O presidente norte-americano, Donald Trump, poderia fazer como o presidente do governo da Espanha, Pedro Sánchez, que nesta quarta (20), perante o Congresso, pediu desculpas pelos erros cometidos na gestão da pandemia do coronavírus. Acossado pelos mais de 1,5 milhão de casos e 90 mil óbitos por Covid-19 nos Estados Unidos, no entanto, preferiu seguir o caminho ditado pelo guru Steve Bannon: eleger um oponente conjuntural e atacá-lo, camuflando assim os próprios equívocos.
O alvo da vez foi a já usual Organização Mundial da Saúde, que realizou sua 73ª Assembleia Mundial entre segunda (18) e terça (19). Mas a assembleia virtual, destinada a aprovar uma resolução com diretrizes para o combate global à pandemia do coronavírus, acabou por se tornar um desagravo de países centrais à OMS, após ataques seguidos de Trump ao organismo das Nações Unidas.
Também abriu uma janela de oportunidade para o líder chinês, Xi Jinping, ocupar o vácuo de liderança americana e se apresentar como alternativa viável de poder no combate global à Covid-19. E o asiático a aproveitou muito bem, em uma jornada classificada como uma vitória chinesa pelos analistas internacionais.
A tática manjada de ir às redes sociais para intimidar os adversários foi a forma eleita por Trump para iniciar a ofensiva. Na terça (19), ele compartilhou no Twitter uma carta enviada ao diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, em que classificou a organização de “fantoche da China” e ameaçou interromper de vez a contribuição dos Estados Unidos à agência. Acenou ainda com a retirada do país da organização, caso ela não se comprometesse a fazer “melhorias significativas” nos próximos 30 dias.
No documento de quatro páginas, com uma série de reclamações em relação à gestão da pandemia por parte da OMS e da China, Trump informou que seu país já teria iniciado “conversações sobre como reformar a organização” com o diretor da entidade. “É necessário agir rapidamente”, acrescentou.
O americano criticou o que chamou de “alarmante falta de independência” da OMS em relação à China e afirmou que uma das reformas sugeridas por Washington era justamente a desvinculação de Pequim. “A única forma de avançar, para a OMS, é se realmente for capaz de demonstrar independência em relação à China”, concluiu o norte-americano na carta.
A bravata, porém, não surtiu efeito, e os Estados Unidos viram a aprovação de todos os itens contra os quais trabalharam intensamente. Um deles foi a adoção de trechos que garantem cuidados de saúde sexual e reprodutiva durante a pandemia, interpretados como apoio ao aborto. Os diplomatas americanos afirmaram rejeitar “qualquer interpretação que exija que qualquer Estado facilite o acesso ao aborto”.
Futuras vacinas com patentes livres
Os Estados Unidos também tentaram impor obstáculos à possibilidade da quebra de patentes de futuras vacinas ou tratamentos para Covid-19, atendendo a uma demanda dos países mais pobres por acesso global igualitário aos tratamentos. A oposição americana nesse aspecto contrariou inclusive o aliado governo brasileiro, que havia negociado a inclusão do trecho em parceria com os europeus.
Em comunicado à parte, a Missão dos Estados Unidos em Genebra afirmou reconhecer a importância do texto sem caráter vinculativo, mas denunciou que as seções sobre renúncia aos direitos intelectuais enviavam “a mensagem errada aos inovadores, que serão essenciais para a solução que o mundo inteiro necessita”.
Mas a resolução, patrocinada pela União Europeia e aprovada sem objeções dos 194 Estados-membros da assembleia, reconhece o papel da imunização extensiva contra a Covid-19 como um “bem público mundial”. Também defende o licenciamento de patentes, o acesso universal aos produtos e tecnologias de saúde e a ampliação das capacidades de desenvolvimento e de distribuição deles.
O espírito do texto, aliás, é o mesmo contido na Declaração de Doha, da Organização Mundial do Comércio (OMC), de 2001, que abre caminho para o licenciamento compulsório de vacinas e remédios em emergências de saúde – usada no começo do século 21 no combate ao HIV.
Manobra para culpar OMS e China
A estratégia contra a OMS incluiu manobras de representantes dos Estados Unidos e da Austrália nos bastidores diplomáticos, pressionando pela adoção de uma investigação internacional sobre a origem do vírus, voltada diretamente contra o organismo das Nações Unidas.
