Cotado para assumir uma nova pasta da Economia, Paulo Guedes, já afirmou que o Mercosul não será prioridade na política externa do país. A pasta reunirá os ministérios da Fazenda, do Planejamento e o Mdic (Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços).
Questionado sobre a futura relação do Brasil com o bloco, formado também pela Argentina, Uruguai e Paraguai, o “guru econômico” de Bolsonaro se irritou ao responder a pergunta feita por uma repórter do jornal argentino El Clarín. A Venezuela foi absorvida em 2012, mas está suspensa do bloco desde dezembro de 2016.
Guedes disse ainda que o Mercosul “foi feito totalmente ideológico” e classificou a aliança como uma “prisão cognitiva”, em que só se negocia “com gente que tiver inclinações bolivarianas.”
A declaração, no entanto, não foi bem recebida pela indústria brasileira. Na última terça-feira (30), dois dias após a entrevista de Guedes, a Confederação Nacional da Indústria (CNI) divulgou uma nota na qual destacou a importância do Mercosul para o comércio brasileiro e pediu a continuidade da agenda de negociações entre os países envolvidos.
“Se o governo brasileiro não der prioridade ao Mercosul, ou ainda pior, se se reduzir a Tarifa Externa Comum (formada por alíquotas praticadas pelo Mercosul com mercados que não fazem parte do bloco) de forma unilateral, o único ganhador é a China, que já vem tomando o mercado brasileiro em toda a América do Sul. Pequenas e médias empresas, que exportam mais para esses países, serão as mais afetadas”, advertiu a CNI.
Na opinião de Paulo Kliass, doutor em economia, caso o anúncio de Guedes se concretize e o Mercosul não seja priorizado, as relações comerciais serão enfraquecidas e isto afetaria a economia brasileira de forma negativa.
“Isso significaria que o Brasil teria uma redução das suas exportações industriais, não apenas das montadoras, que são as multinacionais, mas a cadeia da indústria de autopeças e de serviços dessas montadoras, que é muito importante do ponto de vista da formação de renda e da geração de emprego”, afirma Kliass. De acordo com o Mdic, em 2017, os automóveis responderam a 22% do montante vendido pelo país ao bloco.
Atualmente, o Produto Interno Bruto (PIB) total do Mercosul é de US$ 2,8 trilhões (R$ 10,4 trilhões). Como principal país exportador do grupo, o Brasil tem se beneficiado: ano passado o saldo foi de US$ 10,7 bilhões (R$ 39,7 bilhões), o que contribuiu para que a balança comercial fechasse no azul.
“O Brasil tem um saldo superavitário em relação aos países do Mercosul. Ele exporta mais do que importa, isso tem um impacto do ponto de vista das contas externas brasileiras, porque significa mais ingresso de recursos para o Brasil e menos saída, mas principalmente tem os efeitos econômicos e macroeconômicos”, explica Kliass.
O especialista comenta que, com a nova política de Guedes, o Brasil abriria mão da exportação de produtos de alto valor agregado como bens de informática, celulares e produtos tecnológicos do interior de veículos, importantes do ponto de vista da geração do valor em cadeia.
Oposição
Para Tatiana Berringer, professora de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC), as críticas de Guedes ao Mercosul ignoram completamente o papel que o bloco cumpre na política externa brasileira desde a reabertura democrática, minimizando as fortes relações comerciais construídas desde então.
Ela cita que o Brasil também depende da importação de trigo que vem da Argentina e mantém uma relação próxima ao Paraguai no setor elétrico, devido a Usina Binacional de Itaipu. Ser a principal economia do grupo, ao lado da Argentina, representando o Mercosul em foros internacionais, é outro fator positivo para o Brasil apontado pela docente universitária.
“O Mercosul tem uma importância chave para a economia brasileira e para sua política. O Estado brasileiro se vale de ser o Estado com maior peso político e econômico, mas traz os demais países membros para que se busque o consenso como uma retaguarda, um fortalecimento de seu próprio poder de barganha”.
Berringer critica a afirmação de Guedes de que o Mercosul é um grupo ideológico. “Fica evidente que há uma compreensão errática do que é o bloco. Uma construção de que ele seria uma aliança entre governos supostamente bolivarianistas, é essa oposição que tentam fazer, sem o conhecimento da realidade do que é o bloco, da sua história e importância econômica para o país. Da sua importância, inclusive pro papel do Estado brasileiro no sistema internacional, como ele se coloca a partir disso, como ganha força”, defende.
