Mais de 7 mil trabalhadores do campo, da cidade, das florestas e das águas, de diversos países, marcharam hoje (22), Dia Mundial da Água, pelas avenidas de Brasília em defesa do recurso como bem público e direito humano para todos e contra a presença do setor privado, que avança sobre a exploração de fontes, sobre a distribuição, a comercialização e o controle dessas reservas.
Após a caminhada, acompanhada por forte aparato policial e dispersada antes do fim pela forte chuva, os participantes seguiram para o pavilhão do Parque da Cidade. Um ato inter-religioso, com representantes da fé professada por todas essas populações, marcou o encerramento.
Maior fórum alternativo já realizado, o Fórum Alternativo Mundial da Água – Fama 2018 teve início no sábado (17), em contraponto ao 8º Fórum Mundial da Água. Patrocinado por empresas diretamente interessadas em concessões, como a Nestlé e a Coca Cola, entre outras, o fórum oficial, com caráter tecnológico e comercial, termina amanhã, na capital federal.
Em seis dias, o Fama 2018 realizou mais de 200 palestras, debates, seminários, painéis, atividades autogestionadas e assembleias. Organizado por 37 entidades ligadas aos povos e comunidades tradicionais, indígenas, camponeses, mulheres, religiosos, movimentos sindicais e ambientais, Ongs e comitês criados nos estados para o encontro. Participaram ainda mais de 170 representantes internacionais, de países dos cinco continentes.
O Fama 2018 reafirmou as lutas em defesa das águas, que não são e nem podem ser transformadas em mercadoria, apropriadas, exploradas e destruídas para lucratividade dos negócios.
“Água é um bem comum e deve ser preservada e gerida pelos povos para as necessidades da vida, garantindo sua reprodução e perpetuação. Por isso, nosso projeto para as águas tem na democracia um pilar fundamental. É só por meio de processos verdadeiramente democráticos, que superem a manipulação da mídia e do dinheiro, que os povos podem construir o poder popular, o controle social e o cuidado sobre as águas, afirmando seus saberes, tradições e culturas em oposição ao projeto autoritário, egoísta e destrutivo do capital”, afirma um trecho da declaração final.
Leia a íntegra do documento:
Declaração final do Fórum Alternativo mundial das águas
Quem somos.
Nós, construtores e construtoras do Fórum Alternativo Mundial da Água (FAMA), reunidos de 17 a 22 de março de 2018, em Brasília, declaramos para toda a sociedade o que acumulamos após muitos debates, intercâmbios, sessões culturais e depoimentos ao longo de vários meses de preparação e nestes últimos dias aqui reunidos. Somos mais de 7 mil trabalhadores e trabalhadoras da cidade e do campo, das águas e das florestas, representantes de povos originários e comunidades tradicionais, articulados em 450 organizações nacionais e internacionais de todos os continentes. Somos movimentos populares, tradições religiosas e espiritualidades, organizações não governamentais, universidades, pesquisadores, ambientalistas, organizados em grupos, coletivos, redes, frentes, comitês, fóruns, institutos, articulações, sindicatos e conselhos.
Na grandeza dos povos, trocamos experiências de conhecimento, resistência e de luta. E estamos conscientes que a nossa produção é para garantir a vida e sua diversidade. Estamos aqui criando unidade e força popular para refletir e lutar juntos e juntas pela água e pela vida nas suas variadas dimensões. O que nos faz comum na relação com a natureza é garantir a vida. A nossa luta é a garantia da vida. É isso que nos diferencia dos projetos e das relações do capital expressos no Fórum das Corporações – Fórum Mundial da Água.
Também estamos aqui para denunciar a 8º edição do Fórum Mundial da Água (FMA), o Fórum das Corporações, evento organizado pelo chamado Conselho Mundial da Água, como um espaço de captura e roubo das nossas águas. O Fórum e o Conselho são vinculados às grandes corporações transnacionais e buscam atender exclusivamente a seus interesses, em detrimento dos povos e da natureza.
Nossas constatações sobre o momento histórico.
O modo de produção capitalista, historicamente, concentra e centraliza riqueza e poder, a partir da ampliação de suas formas de acumulação, intensificação de seus mecanismos de exploração do trabalho e aprofundamento de seu domínio sobre a natureza, gerando a destruição dos modos de vida. Vivemos em um período de crise do capitalismo e de seu modelo político representado pela ideologia neoliberal, na qual se busca intensificar a transformação dos bens comuns em mercadoria, através de processos de privatização, precificação e financeirização.