Mas se por um lado o bloco pediu, em declaração conjunta, uma “avaliação independente e abrangente” da resposta internacional à pandemia, por outro, determinou que ela não apenas inclua a OMS, mas todos os governos e organismos internacionais do planeta. O que, em tese, poderia levar à culpabilização de Trump pela forma errática como conduz o combate à Covid-19, transformando os Estados Unidos no epicentro mundial da doença.
Trump também levou um puxão de orelhas de Virginie Batti-Henriksson, porta-voz das Relações Exteriores da União Europeia, que foi categórica: “Este é o momento da solidariedade, não de apontar o dedo ou minar a cooperação multilateral”, disse a jornalistas durante a assembleia.
O ministro do Exterior alemão, Heiko Maas, afirmou que o objetivo da investigação sobre a resposta internacional à pandemia deve ser identificar melhorias, e não procurar culpados. “Juntos, enfatizamos o papel central da OMS na gestão internacional da saúde”, disse Maas em comunicado.
Em entrevista à agência de notícias russa Interfax, a presidente da câmara alta do Parlamento russo, Valentina Matviyenko, também expressou apoio à OMS e à China. “A Rússia é contra qualquer investigação fabricada e acusações sem fundamento. Somos categoricamente contra”, afirmou.
O ex-primeiro-ministro australiano Kevin Rudd, embora reconhecesse que tanto a OMS quanto a China “têm perguntas legítimas para responder”, qualificou de “irresponsável” a ameaça do norte-americano. “Trump é muito ágil em criticar os outros, enquanto a maioria de nós concorda que suas políticas domésticas são caóticas”, disse Rudd, presidente do Instituto de Política Asia Society.
O secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, também reagiu. “Não é o momento de se reduzir o financiamento das operações da OMS ou de qualquer outra instituição humanitária que combate o vírus”, advertiu. Para ele, a OMS é “absolutamente essencial nos esforços do mundo para ganhar a guerra contra a Covid-19”.
O diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, disse ao plenário ser bem-vinda uma avaliação independente no momento oportuno. Afirmou ainda que a pandemia “ameaça rasgar o tecido da cooperação internacional”, mas que a OMS continuará liderando a luta global contra o coronavírus. O chefe da OMS ainda agradeceu “os muitos Estados-membros que expressaram seu apoio e solidariedade” à organização.
Finalmente, o jornal inglês Financial Times afirmou em editorial que, mesmo com falhas, o mundo precisa da OMS. “Outros países devem substituir o financiamento ou o risco dos EUA, permitindo o domínio chinês”, aponta. “É particularmente lamentável que os EUA tenham decidido lançar um ataque total à OMS no meio da maior emergência mundial de saúde em um século”.
“Fuga de obrigações”
Os Estados Unidos são os maiores financiadores da OMS, com contribuições anuais de até US$ 500 milhões (R$ 2,8 bilhões), entre as obrigatórias e voluntárias. A verba já havia sido congelada por Trump em abril, como forma de pressionar a organização.
Mas a promessa chinesa de doar nos próximos dois anos US$ 2 bilhões (R$ 11,5 bilhões) para o combate à pandemia, especialmente nos países em desenvolvimento, atropelou a tentativa americana de intimidação.
Em resposta ao tuíte de Trump, o governo chinês o acusou de difamação. “Os Estados Unidos estão tentando usar a China para desviar a responsabilidade pela péssima gestão da pandemia”, disse o porta-voz da chancelaria chinesa, Zhao Lijian.
Xi Jinping, por sua vez, surgiu sentado em frente a um afresco representando a Grande Muralha, na sessão virtual de abertura da Assembleia da OMS, afirmando que a China apoiava “uma avaliação global da resposta internacional após a doença ter sido controlada sob o mundo”. Mas “liderada pela OMS” e feita “no princípio da objetividade e imparcialidade”.
Xi Jinping manifestou apoio à França e aos países emergentes, afirmando que qualquer vacina que venha a ser descoberta deve ser tratada “como bem público, para uso da coletividade”. Ele prometeu que qualquer eventual vacina desenvolvida pela China se tornará um “bem público global”, acessível e disponível nos países em desenvolvimento. “A China trabalhará com os membros do G20 para implementar a iniciativa de alívio da dívida para os países mais pobres”, também ofereceu o líder chinês.
Sob pressão de ocidentais que criticam a China pela gestão da pandemia, o governo chinês tem incentivado institutos públicos e empresas privadas nacionais a acelerar as pesquisas. Em sua fala, Xi Jinping propôs tornar a China uma “plataforma logística e um armazém” humanitário de emergência, com o objetivo de facilitar o fornecimento de equipamentos contra o coronavírus em todo o mundo, em colaboração com a ONU. Gol da China.