No tradicional discurso de abertura da Assembleia das Nações Unidas, a mitomania do presidente chegou ao ápice e configurou mais um desastre diplomático brasileiro. Agressivo com os países que lhe cobram responsabilidade ambiental, culpou índios e caboclos pelas queimadas e inflou os valores do auxílio emergencial em 23%
A mitomania do presidente Jair Bolsonaro atingiu níveis alarmantes no tradicional discurso proferido durante a abertura da 75ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU). Tradicionalmente reservada a chefes de Estado brasileiros, a fala inaugural da reunião descortinou mais uma vez o descolamento da realidade em fase terminal que tomou a mente distorcida de um “mito” criado à base de fake news em redes sociais e sites de pseudo jornalistas amigos.
Por causa da pandemia, esta foi a primeira vez na história em que os chefes de Estado não se encontraram pessoalmente. A fala de Bolsonaro foi gravada em vídeo. Mas revelou ao mundo que o presidente, filhos e acólitos foram capturados pela “bolha” criada no ambiente putrefato das redes sociais bolsonaristas, e tornaram-se incapazes de dialogar com os fatos e a vida real.
Logo no início do pronunciamento, o autor de “e daí?”, “não sou coveiro” e outras barbaridades proferidas ao comentar as mortes de brasileiros por Covid-19 teve o desplante de se mostrar comovido diante da plateia virtual. “Quero lamentar cada morte ocorrida”, afirmou em seu discurso habitualmente tatibitate e superficial.
Depois, partiu para o ataque contra a mídia, acusada de “politizar a pandemia” e “espalhar o pânico entre a população”. Afirmou que tanto a pandemia quanto o desemprego trazido pela Covid-19 deveriam ser tratados simultaneamente e com a mesma responsabilidade, e afirmou que decisões judiciais no Brasil delegaram aos estados todas as decisões sobre isolamento sociais e restrições de movimento.
O discurso de Bolsonaro sobre a pandemia realmente foi, desde o começo, que o coronavírus traria dois problemas ao Brasil, um econômico e um de saúde pública. Em levantamento feito nas redes e nas falas do presidente, o portal ‘Aos Fatos’ encontrou declarações do tipo ao menos desde 15 de março, data de uma entrevista à CNN Brasil. O presidente, porém, não tratou as duas questões com o mesmo peso, já que, desde o início da pandemia ele minimizou os efeitos da doença. Também desrespeitou recomendações sanitárias ao causar aglomerações e circular sem equipamento de proteção.
Covardia frente à pandemia
Sobre as medidas de isolamento, a verdade é que o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que o governo federal deveria respeitar a autonomia de estados e municípios para tomar medidas de isolamento, mas que o dever de combater a pandemia era compartilhado entre todas as instâncias do poder público. Foi do governo federal, inclusive, a decisão de fechar fronteiras com países vizinhos. Bolsonaro já repetiu tal argumentação falsa mais de 50 vezes, segundo o contador do ‘Aos Fatos’ de declarações do presidente.
Com o registro de mais de 4,5 milhões de casos e 137,2 mil óbitos, o Brasil ocupa o terceiro lugar em número de infecções e o segundo em mortes, segundo painel de dados mantido pela Universidade Johns Hopkins, dos Estados Unidos. Além disso, sob a liderança de Bolsonaro, o Brasil foi um dos países que menos seguiu as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) para conter o avanço da pandemia.
O presidente ainda tentou se apropriar da criação do auxílio emergencial para trabalhadores informais, que na verdade foi gestado no Congresso Nacional após intensas negociações com participação ativa dos partidos de oposição. E inflou em 23% o valor do auxílio ao afirmar que as parcelas somariam aproximadamente US$ 1.000 para 65 milhões de pessoas. O fato é que o total de nove parcelas (cinco de R$ 600 e quatro de R$ 300) somam um benefício de R$ 4.200. Na cotação do dólar de 21 de setembro (US$ 1 dólar a R$ 5,44), o montante chega a US$ 771,49.
Desastre ambiental
A velha vigarice de culpar os outros pelo que se faz foi um dos recursos mais utilizados na fala de Bolsonaro, a exemplo do primeiro discurso no plenário da ONU, em 2019. Assim como se eximiu de qualquer responsabilidade pelos incêndios monumentais ocorridos na Amazônia no ano passado, desta vez culpou “índios e caboclos” pelas queimadas que devastam novamente a Amazônia, extensas áreas de cerrado e o Pantanal, onde as queimadas já destruíram mais de três milhões de hectares.
Mas omitiu que a Polícia Federal suspeita de fazendeiros na ação dos incêndios do Pantanal. Uma investigação em curso mostra indícios de que incêndios começaram por ação criminoso dentro de fazendas da região. Quatro fazendas estão no foco da investigação.
Em agosto do ano passado, a PF também levantou em outra investigação que fazendeiros e madeireiros da região do Pará haviam inaugurado o “Dia do Fogo”, fazendo vaquinhas inclusive para pagar combustível e alastrar chamas nos dias 10 e 11 de agosto. O plano de ação foi inclusive noticiado num jornal local. O jogo combinado levou a mais de 300 focos de incêndios.
Neste ano, números do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostram que já foram identificados 69.527 focos de calor só na Amazônia, 13% a mais do que o registrado em todo o ano passado, que já havia sido o pior resultado em mais de uma década. O maior aumento em 2020 foi observado no Pantanal, onde foram detectados 15.894 focos, número que é mais do que o triplo do balanço de 2019 (5.285).
No discurso desta terça, o presidente movido a fake news também alvejou “uma das mais brutais campanhas de desinformação” promovidas contra o país por outros países e organizações sociais, que movem a mais intensa pressão já exercida sobre o Brasil em sua história devido à crise ambiental, considerada uma ameaça para todo o planeta.
Assim o fazem porque passaram a considerar o desastre ambiental brasileiro como ameaça para todo o planeta. Em junho, por exemplo, fundos internacionais de investidores, que gerenciam ativos de R$ 21 trilhões de reais, cobraram ação mais efetiva do Brasil na área ambiental em uma carta aberta enviada a embaixadas do Brasil em pelo menos três continentes.
Alguns países europeus, como Áustria e Holanda, aprovaram moções para não ratificar o acordo comercial entre União Europeia e Mercosul, assinado no ano passado. E recentemente, uma aliança histórica entre mais de 230 instituições, entre grandes empresas do agronegócio e organizações ambientais, chegou a propor ao governo federal uma série de ações para conter o desflorestamento na Amazônia.
Segundo Bolsonaro, essa campanha “escorada em interesses escusos” teria por fim se apropriar dos “riquíssimos recursos” naturais do Brasil. Os interesses internacionais sobre a região se uniriam a instituições brasileiras que seriam “aproveitadoras e impatrióticas” – para prejudicar o governo. O Brasil, nesta visão, seria líder na conservação de florestas naturais. Bolsonaro também disse que mais de 200 mil famílias indígenas receberam auxílio, no momento em que o fogo ameaça as aldeias da região do Xingu.
Da Redação