A cada dia uma nova tentativa de impor a construção da Hidrovia Paraguai-Paraná (HPP) no interior da maior planície inundável do mundo, o Pantanal Mato-grossense, ganha força e tenta se consolidar como alternativa desenvolvimentista irrefreável a serviço dos interesses do agronegócio, sem levar em conta a fragilidade dos processos ecológicos, da vida silvestre e da vida humana no Pantanal.
Uma aliança entre setores ligados ao agronegócio e interesses políticos que orientam a atual gestão ambiental pública em Mato Grosso, estado governado pelo empresário Mauro Mendes (DEM), garantiu uma vitória momentânea para aqueles que enxergam o Pantanal como simples meio para ampliação de seus negócios e lucros, e desconsideram a importância do ecossistema para a regulação de processos ecológicos, reprodução de espécies e garantia de meios de vida para todos os habitantes da planície.
O grande negócio das commodities tenta firmar posição no Pantanal a partir da aprovação em 26 de janeiro de 2022, pelo Conselho Estadual do Meio Ambiente (CONSEMA) de Mato Grosso, da Licença Prévia para o Terminal de Uso Privado (TUP) Barranco Vermelho, um dos portos que fazem parte da proposta geopolítica de implantação da HPP no tramo norte do Rio Paraguai, que compreende a região situada entre a foz do Rio Cuiabá e o Município de Cáceres e é o principal formador das extensas planícies inundáveis do Pantanal Mato-grossense.
A implantação de obras de grande impacto ambiental nesta área é uma tentativa de diversificar os modais de transporte para a soja, reduzindo os custos de exportação, atualmente já subsidiados com isenções de impostos, com o beneplácito da lei Kandir e outros incentivos estaduais. O licenciamento ambiental é o procedimento administrativo através do qual os órgãos ambientais avaliam o risco e a viabilidade de implantação de empreendimentos utilizados de recursos ambientais ou causadores de danos ambientais a partir de informações técnicas e científicas que subsidiam uma tomada de decisão segura sobre cada empreendimento.
É definido pelo Conselho Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Desenvolvimento – PT/MT Nacional de Meio Ambiente como o “procedimento administrativo pelo qual o órgão ambiental competente licencia a localização, instalação, ampliação e a operação de empreendimentos e atividades utilizadoras de recursos ambientais consideradas efetiva ou potencialmente poluidoras ou daquelas que, sob qualquer forma, possam causar degradação ambiental, considerando as disposições legais e regulamentares e as normas técnicas aplicáveis ao caso”. Não se trata, portanto, de um processo cuja adequação de procedimentos sempre resultará na aprovação dos projetos, mas sim um processo de tomada de decisão que pode ter como resultado a negativa do empreendimento.
O aval dado pelo CONSEMA de Mato Grosso para a construção de Barranco Vermelho nada mais é do que uma medida que desconsidera a complexidade e a dinâmica ambiental da planície pantaneira, insuficientemente avaliadas no processo de licenciamento ambiental em pauta, como foi destacado pelo voto da relatoria do processo de licenciamento proferido no CONSEMA, que destacou a necessidade de uma ampla discussão sobre os impactos ambientais e do licenciamento ambiental de outros empreendimentos ligados ao TUP Barranco Vermelho, como é o caso da proposta de construção do Porto de Paratudal e o funcionamento do Porto de Uso Misto de Cáceres, também localizados no tramo norte do rio Paraguai, além, é claro, do licenciamento ambiental da própria hidrovia. Esses empreendimentos têm, segundo especialistas, um impacto sinergético sobre o meio ambiente que não podem ser analisados isoladamente. Mesmo as áreas protegidas (terras indígenas e unidades de conservação) do bioma foram completamente negligenciadas na análise ambiental.
