato começa a escorrer como areia por entre os dedos do ex-juiz e ex-ministro da Justiça Sergio Moro. Diante da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de excluir a delação do ex-ministro Antonio Palocci dos autos da ação penal que acusa o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva de ter recebido propina da Odebrecht, argumentou em nota que Palocci “já havia prestado depoimento público na mesma ação penal” e que “a inclusão da delação não revelou nada novo“.
A argumentação suscita a pergunta: “Então por que incluir a delação a uma semana do primeiro turno das eleições de 2018?”. A óbvia conclusão levou os ministros Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes a se manifestarem cabalmente a favor da exclusão, contrariando o relator Edson Fachin no julgamento virtual desta terça (4) na Segunda Turma do Supremo. Não participaram os ministros Celso de Mello e Carmen Lúcia.
Para Lewandowski, Moro influenciou no resultado das eleições de 2018 e “violou o sistema acusatório”, levando a “inequívoca quebra da imparcialidade” em sua decisão. “Ajuntada, de ofício, após o encerramento da fase instrução, com o intuito de gerar, ao que tudo indica, um fato político, revela-se em descompasso com o ordenamento constitucional vigente”, afirmou o ministro, segundo o qual Lula foi vítima de constrangimento ilegal.
Para Gilmar Mendes, as circunstâncias que permearam a juntada do acordo de Palocci “não deixam dúvidas de que o ato judicial encontra-se acoimado de grave e irreparável ilicitude”. “O acordo foi juntado aos autos da ação penal cerca de três meses após a decisão judicial que o homologara. Essa demora parece ter sido cuidadosamente planejada pelo magistrado para gerar verdadeiro fato político na semana que antecedia o primeiro turno das eleições presidenciais de 2018”, apontou Mendes.
As rachaduras na imagem do juiz que se vestia todo de preto começaram a surgir quando a jornalista Mônica Bergamo postou em seu perfil no Twitter, no fim da noite de terça, o enigma: “Moro era parcial, trabalhava contra o PT A FAVOR DE BOLSONARO na eleição de 2018? Será?? Ou virou ministro de Bolsonaro por acaso? Será?”.
Bem que o ‘Jornal Nacional’ de terça tentou minimizar as críticas dos ministros do Supremo. A reportagem deu mais destaque à posição de Fachin e às acusações contra Lula, sequer mencionando o termo habeas corpus. O telejornal leu uma nota de Moro ao fim da reportagem. A defesa de Lula, vitoriosa na ação, não teve o mesmo direito.
Na quarta (5), o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM/RJ), assumiu a defesa de Moro para afirmar que o projeto que discute a ampliação da quarentena para juízes que queiram se candidatar não o atinge. “De forma nenhuma a intenção é uma quarentena para prejudicar o ex-ministro Moro. Acho que ele tem toda a legitimidade, todo o direito para ser candidato a presidente”, disse em entrevista à rádio Banda B.
Com os microfones abertos, Maia se estendeu no raciocínio. “Moro, se for candidato, e acho que está começando a se preparar para isso, certamente será um candidato forte nas eleições de 2022”, prosseguiu o presidente da Câmara, mas já apresentando as alternativas à disposição da direita em 2022.
“Acho que no nosso campo, vai de Ciro Gomes, o Mandetta, o próprio prefeito de Salvador. O Luciano Huck tem sempre conversado conosco. O governador de São Paulo tem sempre um nome forte”, elencou Maia, apontando para o mais importante, em sua opinião: “Precisa sair um nome único daqui para que a gente tenha chance contra Bolsonaro e o PT”.
Reputação vai desmoronando
Também na quarta, o governador do Maranhão, Flávio Dino, foi às redes sociais comentar os desmandos de Moro. “Com o julgamento no STF ontem, estão demonstrados ABUSOS DE AUTORIDADE cometidos por Sérgio Moro contra o presidente Lula. Se o intuito de um ato judicial era produzir um fato eleitoral, como afirmado no STF, há grave desvio de finalidade”, declarou o ex-magistrado.
