A imunidade de impostos a materiais para leitura é garantida no Brasil desde a Constituição de 1946. Ou seja, há mais 70 anos existe uma compreensão suprapartidária da importância de estimular e incentivar o hábito de ler. Desde 2004, início do governo Lula, vigora uma lei que desonera a indústria do livro — parte dos esforços das gestões do PT em ampliar o acesso à cultura e educação no país.
No entanto, esse empenho mudou de rumo com o acúmulo de tragédias que caracteriza o governo Bolsonaro. Com a proposta de reforma tributária, apresentada nesta semana, o plano de Paulo Guedes, ministro da Economia, é extinguir qualquer benefício ao setor em troca da colaboração com a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), com alíquota de 12%.
Caso isso aconteça, os livros ficarão mais caros, o valor das obras para o consumidor final se tornaria mais alto, prejudicando o mercado editorial, já amplamente afetado pela pandemia de coronavírus.
“É um conjunto articulado de ataques que visam impedir, de todas as formas, a distribuição de renda e a possibilidade de ascensão social dos mais pobres. Usam do argumento da ‘elitização’ do livro para impedir ainda mais ao acesso e não para democratizá-lo. É um governo obscurantista, atrasado e reacionário. Esta é a versão institucionalizada de queimar livros na fogueira para que as pessoas não tenham acesso”, denuncia Anne Moura, secretária nacional de mulheres do PT.
A elitização do acesso à leitura no país vem sendo tema de debate nas redes sociais por conta do possível aumento dos impostos. Entre 2011 e 2015, a estimativa de brasileiros que consomem livros passou de 50% para 56%, totalizando 104,7 milhões de pessoas. A quantidade anual média de livros lidos por habitante passou de 4 para 4,96, segundo a pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil”, de 2016 —o mais amplo estudo sobre o tema, realizado pelo Instituto Pró-Livro a cada quatro anos.
Apesar de ser um número relevante, especialistas indicam que esse retrato é mais quantitativo do que qualitativo. Da média anual de 4,96 livros por habitante, apenas 2,43 foram lidos do começo ao fim. Isolando as obras lidas por vontade própria do entrevistado, o índice é de 2,88 e despenca para 1,26 se apenas as obras de literatura forem consideradas —incluindo os livros lidos em partes.
A elitização e a falta de hábito de leitura, principalmente de literatura, entre jovens e pessoas de baixa renda é outra falácia que os defensores do aumento do imposto utilizam para defender a reforma tributária. Movimentos de cultura de periferia têm demonstrado que o problema do acesso não é só uma questão financeira — mas também a forma como a literatura é apresentada aos jovens. O sucesso dos Slams, por exemplo, são encontros literários que abrem portas primeiro para a literatura e, depois, para outros universos. Eles demonstram que a demanda por conhecimento e cultura existe e está pujante em todas as camadas sociais.
No entanto, a falta de investimento em educação e uma vez fechada as portas do acesso por meio da impossibilidade de aquisição dos livros, o resultado pode ser catastrófico não apenas cultural, mas também socialmente.
Conversamos com a escritora Pam Araujo, 26 anos, escritora que atua na periferia de São Paulo para falar sobre o aumento dos livros e os impactos na juventude.
1 – O acesso à Cultura já é uma questão em um país tão desigual como o nosso. Na sua avaliação, como o imposto sobre o livro pode impactar as atuais e futuras gerações de jovens?
Esse novo imposto é um ataque direto aos leitores de baixa renda e escritores, independentes que hoje em sua maioria são jovens. Com essa taxação, os livros ficarão ainda mais caros fazendo com que o acesso não aconteça. Vemos que muitos jovens das periferias e das favelas do Brasil ingressaram nas universidades por meio de cota por exemplo, o aumento dos livros afetará também esses estudantes.
O imposto afeta a todos, mas ele coloca ainda mais em evidência quem tem direito à cultura e educação nesse país
2 – Qual a sua relação com a leitura / literatura? De que maneira o Slam abre caminhos para a leitura e vice-versa?
Minha relação é de amor, de vida, eu sou escritora e sem a literatura eu não saberia dizer quem eu seria.
O slam aproxima muitos jovens que não tem o hábito da leitura a ouvi-la. E isso, de alguma forma, faz com que o interesse surja, você ouve da boca do próprio escritor e acaba querendo conhecer outros.
A leitura de escritores contemporâneos e que sejam da mesma realidade que a sua faz você enxergar diferente a literatura brasileira. Os escritores não estão todos mortos, não são todos homens, brancos e ricos e, ainda mais forte, nós moramos próximos aos nossos leitores: isso é gigante.
3 – Quais políticas podem estar por trás desse aumento de imposto? Na sua avaliação, qual o interesse do governo em adotar essa medida?
O principal plano desse governo é desinformar, seja qual for a área. Essa taxação deixa em evidência que eles não querem pobre leitor.
Sem a literatura, ninguém ascende socialmente e o plano é esse.
4 – Sobre a “elitização” do livro. O país não possui muitos leitores (do livro impresso propriamente dito), mas é um caldeirão de produção cultural. Na sua avaliação, qual a origem desse cenário? E como é possível superá-lo?
Acredito que tudo começa pela forma que os livros são apresentados pra gente. Desde pequenos, poucos pais influenciam a literatura em casa, na escola você é “obrigado” a ler muitas vezes coisas que não te interessam ou que são distantes demais do seu tempo e da sua realidade. Precisamos de uma nova forma, de novas possibilidades para apresentar a literatura pras novas gerações.
Mostrar que ler é além da escola, pode ser algo prazeroso e te levar longe.
5 – O aumento da dificuldade de acesso aos livros tem influência direta no acesso à educação? Como o jovem pode relacionar a batalha pelo direito à cultura e educação de qualidade, em tempos tão bicudos?
Com certeza!
Não se faz educação só com livro didático, não se faz cultura sem incentivo à leitura.
Os tempos estão cada vez mais obscuros e ter informação real, verdadeira é quase um privilégio. Acredito que, nos jovens, estamos criando espaços e enxergando a cidade de forma diferente da geração anterior, mas ainda temos um governo autoritário e burro no poder.
Sairemos disso com muitas perdas, mas acredito que com uma juventude mais forte e com sede de vingança política
6 – Quais políticas públicas seriam necessárias para reverter esse processo (além da diminuição do imposto)?
Precisamos de cultura:
Eu quero uma casa de cultura no meu bairro pra que meu filho e eu tenhamos acesso a diversos livros e eventos culturais num todo.
Apesar de sermos um país rico culturalmente, e essa cultura vim sempre das quebradas do Brasil, não existe uma preocupação real como ela pode chegar a todos.
Não temos um ministério da cultura, o que nos faz perder muito. Educação e cultura andam de mãos dadas, mas não são a mesma coisa.
Precisamos dar atenção a isso e, dentro das nossas casas, incentivar as crianças a ouvirem nossas músicas, ler nossos livros e, principalmente, valorizar os artistas, os pequenos artistas que são quem realmente segura culturalmente as coisas que acontecem nas periferias.
Ana Clara, Agência Todas