Além das obras e empreendimentos diretamente ligados à navegação, o CONSEMA desconsiderou os impactos ambientais efetivos e potenciais do conjunto de empreendimentos que se articularão em torno da atividade portuária em licenciamento, como a mudança na dinâmica do uso do solo em propriedades da região. Em outras palavras, é como se na análise ambiental o TUP Barranco Vermelho viesse a ser instalado em um local isolado, sem contato com qualquer atividade econômica, sem considerar a integração dos impactos ambientais decorrentes da atividade de navegação ao longo do tramo norte, que é a razão da própria existência do porto. Ou seja, um porto que não o é, um porto sem ter quem ou o que atracar, sem empurradores e barcaças, um porto sem barcos. Além disso, a falha na análise se estende às demais infraestruturas a serem instaladas. Desconsidera, por exemplo, o complexo de estradas, portos secos e demais estruturas de apoio que se instalarão, por consequência, na região, e que criarão um efeito sinergético de impactos ambientais por uma grande extensão da planície pantaneira e, quiçá, estendidos para além dela.
O Pantanal é um dos grandes refúgios de biodiversidade do país, território de povos indígenas e comunidades tradicionais, que vivem diretamente dos recursos naturais. É bioma considerado Patrimônio Nacional pela Constituição Federal de 1988, reconhecido como Reserva da Biosfera pela UNESCO em 2000, e que conta com áreas inundáveis reconhecidas internacionalmente como Sítios RAMSAR pela sua importância ecológica e social. As ameaças sofridas hoje são a renovação de ameaças do passado.
O documento O Projeto de Navegação da Hidrovia Paraguai-Paraná: relatório de uma Análise Independente, de julho de 1997, já denunciava falhas nos primeiros projetos de implantação da hidrovia, que são, em grande medida, as mesmas falhas apontadas no processo de discussão atual. Essas falhas incluem uma precária análise dos impactos socioeconômicos e culturais sobre as comunidades da região, a ausência de uma análise integrada de impactos ambientais, o subdimensionamento das áreas de influência do empreendimento, o risco de invasão biológica e outros danos potenciais ao Pantanal, com avaliação precária ou inexistente nos relatórios ambientais. Quase três décadas depois, os interesses do agronegócio, as ameaças e o conflito ambiental continuam os mesmos, mas o Pantanal não.
Apesar de ser um bioma de grande diversidade, o Pantanal já conta com 16,5% de sua área desmatada e foi duramente afetado por grandes incêndios florestais entre os anos de 2019 e 2021. Apenas em 2020 foram 2,1 milhões de hectares queimados, ou 40% da sua superfície atingida pelo fogo. Pesquisadores estimaram a morte de aproximadamente 17 milhões de vertebrados durante a temporada de fogo de 2020. Os incêndios são reflexo de uma das mais severas secas dos últimos anos, que deixou o rio Paraguai sem condições de navegação. Tal situação é ainda mais agravada para o bioma quando se leva em consideração o fato de que grande parte dos rios que formam o Pantanal estão ameaçados pelo uso intensivo dos solos com a agricultura tecnificada e pela construção de barragens.
Se no passado, a pata do boi dominou economicamente a planície, agora é a soja, suas barcaças e seus empurradores que ameaçam tomar conta deste espaço, fazendo do bioma, que é reconhecido refúgio de biodiversidade e território cultural diverso, tornarse alvo da sanha dos grandes grupos capitalistas de commodities agrícolas, vislumbrando a transformação do rio Paraguai em via expressa de navegação industrial, desprezando a riqueza e complexidade do bioma. O tramo norte do rio Paraguai é onde se concentram as maiores áreas alagáveis e permanentemente inundadas do Pantanal Mato-grossense, uma veia pulsante formadora e reguladora da vida no bioma, refúgio alimentar e reprodutivo de peixes da Bacia do Alto Paraguai, mantenedores da diversidade de espécies do Pantanal.
A liberação do Terminal de Uso Privado Barranco Vermelho e a concessão da licença prévia, com todas as falhas de procedimentos e ausência de informações apontadas pelo relator no CONSEMA de Mato Grosso é uma ameaça ao bioma. É tempo de cancelar a concessão de licença prévia do Terminal de Uso Privado Barranco Vermelho e avaliar os impactos da navegação da Hidrovia Paraguai-Paraná na Bacia do Alto Paraguai como um todo, incluindo toda a BAP e os empreendimentos associados. Se Barranco Vermelho é um porto que não o é, a licença que o autoriza é um simulacro de decisão e como tal deve ser cassada. Pelo Pantanal, pelos Povos Pantaneiros.
Cuiabá-MT, 04 de fevereiro de 2022.
Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento do Partido dos Trabalhadores de Mato Grosso (SMAD).