Em suas intervenções na rede social, a presidente nacional do Partido dos Trabalhadores, deputada federal Gleisi Hoffmann (PR), lembra que a ‘Vaza Jato’ revelou que Moro sequer acreditava nas mentiras de Palocci e também que sabia das implicações políticas de vazar a delação no meio das eleições.
Para o líder do PT na Câmara, Enio Verri (PR), “a Lava Jato deve muitas explicações ao Brasil”. O colega de bancada Alexandre Padilha (SP) acrescenta: “Alguém ainda tem dúvida que Moro abusou de sua posição como juiz para caçar politicamente Lula e não deixá-lo concorrer em 2018? Moro sempre esteve ao lado do projeto golpista”.
Em uma segunda postagem, Padilha arremata: “O PT bate na tecla há anos: Moro agia tentando tirar Lula da eleição. Não se trata de justiça, e sim da sua utilização como ferramenta política de perseguição. Inclusive não se sentiu culpado em juntar-se ao fascismo – até porque ganhou um ministério de mimo de Bolsonaro”.
E o deputado federal Helder Salomão (PT-ES) chega à triste conclusão: “Não fossem as artimanhas e crimes cometidos por Sérgio Moro, hoje não teríamos um governo genocida que abandonou os brasileiros à própria sorte em plena pandemia. #AnulaSTF”.
Parcialidade foi exposta até por Mourão e Bolsonaro
Pertencente a um campo político distante da esquerda, o ministro do Supremo Gilmar Mendes ratifica a conclusão dos deputados petistas. Para ele, a “Lava Jato é pai e mãe do bolsonarismo”. O que também não é nenhuma novidade.
Afinal, alguns dias após o segundo turno das eleições, o vice-presidente eleito, general Hamilton Mourão, disse que Moro havia sido convidado para ocupar o cargo de ministro da Justiça ainda durante a campanha – e por Paulo Guedes, o escolhido para destroçar o arranjo social brasileiro à frente do que seria um superministério da Economia. “Isso [o convite] já faz tempo, durante a campanha foi feito um contato”, disse Mourão em entrevista ao jornal ‘Valor Econômico’ em 31 de outubro de 2018.
No dia seguinte à fala de Mourão, Moro aceitou o convite de Bolsonaro para assumir o Ministério da Justiça, após reunião de 1 hora e 42 minutos no Rio de Janeiro. Anunciou gloriosamente à imprensa que aceitara a proposta com “a perspectiva de implementar uma forte agenda anticorrupção e anticrime organizado”. Naquele dia, já começava a sua queda do cargo.
Inebriado com a vitória, Bolsonaro entregou a trama: “Você tem que reconhecer o trabalho dele, muito bem feito. Inclusive em função do combate à corrupção, da operação Lava Jato, as questões do mensalão, entre outros, me ajudou a crescer, politicamente falando”, disse em sua primeira coletiva como presidente eleito.
Na ocasião, o então líder do PT na Câmara, Paulo Pimenta (RS), denunciou que era “de uma gravidade espantosa” a revelação de Mourão. “É prova testemunhal da relação criminosa e perversa entre a Lava Jato e Bolsonaro. Quando Moro vazou a delação de Palocci, já sabia que se Jair Bolsonaro fosse eleito ele seria ministro”, acusou o deputado.
Derrotado na disputa, Fernando Haddad profetizou: “Se o conceito de democracia já escapa a nossa elite, muito mais o conceito de república. O significado da indicação de Sérgio Moro para Ministro da Justiça só será compreendido pela mídia e fóruns internacionais”.
Abusos em série
Não demorou mesmo para que os estrangeiros percebessem o que ocorria no Brasil. Já em primeiro de novembro de 2018, o jornal espanhol ‘El País’ publicava, ao lado do perfil do escolhido para varrer a corrupção da face da terra, a matéria “Quatro momentos em que Moro foi acusado de agir com ‘timing’ político”.