A persistência desse modelo tem aprofundado as desigualdades e a destruição da natureza, através dos planos de salvamento do capital nos momentos de aprofundamento da crise. Nesse cenário, as ações do capital são orientadas pela manutenção a qualquer custo das suas taxas de juros, lucro e renda.
Esse modelo impõe à América Latina e ao Caribe o papel de produtores de artigos primários e fornecedores de matéria prima, atividades econômicas intensivas em bens naturais e força de trabalho. Subordina a economia desses países a um papel dependente na economia mundial, sendo alvos prioritários dessa estratégia de ampliação da exploração a qualquer custo.
O Brasil, que sedia esta edição do FAMA, é exemplar nesse sentido. O golpe aplicado recentemente expõe a ação coordenada de corporações com setores do parlamento, da mídia e do judiciário para romper a ordem democrática e submeter o governo nacional a uma agenda que atenda seus interesses rapidamente. A mais dura medida orçamentária do mundo foi implantada em nosso país, onde o orçamento público está congelado por 20 anos, garantindo a drenagem de recursos públicos para o sistema financeiro e criando as bases para uma onda privatizante, incluindo aí a infraestrutura de armazenamento, distribuição e saneamento da água.
Quais são as estratégias das corporações para a água?
Identificamos que o objetivo das corporações é exercer o controle privado da água através da privatização, mercantilização e de sua titularização, tornando-a fonte de acumulação em escala mundial, gerando lucros para as transnacionais e ao sistema financeiro. Para isso, estão em curso diversas estratégias que vão desde o uso da violência direta até formas de captura corporativa de governos, parlamentos, judiciários, agências reguladoras e demais estruturas jurídico-institucionais para atuação em favor dos interesses do capital. Há também uma ofensiva ideológica articulada junto aos meios de comunicação, educação e propaganda que buscam criar hegemonia na sociedade contrária aos bens comuns e a favor de sua transformação em mercadoria.
O resultado desejado pelas corporações é a invasão, apropriação e o controle político e econômico dos territórios, das nascentes, rios e reservatórios, para atender os interesses do agronegócio, hidronegócio, indústria extrativa, mineração, especulação imobiliária e geração de energia hidroelétrica. O mercado de bebida e outros setores querem o controle dos aquíferos. As corporações querem também o controle de toda a indústria de abastecimento de água e esgotamento sanitário para impor seu modelo de mercado e gerar lucros ao sistema financeiro, transformando direito historicamente conquistado pelo povo em mercadoria. Querem ainda se apropriar de todos os mananciais do Brasil, América Latina e dos demais continentes para gerar valor e transferir riquezas de nossos territórios ao sistema financeiro, viabilizando o mercado mundial da água
Denunciamos as transnacionais Nestlé, Coca-Cola, Ambev, Suez, Veolia, Brookfield (BRK Ambiental), Dow AgroSciences, Monsanto, Bayer, Yara, os organismos financeiros multilaterais, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, e ONGs ambientalistas de mercado, como The Nature Conservancy e Conservation International, entre outras que expressam o caráter do “Fórum das Corporações”. Denunciamos o crime cometido pela Samarco, Vale e BHP Billiton, que contaminou com sua lama tóxica o Rio Doce, assassinando uma bacia hidrográfica inteira, matando inúmeras pessoas, e até hoje seu crime segue impune. Denunciamos o recente crime praticado pela norueguesa Hydro Alunorte que despejou milhares de toneladas de resíduos da mineração através de canais clandestinos no coração da Amazônia e o assassinato do líder comunitário Sergio Almeida Nascimento que denunciava seus crimes. Exemplos como esses têm se reproduzido por todo o mundo.
Os povos têm sido as vítimas desse avanço do projeto das corporações. As mulheres, povos originários, povos e comunidades tradicionais, populações negras, migrantes e refugiados, agricultores familiares e camponeses e as comunidades periféricas urbanas têm sofrido diretamente os ataques do capital e as consequências sociais, ambientais e culturais de sua ação.
Nos territórios e locais onde houve e/ou existem planos de privatização, aprofundam-se as desigualdades, o racismo, a violência sexual e sobrecarga de trabalho para as mulheres, a criminalização, assassinatos, ameaças e perseguição a lideranças, demissões em massa, precarização do trabalho, retirada e violação de direitos, redução salarial, aumento da exploração, brutal restrição do acesso à água e serviços públicos, redução na qualidade dos serviços prestados à população, ausência de controle social, aumentos abusivos nas tarifas, corrupção, desmatamento, contaminação e envenenamento das águas, destruição das nascentes e rios e ataques violentos aos povos e seus territórios, em especial às populações que resistem às regras impostas pelo capital.
