Todo dia ele faz tudo sempre igual. Mais de uma vez. A agência de checagem de notícias Aos Fatos, que compila semanalmente as impropriedades pronunciadas por Jair Bolsonaro, levantou até a quinta (7) 1.003 declarações falsas ou distorcidas ditas por ele em 492 dias como presidente. Em meio à pandemia do novo coronavírus, o volume subiu: março e abril, com 135 e 139 afirmações, são os meses com mais casos desde janeiro de 2019. Mas, ainda na primeira metade, maio talvez supere os números.
No sábado (9), Bolsonaro publicou um vídeo no Twitter dizendo que tinha mentido propositalmente sobre um churrasco para três mil convidados que mencionara na sexta, dia em que o Brasil batia mais um recorde de mortes por Covid-19. Na postagem, criticou a imprensa, chamando de “idiotas” os jornalistas que registraram a sua fala da véspera.
Domingo (10), ele publicou um vídeo no Twitter para criticar o governo do Maranhão e comparar o lockdown em São Luís ao “caos social vivido pela Venezuela”. O governador Flávio Dino respondeu na mesma rede: “Bolsonaro inicia o domingo me agredindo e tentando sabotar medidas sanitárias determinadas pelo Judiciário e executadas pelo governo. E finge estar preocupado com o desemprego. Deveria então fazer algo de útil e não ficar passeando de jet ski para ‘comemorar’ 10.000 mortos”, postou. Até segunda (11), foram confirmados 422 casos, com dez óbitos, na Venezuela.
Nesta terça (12), Flávio Dino voltou às redes sociais para afirmar que notícias falsas estão entre as enfermidades que assolam o Brasil atualmente. “O Brasil hoje enfrenta várias doenças. Uma delas são as abjetas mensagens do “gabinete do ódio” e suas várias filiais. Dedicam-se a mentir, agredir, criar versões, semear o mal. Reitero: não tenho medo de miliciano. Nem nas ruas, nem nas redes”, comentou o governador.
No mesmo dia, mais uma rede social excluiu uma postagem mentirosa de Bolsonaro. Desta vez foi o Instagram, que a marcou com ‘alerta de fake news’. Ele publicou que o número de mortes por doenças respiratórias no Ceará teria caído entre 2019 e 2020, apesar da pandemia. Mas checagem da Agência Lupa, indicada pela plataforma como justificativa da exclusão, concluiu que os números citados foram distorcidos.
Em março, Bolsonaro teve dois vídeos apagados de sua conta no Twitter. Os vídeos mostravam um passeio dele em Brasília em plena quarentena, defendendo o uso da hidroxicloroquina para populares e dizendo que o País só ficará imune depois que 60% a 70% da população for infectada.
O governador do Ceará, Camilo Santana, condenou a publicação no Instagram. “Usar redes sociais para postar notícias falsas já é algo inaceitável, principalmente em meio a uma gravíssima crise”, afirmou. “Quando tal atitude parte da maior autoridade do País, e de forma repetida, ganha contornos mais preocupantes. Não é a postura que se espera de um Chefe de Estado”, criticou Santana.
Guerra à verdade na pandemia
Quando ainda não havia mortes por Covid-19 no país, Bolsonaro dizia que o problema estava sendo “superdimensionado”, que se tratava de uma “fantasia” e que “outras gripes matavam mais”. Em 9 de março, falando a apoiadores nos Estados Unidos, afirmou ter provas de que a eleição de 2018 foi fraudada e que deveria ter sido eleito no primeiro turno. Uma carta que já havia tirado da manga anteriormente.
Com a primeira morte confirmada em São Paulo, em 17 de março, ele seguiu na mesma toada e chamou de “histeria” a pandemia. Em 20 de março, quando o país alcançava 11 mortes por Covid-19, alardeou: “Não vai ser uma ‘gripezinha’ que vai me derrubar”.
Em 24 de Março, Bolsonaro fez um pronunciamento em cadeia nacional frontalmente contrário às medidas de isolamento social. “O vírus chegou, está sendo enfrentado por nós e brevemente passará. Nossa vida tem que continuar, os empregos devem ser mantidos, o sustento das famílias deve ser preservado. Devemos sim voltar à normalidade”, disse em cadeia nacional.
Três dias depois, em entrevista ao apresentador José Luiz Datena, da TV Bandeirantes, Bolsonaro disse não acreditar nos números de casos de Covid-19 em São Paulo, insinuando que poderiam estar sendo superdimensionados pelo governo. Naquele momento, em cinco dias o número de mortes saltara de 22 para 68 no estado.
Em 13 de abril, quando a pandemia já havia levado à morte 1.230 brasileiros, Bolsonaro disse que a doença “estava indo embora”. Sete dias depois, já com 2.588 mortos, ele resolveu lembrar que “não sou coveiro”, em resposta à pergunta sobre o agravamento da pandemia no país.
Acusações sem provas
Em 28 de abril, Bolsonaro reavivou as suspeitas sobre a facada cometida por Adélio Bispo de Oliveira contra ele na eleição de 2018. Uma tentativa de jogar uma cortina de fumaça sobre a abertura de inquérito para investigar acusações feitas pelo ex-ministro Sergio Moro de interferência na Polícia Federal.
