Publicadas em novembro de 2018 pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), as Normativas 76 e 77 estão no centro de uma polêmica com os pequenos e médios produtores de leite do Brasil. Em vigor desde maio deste ano e com o prazo de carência para adaptação terminando nesta quarta-feira (30), a nova legislação altera regras para a produção de leite ao especificar padrões de qualidade e identidade do produto cru refrigerado, do pasteurizado e do tipo A, além de alterações na forma de produzir, coletar e armazenar o produto.
Produtores e entidades representativas do setor criticam principalmente a temperatura máxima estabelecida para o leite chegar ao estabelecimento industrial. De acordo com as regras ainda em vigor, a temperatura podia ser de até 10°C. Agora, a nova legislação determina que a temperatura máxima de 7°C.
Segundo os produtores, essa diferença é suficiente para excluir milhares de pequenos e médios produtores que moram em regiões distantes dos laticínios, devido ao tempo necessário para transportar o produto, além de não terem condições de investir em novos equipamentos de refrigeração.
Jean Carlos Pereira, do Assentamento 8 de Abril, em Jardim Alegre (PR), afirma que a nova regra não altera questões envolvendo a qualidade do leite, como contagem de bactérias e células somáticas. O problema é mesmo a temperatura estabelecida para o produto chegar ao laticínio. Ele explica que os pequenos produtores costumam transportar o leite no modelo de refrigeração por imersão, uma técnica que, aliada ao tempo de viagem, faz o produto chegar ao destino a cerca de 10°C.
Com as novas regras, será preciso o pequeno produtor investir no modelo chamado refrigeração a granel, que mantém o leite em torno de 4°C, porém, com alto custo. A falta de uma linha de crédito para financiamento e o tempo para adaptação às regras baixadas é o que tem revoltado os produtores.
“Não tem investimento público para isso. Excluir o modelo de refrigeração vai excluir muitos produtores”, avalia Jean Carlos. “O problema é o período para a adaptação. Não tem trabalho do Estado para que o produtor se adapte, além do financiamento.”
Na prática, ele explica que a rota de coleta feita pelos caminhões que transportam o leite do produtor até a indústria, precisará ser mais curta e com menos paradas para cumprir a determinação de 7°C. Com isso, pequenos produtores que moram em lugares mais afastados serão excluídos. Para o agricultor, rotas de coleta que hoje levam em torno de cinco ou seis horas, terão que diminuir para três horas. “Nesse momento, com sobra de produção, mais a tendência de excluir os pequenos produtores, estamos ficando sem alternativa para a agricultura familiar”, critica Jean Carlos, que além de leite produz hortifrutigranjeiros e grãos.
Somado à nova regra da temperatura do leite, ele ainda reclama da piora do serviço de assistência técnica prestado pela Emater do Paraná, que nos governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff chegou a ter cerca de 150 técnicos atuando junto aos assentados da reforma agrária. A diminuição das linhas de crédito do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) para pequenos e médios produtores e os cortes nos programas de aquisição de alimentos agravam ainda mais o quadro. “Tudo isso deixou de existir. A questão da assistência técnica é fundamental”, afirma Pereira.
À margem da produção
Ao lado de Santa Catarina e o Rio Grande do Sul, o Paraná está entre os maiores produtores de leite do Brasil. Em torno de 90% dos municípios paranaenses têm produção leiteira. Segundo o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), cerca de 40% dos produtores de leite do Paraná poderão ser afetados com as novas regras das Normativas 76 e 77. “Essas pessoas não deixam de existir e o dinheiro deixa de circular no município. Vai influenciar diretamente no comércio”, pondera Jean Carlos Pereira.
No último dia 15, em torno de mil produtores de leite realizaram um protesto na Superintendência Regional do Ministério da Agricultura em Porto Alegre. Na ocasião, Renato Coimbra, secretário da Associação das Pequenas Indústrias de Laticínios do Rio Grande do Sul (Apil), declarou que, até dezembro, em torno de 23% dos produtores que entregam leite para pequenas indústrias de laticínios no estado abandonarão a atividade.
O número de produtores de leite que têm abandonado o trabalho só cresce no Rio Grande do Sul. Segundo a Emater (RS), em torno de 35 mil agricultores familiares deixaram de produzir leite no estado nos últimos quatro anos. “Todas as entidades, governos e parlamento devem unir esforços para reverter este quadro que é catastrófico para a agricultura familiar produtora de leite”, afirmou, durante o ato, Rui Valença, coordenador-geral da Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar no Rio Grande do Sul (Fetraf-RS). Somente na Cooperativa de Produção Agropecuária do Pampa (Coopampa), 40% dos produtores associados ficarão de fora da produção com as medidas do governo federal. Atualmente, cerca de 60% da produção de leite no Brasil é oriunda da agricultura familiar.
“As medidas acabam com os nossos colonos, que dependem da renda do leite para sustentar suas famílias, afinal, sabemos que uma família que abandona a produção de leite no interior afeta não só ela mesma, mas toda a economia local. É menos dinheiro circulando, menos empregos, menos arrecadação, mais fome e pobreza”, destacou o deputado federal Dionilso Marcon (PT).
Em audiência pública realizada em Porto Alegre no dia 15, o deputado estadual Edegar Pretto (PT) lembrou que a agricultura familiar é a base da economia de 90% dos municípios brasileiros com até 20 mil habitantes. Segundo ele, o Rio Grande do Sul tem aproximadamente 65 mil produtores de leite. Destes, cerca de 11 mil produzem até 50 litros/dia, e 13 mil até 100 litros/dia, uma produção considerada pequena. “Em vez de medidas para promover a cadeia do leite e eliminar riscos, o governo federal pode levar à falência milhares de famílias que vivem da produção. É um efeito que vai quebrar produtores e gerar mais desemprego no campo”, alertou o parlamentar.
Esperança
Apesar de todas as dificuldades, Cleonice Back, da coordenação da Fetraf-RS, ainda acredita numa saída política que possa aumentar o prazo para adaptação dos produtores de leite. Representantes de entidades do setor e de cooperativas têm insistido em conseguir uma reunião com a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, para que o prazo da próxima quarta seja suspenso.
“Nós não somos contra a melhoria da qualidade da produção de leite, mas não dá pra aceitar a forma como estão sendo impostas essas normativas, e ainda sem políticas públicas”, afirma Cleonice, enfatizando que a qualidade ruim das estradas influencia no tempo de transporte do leite até a indústria. Se nada mudar, ela diz não ter dúvidas de que milhares de pequenos produtores serão excluídos.
Ela ainda reclama do processo de elaboração das Normativas 76 e 77, ao dizer que não houve debate com os produtores na época. “Foi algo construído entre o governo e a indústria”, explica a moradora de Tiradentes do Sul, na região noroeste do Rio Grande do Sul.
Cleonice Back ainda destaca o problema do preço do leite pago ao pequeno produtor, em torno de R$ 1 por litro, com o custo variando entre R$ 0,80 e R$ 1,20. Na lógica do mercado, quantos menos litros o produtor disponibilizar, menor o valor pago pela indústria. “Na prática, no dia a dia, o que vale é a produtividade, não só a qualidade”, afirma. “Muitas vezes, o produtor só fica sabendo do preço (que receberá) depois de 45 dias da entrega. Tu nunca sabes o preço do leite.”