A dinâmica de acumulação capitalista se entrelaça com o sistema hetero-patriarcal, racista e colonial, controlando o trabalho das mulheres e ocultando intencionalmente seu papel nas esferas de reprodução e produção. Nesse momento de ofensiva conservadora, há o aprofundamento da divisão sexual do trabalho e do racismo, causando o aumento da pobreza e da precarização da vida das mulheres.
A violência contra as mulheres é uma ferramenta de controle sobre nossos corpos, nosso trabalho e nossa autonomia. Essa violência se intensifica com o avanço do capital, refletindo-se no aumento de assassinato de mulheres, da prostituição e da violência sexual. Tudo isso impossibilita as mulheres de viver com dignidade e prazer.
Para as diversas religiões e espiritualidades, todas essas injustiças em relação às águas e seus territórios, caracterizam uma dessacralização da água recebida como um dom vital, e dificultam as relações com o Transcendente como horizonte maior das nossas existências.
Destacamos que para os Povos Originários e Comunidades Tradicionais há uma relação interdependente com as águas, e tudo que as atinge, e que todos os ataques criminosos que sofre, repercutem diretamente na existência desses povos em seus corpos e mentes. Esses povos se afirmam como água, pois existe uma profunda unidade entre eles e os rios, os lagos, lagoas, nascentes, mananciais, aquíferos, poços, veredas, lençóis freáticos, igarapés, estuários, mares e oceanos como entidade única. Declaramos que as águas são seres sagrados. Todas as águas são uma só água em permanente movimento e transformação. A água é entidade viva, e merece ser respeitada.
Por fim, constatamos que a entrega de nossas riquezas e bens comuns conduz a destruição da soberania e a autodeterminação dos povos, assim como a perda dos seus territórios e modos de vida.
Mas nós afirmamos: resistimos e venceremos!
Nossa resistência e luta é legítima. Somos os guardiões e guardiãs das águas e defensores da vida. Somos um povo que resiste e nossa luta vencerá todas as estruturas que dominam, oprimem e exploram nossos povos, corpos e territórios. Somos como água, alegres, transparentes e em movimento. Somos povos da água e a água dos povos.
Nestes dias de convívio coletivo, identificamos uma extraordinária diversidade de práticas sociais, com enorme riqueza de culturas, conhecimento e formas de resistência e de luta pela vida. Ninguém se renderá. Os povos das águas, das florestas e do campo resistem e não se renderão ao capital. Assim também tem sido a luta dos povos, dos operários e de todos os trabalhadores e trabalhadoras das cidades que demonstram cada vez maior força. Temos a convicção que só a luta conjunta dos povos poderá derrotar todas as estruturas injustas desta sociedade.
Identificamos que a resistência e a luta têm se realizado em todos os locais e territórios do Brasil e do mundo e estamos convencidos que nossa força deve caminhar e unir-se a grandes lutas nacionais e internacionais. A luta dos povos em defesa das águas é mundial.
Água é vida, é saúde, é alimento, é território, é direito humano, é um bem comum sagrado.
O que propomos.
Reafirmamos que as diversas lutas em defesas das águas dizem em alto e bom som que água não é e nem pode ser mercadoria. Não é recurso a ser apropriado, explorado e destruído para bom rendimento dos negócios. Água é um bem comum e deve ser preservada e gerida pelos povos para as necessidades da vida, garantindo sua reprodução e perpetuação. Por isso, nosso projeto para as águas tem na democracia um pilar fundamental. É só por meio de processos verdadeiramente democráticos, que superem a manipulação da mídia e do dinheiro, que os povos podem construir o poder popular, o controle social e o cuidado sobre as águas, afirmando seus saberes, tradições e culturas em oposição ao projeto autoritário, egoísta e destrutivo do capital.
Somos radicalmente contrários às diversas estratégias presentes e futuras de apropriação privada sobre a água, e defendemos o caráter público, comunitário e popular dos sistemas urbanos de gestão e cuidado da água e do saneamento. Por isso saudamos e estimulamos os processos de reestatização de companhias de água e esgoto e outras formas de gestão. Seguiremos denunciando as tentativas de privatização e abertura de Capital, a exemplo do que ocorre no Brasil, onde 18 estados manifestaram interesse na privatização de suas companhias.