Abertura comercial
Criado em 1991 com o objetivo de estabelecer uma área de livre-comércio que eliminou barreiras alfandegárias, o Mercosul é responsável por expandir o fluxo comercial entre os países-membros. Porém, ao longo da campanha eleitoral, Bolsonaro e seus representantes sinalizam que os países em questão poderão ser liberados a negociarem acordos de livre comércio com outros países. “Nós vamos negociar com o mundo”, prometeu Guedes em entrevistas.
Paulo Kliass utiliza o exemplo dos Estados Unidos para argumentar que a política neoliberal de Paulo Guedes não está sendo usada nem pela maior potência capitalista mundial, que, desde a eleição de Donald Trump, tem adotado medidas protecionistas.
“Paulo Guedes está indo na contra corrente. Quer praticar um liberalismo irresponsável, de abertura completa da economia, em um momento que os países líderes do mundo, com exceção da China, estão praticando, se não um nacionalismo exacerbado, um protecionismo muito importante porque, em momentos de crise, os países se fecham e reduzem sua permeabilidade às importações, porque isso é uma forma de assegurar capacidade econômica interna”, diz.
Na opinião de Tatiana Berringer, a centralidade do “neoliberalismo radicalizado” de Guedes é uma liberação econômica subordinada aos grandes centros econômicos, que irá abrir mãos dos bens nacionais. Para ela, ao levar em conta a fragilidade econômica e uma formação social dependente como a brasileira, o impacto dessas medidas podem ser brutais e irreversíveis.
“O que vai se buscar é a famosa imagem de país com credibilidade para atrair mais investimento externo direto, tentando mais privatizações e abertura comercial, tendo em vista uma simples estabilidade monetária e a manutenção de juros altos e de rentabilidade para o capital financeiro e especulativo no Brasil”, critica.
Apesar das intenções bolsonaristas, os especialistas concordam que a pressão de setores importantes da economia pode brecar o desejo da abertura comercial total do Mercosul defendida pelo economista de Bolsonaro.
“Ele dá essas declarações bombásticas tem e muitas delas provavelmente vão ser mitigadas com o realismo da política, quando começarem a perceber que governar não é só fazer declarações para o seu público interno. Há um pragmatismo que ele mesmo terá que se adaptar em função dos lobbies e das pressões que existem”, acrescenta Paulo Kliass.
Diplomacia e integração
As primeiras viagens internacionais do presidente eleito serão para o Chile, Estados Unidos e Israel, conforme anunciado pelo deputado federal Onyx Lorenzoni (DEM-RS), que será o ministro da Casa Civil de Bolsonaro.
Bolsonaro romperá uma tradição importante, já que a primeira visita diplomática dos presidentes eleitos no Brasil sempre tiveram a Argentina como destino.
“A decisão de visitar o Estados Unidos, Israel e Chile, corresponde a uma linha ideológica que é ser conservador nos costumes e liberal na economia. Priorizar uma relação com o Chile em detrimento da Argentina, que juntamente com o Brasil, é o eixo que sustenta o Mercosul, rompe uma tradição de anos e que faz com que esteja caracterizada uma preferência ideológica”, avalia Júlia Borba, pesquisadora da Rede de Política Externa e Regionalismo (REPRI).
A exemplo do Brexit, a saída do Reino Unido da União Europeia, Borba destaca que uma decisão como essa, de deixar um bloco econômico, gera muitos danos, inclusive financeiros, para os países. Além da institucionalidade, normas, regras e decisões internas do Mercosul para o comércio na região, ela sublinha que a integração possibilitada pelo grupo vai muito além da economia.
“Não é só o comércio, existe muita coisa em jogo em uma decisão de não priorizar o Mercosul ou até de sair dele. Além de existir uma integração comercial, há também uma integração que abarca outras dimensões. Há uma integração energética, de infraestrutura, intercâmbios acadêmicos, participação da sociedade civil, integração de movimentos sociais, integrações culturais e esportivas”, afirma.
A pesquisadora aponta ainda outro aspecto positivo fruto do Mercosul. Desde 2009, foram implementadas medidas para facilitar a livre circulação de pessoas na região. Ao apresentar um documento de identidade válido, todos podem viajar, viver e trabalhar nos outros países do bloco sem grandes exigências burocráticas.
Por Brasil de Fato