Na porta do Palácio da Alvorada, o presidente sugeriu a necessidade de a PF reabrir o caso para investigar o mandante. Questionado sobre provas, saiu pela tangente: “Que pergunta é essa, pelo amor de Deus? Eu não tenho provas pessoalmente, eu tenho sentimentos, sugestão para passar para a PF”. Naquele dia, o Brasil ultrapassara o número de mortes por coronavírus da China e Bolsonaro reagiu com um “e daí?”.
Dois dias depois, em sua live semanal, ele atacou as medidas de isolamento social. Sua linha de argumentação, para variar, foi um atentado ao bom senso: “Até porque 70% da população vai ser infectada. E, pelo que parece, pelo que estamos vendo agora, todo empenho para achatar a curva praticamente foi inútil. Agora, a consequência disso? O efeito colateral disso? O desemprego”, disse o presidente.
Alguns dias depois, Bolsonaro disse que as restrições às atividades econômicas impostas pelo governo de São Paulo já haviam deixado um milhão de pessoas desempregadas no estado. O mesmo apelo pelos desempregados foi usado na quinta (7), durante a marcha com empresários para pressionar o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, pela reabertura do comércio. Ao lado de empresários, afirmou que se aproximavam de “dez milhões” as pessoas que perderam emprego de carteira assinada.
Desinformação e descredibilização
Em sua cruzada contra a realidade, Bolsonaro deixou para trás autoridades inicialmente negacionistas, como o britânico Boris Johnson e o americano Donald Trump, que deixaram de minimizar a Covid-19 quando foram confrontados por milhares de vítimas fatais. A ponto de jornais estrangeiros, como The Washington Post (EUA) e o Corriere della Serra (Itália), o classificarem como pior líder global no enfrentamento à pandemia.
A cada mentira ou distorção dos fatos pelo presidente, seus filhos coordenam a sua replicação em centenas de perfis no Facebook e no Twitter, que se aliam a portais bolsonaristas como ‘Brasil Sem Medo’, ‘Estudos Nacionais’ e ‘Movimento Brasil Conservador’, além de parlamentares da base de apoio, para atacar desafetos, disseminar desinformação ou desacreditar notícias desfavoráveis. As narrativas tornam-se memes e voam para os grupos de Whatsapp.
Ouvido pela Agência Pública, o cientista político Oliver Stuenkel descreve a tática: “A narrativa bolsonarista é muito anti-sistema, então essas teorias de conspiração dão a sensação para muitos eleitores de que o Bolsonaro é muito ousado ao publicamente abraçar essas teses”. Embora a radicalização faça com que o presidente perca apoio de pessoas moderadas, ela é uma “ótima oportunidade para mobilizar os seguidores mais radicais”, defende o pesquisador.
Em fevereiro, um estudo divulgado pela empresa de cibersegurança Kaspersky, sobre a maneira como a América Latina lida com as fake news, mostrou que 62% dos brasileiros não sabem reconhecer uma notícia falsa. A pesquisa constatou que apenas 2% dos latino-americanos consideram as notícias falsas inofensivas, e 72% acreditam que elas viralizam para que alguém se beneficie ou cause dano a outro. Mesmo tendo essa percepção negativa, quase metade dos brasileiros (42%) apenas ocasionalmente questiona o que lê na web.
Ainda de acordo com a pesquisa, 16% dos entrevistados desconhecem completamente o termo “fake news”. Por outro lado, os brasileiros são os mais familiarizados com o termo, visto que apenas 2% desconhecem a expressão.
E aí entra o “efeito Bolsonaro”, que usualmente utiliza o termo para desqualificar as notícias desfavoráveis. Levantamento da agência de checagem Lupa aponta que ele utilizou o termo “fake news” ou “fake” em 31 manifestações feitas em redes sociais em 2019. Em 64,5% dos casos (20 ocasiões), para acusar algum veículo de imprensa ou jornalista de publicar uma informação que o presidente considerava incorreta.
Ataques à imprensa
Em janeiro, a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) apresentou relatório apontando que os ataques a veículos de comunicação e jornalistas no Brasil cresceram 54% em 2019. Segundo a entidade, foram registradas 208 ocorrências no ano passado, contra 135 em 2018. Do total, 121 casos haviam sido falas de Bolsonaro contra jornalistas específicos ou contra a imprensa. Por isso, a Fenaj decidiu criar a décima categoria de ataque, a de descredibilização da imprensa, para agrupar os ataques recorrentes do chefe do Executivo.
“Até 2018, a categoria de agressões físicas era a mais predominante. Agora, porém, é a de descredibilização da imprensa. Foram as falas do presidente que pesaram na balança para esse aumento em 2019. Ele sozinho é responsável por 58% das agressões. Isso é extremamente preocupante. Houve uma institucionalização dos ataques à liberdade de imprensa, o que nunca tinha ocorrido antes”, disse a presidente da Fenaj, Maria José Braga.
Dos 121 ataques à liberdade de imprensa feitos por Bolsonaro, sete foram contabilizados como agressões diretas a jornalistas. “As falas do presidente estão divididas entre categorias como descredibilização da imprensa, quando são gerais, e ameaças ou intimidação”, afirma a dirigente da Fenaj.
Em 2017, o termo “fake news” foi eleito a palavra do ano pelo dicionário britânico Collins. A expressão foi popularizada pelo presidente americano, Donald Trump, que se considera o criador do termo. Bolsonaro, que afirmou “amar” Trump, se apropriou da tática para camuflar as próprias mentiras, quando é flagrado.