Defendemos o trabalho decente, assentado em relações de trabalho democráticas, protegidas e livre de toda forma de precarização. Também é fundamental a garantia do acesso democrático e sustentável à água junto à implementação da reforma agrária e defesa dos territórios, com garantia de produção de alimentos em bases agroecológicas, respeitando as práticas tradicionais e buscando atender a soberania alimentar dos trabalhadores e trabalhadoras urbanos e do campo, florestas e águas.
Estamos comprometidos com a superação do patriarcado e da divisão sexual do trabalho, pelo reconhecimento de que o trabalho doméstico e de cuidados está na base da sustentabilidade da vida. O combate ao racismo também nos une na luta pelo reconhecimento, titulação e demarcação dos territórios dos povos originários e comunidades tradicionais e na reparação ao povo negro e indígena que vive marginalizado nas periferias dos centros urbanos.
Nosso projeto é orientado pela justiça e pela solidariedade, não pelo lucro. Nele ninguém passará sede ou fome, e todos e todas terão acesso à água de qualidade, regular e suficiente bem como aos serviços públicos de saneamento.
Nosso plano de ações e lutas.
A profundidade de nossas debates e elaborações coletivas, o sucesso da nossa mobilização, a diversidade do nosso povo e a amplitude dos desafios que precisam ser combatidos nos impulsionam a continuar o enfrentamento ao sistema capitalista, patriarcal, racista e colonial, tendo como referência a construção da aliança e da unidade entre toda a diversidade presente no FAMA 2018.
Trabalharemos, através de nossas formas de luta e organização para ampliar a força dos povos no combate à apropriação e destruição das águas. A intensificação e qualificação do trabalho de base junto ao povo, a ação e a formação política para construir uma concepção crítica da realidade serão nossos instrumentos. O povo deve assumir o comando da luta. Apostamos no protagonismo e na criação heróica dos povos.
Vamos praticar nosso apoio e solidariedade internacional a todos os processos de lutas dos povos em defesa da água denunciam a arquitetura da impunidade, que, por meio dos regimes de livre-comércio e investimentos, concede privilégios às corporações transnacionais e facilitam seus crimes corporativos.
Multiplicaremos as experiências compartilhadas no Tribunal Popular das Mulheres, para a promoção da justiça popular, visibilizando as denúncias dos crimes contra a nossa soberania, os corpos, os bens comuns e a vida das mulheres do campo, das florestas, águas e cidades.
A água é dom que a humanidade recebeu gratuitamente, é direito de todas as criaturas e bem comum. Por isso, nos comprometemos a unir mística e política, fé e profecia em suas práticas religiosas, lutando contra os projetos de privatização, mercantilização e contaminação das águas que ferem a sua dimensão sagrada.
O Fórum Alternativo Mundial da Água (FAMA) apoia, se solidariza e estimulará todos os processos de articulação e de lutas dos povos no Brasil e no mundo, tais como a construção do “Congresso do Povo”, do “Acampamento Terra Livre”, da “Assembleia Internacional dos Movimentos e Organizações dos Povos”, da “Jornada Continental pela Democracia e Contra o Neoliberalismo”; da campanha internacional para desmantelar o poder corporativo e pelo “tratado vinculante” como ferramenta para exigir justiça, verdade e reparação frente aos crimes das transnacionais.
Convocamos todos os povos a lutar juntos para defender a água. A água não é mercadoria. A água é do povo e pelos povos deve ser controlada.
É tempo de esperança e de luta. Só a luta nos fará vencer. Triunfaremos!
Assinam a declaração:
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil
Articulação Semiárido Brasileiro
Associação Brasileira de Saúde Coletiva
Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento
Cáritas Brasil
Central de Movimentos Populares
Conselho Nacional das Populações Extrativistas
Confederação Nacional dos Urbanitários
Confederação Nacional das Associações de Moradores
Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas
Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura
Comissão Pastoral da Terra
Central Sindical das Américas
Central Única dos Trabalhadores
Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional
Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento
Federação Nacional das Associações do Pessoal da Caixa Econômica Federal
Federação Interestadual de Sindicatos de Engenheiros
Frente Nacional pelo Saneamento Ambiental
Federação Nacional dos Urbanitários
Federação Única dos Petroleiros
Fórum de Mudanças Climáticas e Justiça Social
Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental
Internacional de Serviços Públicos
Marcha Mundial das Mulheres
Movimento dos Atingidos por Barragens
Movimento dos Pequenos Agricultores
Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais do Brasil
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
Movimento dos Trabalhadores Sem Teto
ONG Proscience
Rede Mulher e Mídia
Serviço Interfranciscano de Justiça Paz e Ecologia
Sociedade Internacional de Epidemiologia Ambiental
Vigência