O jornal começou pelo momento da condução coercitiva do ex-presidente Lula, em março de 2016. “A cena do líder do PT sendo levado pela Polícia Federal para depor parou o Brasil, mas a decisão não foi aplicada em outros casos e gerou questionamentos entre juristas. Dois anos depois, o STF proibiu a condução coercitiva de investigados para interrogatório”, dizia a matéria.
Também foi mencionado o episódio do vazamento do grampo telefônico de Lula e Dilma, no mesmo mês e ano. O juiz paranaense vazou, ilegalmente, uma conversa com a então presidenta Dilma Rousseff que levou milhares às ruas em protesto e impactou a crise vivida pelo governo Dilma, que terminou sofrendo um impeachment em agosto de 2016. Moro negou que tenha agido por motivação política e o Supremo aceitou apenas um singelo pedido de desculpas.
O terceiro caso ocorreu já no ano das eleições, quando Moro considerou o Tribunal Regional Federal da 4ª região (TRF4), hierarquicamente superior, incompetente para julgar um habeas corpus de Lula. A liberdade provisória do ex-presidente havia sido decretada em um plantão de final de semana pelo desembargador Rogério Favreto. Moro, que estava de férias, agiu para evitar que Lula fosse solto e gerou uma guerra de decisões, que terminou com o ex-presidente ainda ilegalmente encarcerado.
O quarto episódio selecionado pelo jornal espanhol foi justamente o que levou à decisão da Segunda Turma do STF nesta terça: a divulgação da delação premiada de Palocci a menos de uma semana do primeiro turno das eleições de 2018. O depoimento havia sido feito por Palocci à Polícia Federal em abril.
Em junho de 2019, as conversas divulgadas pelo site ‘The Intercept’ e parceiros na série de reportagens conhecida como “Vaza Jato” jogaram por terra a presunção de imparcialidade da força tarefa que a imprensa corporativa nacional um dia chamou de “intocável”.
A iniquidade da atuação de Moro, do chefe da operação, Deltan Dallagnol, e seus acólitos foi desnudada, tornando impossível para a mídia brasileira ignorar o escândalo, sob pena de tornar-se cúmplice do descalabro aos olhos da História.
Na ocasião, o site jurídico ‘Justificando’ relembrou outros episódios envolvendo os lavajatistas, uma corrente ideológica com projeto de poder e ambições políticas. Leia no link: https://www.justificando.com/2019/06/11/relembre-os-momentos-em-que-a-parcialidade-de-moro-foi-questionada-na-justica/
Talvez resida nesse dilema o post enigmático da jornalista da ‘Folha de São Paulo’ e da ‘Band News FM’. Talvez esse seja o motivo de Merval Pereira, a “voz do dono” nas Organizações Globo, admitir em sua coluna desta quinta (6) que “está nas mãos do Supremo Tribunal Federal o destino do quebra-cabeças político-eleitoral que definirá a corrida presidencial de 2022, que já está em curso. A situação é mais do que retórica, é real, a começar pela possibilidade, cada vez mais concreta, de o ex-juiz Sérgio Moro ser considerado parcial nos julgamentos em que o ex-presidente Lula foi condenado”.
Nesse momento, o colunista do jornal ‘O Globo’ se rendeu aos fatos: “Moro divulgou o depoimento de Palocci dias antes do primeiro turno da eleição presidencial de 2018 com o fim de prejudicar Lula, favorecendo assim Bolsonaro, de quem viria a ser ministro da Justiça. Caso seja considerado suspeito pela Segunda Turma, o processo do triplex do Guarujá, o único em que Moro foi responsável por condenar o petista, será anulado, o que provavelmente levará à anulação de outros dois processos, o do sítio de Atibaia, em que Lula foi condenado pela Juíza Gabriel Hardt, e o do Instituto Lula, que está em andamento com o Juiz Luiz Antonio Bonat”.